França, 1339
O sol já havia começado a se pôr, envolvendo a aldeia em uma iluminação alaranjada. O barulho do ferro batendo se misturava ao som dos passos e das conversas daqueles que andavam por ali. Vez ou outra era possível ouvir risadas e o tilintar de garrafas vindo da taverna.
Jehan caminhava a passos lentos em meio aos outros habitantes, na esperança de encontrar novamente a pessoa cujo nome ainda não lhe fora dito.
Há alguns dias, o jovem camponês de dezenove anos havia se encantado com a figura de uma bela jovem. Andava de forma graciosa, ao mesmo tempo que decidida. Seu rosto expressava a bondade mais contagiante que Jehan já vira por ali. Os olhos arredondados eram de um castanho tão intenso que parecia ser possível perder-se neles. Ou, talvez, fossem apenas os efeitos de ser um rapaz sonhador apaixonado por histórias de romance.
— Ora, se não é o meu fiel ouvinte Jehan! — Chamou uma voz masculina animada.
O jovem virou-se para aquele que lhe chamava. Era um homem alto de sorriso carismático. Suas vestes eram avermelhadas, e o capuz da capa caía-lhe sobre as costas, deixando à mostra seus cachos escuros, combinando com a barba curta. Calçava botas de tom marrom que iam até a altura dos joelhos. Carregava em uma das mãos um alaúde, enquanto a outra brincava distraidamente com a barra de sua blusa.
— Gidie! — Cumprimentou o mais novo, sorrindo abertamente. — Vejo que seremos agraciados com seu admirável talento esta noite.
— Pode apostar que sim, meu amigo! — Riu o bardo. — E eu serei agraciado com sua ilustre presença, ou esta será mais uma daquelas noites infelizes e melancólicas?
— O que pensa que sou?! — Jehan fez um gesto exagerado, fingindo indignação. — Jamais perderia uma oportunidade de ouví-lo, e sabes muito bem disso.
Os dois riram da reação encenada do camponês, embora ambos soubessem que parte dele falava sério. De fato, não deixaria passar uma chance de ouvir as histórias cantadas de Gidie.
Fazia pouco mais de cinco anos desde que o bardo aparecera na aldeia pela primeira vez. Jehan tinha apenas catorze anos na época, e ficara deslumbrado com a música do mais velho, bem como as histórias que eram acompanhadas pela melodia.
Não fora a primeira vez que vira um bardo, ou que tivera a oportunidade de ouvir tal tipo de canção. Mas Gidie possuía um jeito diferente. Suas histórias, desde as mais melancólicas até os poemas épicos, tinham um toque pessoal que o camponês nunca havia visto até então. Um toque de Gidie.
— Estou indo até a beira do rio agora. — Anunciou ele. — Daria a este pobre bardo a honra de sua companhia? — Questionou, com uma reverência.
— E quem é este pobre camponês para negar tão singelo pedido? — Rebateu Jehan, devolvendo a reverência.
E então, Gidie pôs-se a caminhar em direção ao destino mencionado, com Jehan em seu encalço, animado, perguntando-lhe sobre sua última viagem. O mais velho respondeu aos questionamentos do outro com igual entusiasmo, contando-lhe detalhadamente sobre as recentes aventuras vividas, as pessoas que havia encontrado, as tavernas que visitara.
O camponês estava tão empolgado com a conversa que mal prestava atenção nos próprios passos, e não foi capaz de manter o equilíbrio ao pisar em uma rocha revestida por musgo. A mão do bardo segurando firme suas vestes foi o que impediu Jehan de cair direto no rio.
Recuperando a compostura e o fôlego perdido durante o susto, Jehan endireitou-se e sentou-se na grama próximo à árvore na qual o outro recostava seu instrumento cuidadosamente. Durante alguns minutos, o único som presente era o da água corrente e dos galhos secos que Gidie amontoava tranquilamente.
O mais novo observou em silêncio o bardo acender a fogueira e pegar seu alaúde, para logo depois sentar-se em um ponto mais alto do terreno, de forma a deixar boa parte de seu corpo visível acima do fogo.
Mas não tiveram tempo de continuar o diálogo animado de antes, pois logo chegaram mais ouvintes curiosos, ansiando pela música tão cativante de Gidie. E não tardou para o bardo começar sua apresentação.
Jehan se viu, como de todas as vezes anteriores, mergulhado completamente nas histórias que o mais velho contava através da música.
A primeira falava sobre herói em sua longa aventura para salvar o povo pobre de onde havia nascido de uma temida ameaça.
A segunda era uma tragédia romântica, e fosse por identificação pessoal ou pela forma com que o bardo a contara, vários dos ouvintes pareceram segurar lágrimas.
A terceira — que o camponês suspeitava ser de autoria do próprio Gidie — era a história de um ser mágico, cujos poderes consistiam na capacidade de estar em qualquer lugar do mundo, quando quisesse. Ele viajava pela terra em busca de conhecimento e inspiração, conhecia inúmeras pessoas, locais e costumes, para no fim da vida, regressar ao lugar de onde veio, com tanto vivido e tão pouco guardado.
Já era noite e a lua brilhava alto no céu quando a última canção terminou. Aos poucos, as pessoas se levantaram, cumprimentaram o bardo, e retornaram às suas casas.
Em pouco tempo, Gidie e Jehan eram os únicos presentes ali. O mais novo ajudou o outro a apagar a fogueira, e os dois foram envoltos pelo breu da sombra das árvores.
— E então, foi de seu agrado? — Indagou o bardo, ao que eles começaram a caminhar para longe dali.
— Por que perguntas algo tão óbvio? — Retrucou. — Não houve uma vez em que suas histórias não foram de meu agrado.
— Sinto-me honrado. — Ele riu. — Mas se me permite a audácia, qual–
— A terceira. — Interrompeu o camponês. — Decerto.
— A certeza é tanta a ponto de saberes a resposta antes mesmo de ouvir a pergunta, é? — Questionou.
— Sabe, Gidie — começou Jehan, abandonando o tom formal —, às vezes penso em como seria sair daqui. Como você, sim, mas como o ser mágico também. Conhecer lugares diferentes. Saber o que há além. Além do que conhecemos, além do que imaginamos.
Por um breve momento, o bardo não respondeu, e o silêncio pairou no ar entre os dois, quebrado apenas pelo barulho dos passos e os sons distantes da taverna. Longe das árvores, a luz da lua agora iluminava seus rostos, e Jehan não pode deixar de notar a expressão pensativa do mais velho. Até que ele, por fim, respondeu:
— Foi pensando em você.
O camponês parou de andar, e encarou o outro, confuso com o que havia acabado de ouvir. Gidie também parou, e virou-se para o mais novo, com um suspiro.
— Essa história. Ela foi criada pensando em você. — Explicou. — Há algum tempo noto seus desejos sonhadores, e pessoalmente, não acho que sejam ruins. Porém — ele fez uma pequena pausa —, quanto mais alto sonhamos, maior a queda. Se lembra o que aconteceu com o ser mágico no final?
— Ele morreu realizado. Vivido.
— Ele morreu sem nada. — Corrigiu o bardo. — Pois tudo na vida dele foi tão passageiro, que no fim, nada ficou. É o que acontece quando temos muita pressa. Você é novo, Jehan, tem uma vida inteira pela frente. Não tenha medo de criar raízes em um lugar, o pior é não ter.
— Está falando de você. — Apontou o mais novo. — Você é o viajante, o que conhece lugares demais, pessoas demais. O que não tem raízes. O final da história é–
— O que tenho medo de acontecer com você. — Interrompeu.
E mais uma vez, os minutos a seguir foram acompanhados apenas do som ambiente. Por um momento, nenhum dos dois ousou dizer nada, pareciam medir cuidadosamente as palavras. E foi Jehan quem quebrou o silêncio dessa vez:
— Podia ter me dito isso.
— Não me daria ouvidos se não fosse através de uma história, não? — Riu Gidie.
— Talvez. — Concordou, pensativo. — Mas se quer saber, talvez a história não seja sobre você também.
— E o que te faz pensar isso? — Ele arqueou uma sobrancelha.
— Você tem raízes. — Afirmou, decidido. — Do contrário, não estaria preocupado comigo a ponto de fazer uma música para me dar um conselho. Pode não ter uma casa para chamar de lar, mas existe um lugar que pode chamar assim. Um lugar ao lado de alguém que se preocupa tanto com você. Este é o seu lar, onde ficam suas raízes. Podem ser recentes, mas elas estão aqui.
O bardo observou, surpreso, enquanto o outro apontava para o próprio peito. Parecia surreal que o garoto ingênuo e curioso que havia se encantado com sua música há alguns anos atrás se tornaria seu único amigo de verdade.
— O que este bardo fez de tão grandioso para receber tal bênção? — Perguntou, em tom dramático, virando o rosto em direção ao céu.
— Este bardo afortunado — começou, assumindo o tom formal de antes — tornou a vida do pobre camponês imensamente rica.
Gidie riu e afagou os cabelos do mais novo, por pouco não derrubando seu chapéu. Os dois retomaram a caminhada até a taverna, animados como antes.
Ao abrirem a porta, as conversas agitadas do recinto encheram os ouvidos dos recém-chegados. Vozes altas e empolgadas foram ouvidas, em meio à risadas exageradas e o barulho de canecas batendo. Alguns rostos viraram contentes em direção à entrada, cumprimentando os dois com entusiasmo.
— Bardo! Jehan! — Gritou o ferreiro acenando, sentado à uma mesa no fundo da taverna. Ele indicou os lugares vazios. — Vamos, o que estão esperando? Mais duas, por favor! — Acrescentou, virando-se para a mulher atrás do balcão.
— Eu tenho nome, sabia? — Retorquiu o bardo em tom brincalhão, dirigindo-se até o lugar em questão e sentando-se, sendo seguido por Jehan.
— Por enquanto, meu camarada! — Riu o ferreiro, enquanto a moça de antes depositava duas canecas cheias na mesa. — Aposto que em três rodadas já esqueceu quem é.
— Aposto que você mesmo já esqueceu. — Provocou Jehan, pegando uma das canecas e levando-a até a boca, sentindo o gosto amargo descer por sua garganta.
O homem gargalhou, sendo seguido pelos outros dois. E assim, a noite seguiu agitada, recheada de risadas e provocações vindas dos três.
Era tarde quando o bardo virou-se para o mais novo do grupo, com um sorriso malicioso, e perguntou-lhe, de forma descarada e visivelmente embriagado:
— E aí, Jehan, quando meu pequeno garoto vai virar homem?
Tal questionamento arrancou risadas do ferreiro, e Jehan lançou-lhe um olhar repreendedor, antes de voltar a atenção ao contador de histórias.
— Pois saiba — ele deu mais um gole do que deveria ser sua a sétima caneca daquela noite —, que este pequeno garoto está prestes a cortejar uma bela dama. Teria feito isso hoje, se um certo bardo não tivesse interrompido meus planos.
Gidie engasgou com a bebida que tomava, e o outro homem cessou as risadas repentinamente. Os dois fitaram o mais novo, surpresos, esperando explicações. A ideia de que o menino que sonhava em viajar pelo mundo estava interessado em uma moça era, no mínimo, intrigante.
— Parem de me encarar como se tivessem visto bruxaria! — Indignou-se o rapaz. — É isso mesmo que ouviram.
— E quem seria essa bela donzela? — Perguntou, curioso, o ferreiro, ao que Gidie aproximou-se de Jehan, a fim de ouvir melhor.
— Seu nome ainda não me foi dito. — Explicou, virando o resto da bebida de uma vez só e fazendo sinal para que lhe trouxessem outra. — Mas em breve saberei. Ela tem o andar mais gracioso da aldeia e irradia bondade por onde passa. Seus olhos são da cor do tronco da mais bela árvore, suas bochechas rosadas, e seu sorriso — ele suspirou —, seu sorriso é a visão mais bela que já tive.
O que aconteceu a seguir foi rápido demais, em um momento, o chapéu de Jehan havia caído na mesa, e seu pescoço agora estava preso entre o braço de Gidie, que lhe bagunçava os cabelos de forma exagerada, gargalhando.
— Esse é meu garoto! — Exclamou, empolgado, afagando os cachos escuros do mais novo.
— Eles crescem tão rápido! — Ironizou o ferreiro, entrando na brincadeira. — Foi ontem que Jehan era a criança que roubou meu martelo e derrubou no próprio pé!
— Ei! — Reclamou o camponês, sendo ignorado pelos outros dois.
O resto da noite foi repleto de implicâncias e questionamentos sobre a mais nova descoberta. Gidie perguntava agitado sobre como Jehan conhecera a tal jovem, o pouco que sabia sobre ela, enquanto o ferreiro fazia comentários petulantes sobre o assunto.
Não tardou para que o cansaço consumisse os três e obrigasse-os a pagar e sair dali. O bardo e o camponês ajudaram o outro a manter o equilíbrio e o levaram até o lugar onde morava, para logo depois seguirem seu próprio caminho.
Apoiando-se um no outro, eles chegaram por fim ao destino. Jehan abriu a porta de sua casa desajeitadamente, e os dois adentraram o local. O mais novo se deixou cair em sua cama, ao mesmo tempo em que Gidie repousava seu instrumento em um canto e ajeitava-se no monte de feno.
Por ter vivido sozinho durante uma parte considerável de sua vida, o camponês sentia-se bem com a presença do bardo ali, durante as noites que costumavam ser tão solitárias.
A primeira vez fora num fim de tarde chuvoso, no qual Jehan havia encontrado Gidie debaixo de uma árvore, encolhido, curvado sobre seu alaúde e envolto na costumeira capa, tentando em vão proteger-se da água incessante.
E ali, naquela chuva, Jehan havia descoberto que o bardo não tinha um lar, ou ao menos um lugar onde pudesse se abrigar. Naquela época, era apenas um contador de histórias recém-chegado na aldeia, que logo partiria para a próxima. Sem criar raízes, como o próprio costumava dizer.
E foi naquela tarde que Jehan acolheu o pobre bardo pela primeira vez, dando-lhe um lugar para descansar e lhe oferecendo uma muda de roupas improvisada, enquanto pendurava as encharcadas em um canto da casa.
Foi ali, também, que Gidie soube quem Jehan era. Como o jovem camponês fora obrigado a viver sozinho tão cedo, como a vida fora injusta com aquele menino, assim como sua própria.
E desde então, sempre que o bardo aparecia na aldeia, o mais novo lhe oferecia uma estadia, e o mais velho o recompensava com sua companhia reconfortante, risadas, histórias de lugares distantes e um carinho familiar que Jehan há tempos havia esquecido como era.
— Jehan. — Chamou a voz sonolenta vinda do monte de feno. O camponês virou-se na cama para encarar o outro.
— O que?
— Amanhã — disse, seguido por um bocejo. — Fale com a moça.
— Pode apostar que irei. — Afirmou, bocejando também.
O mais novo fechou os olhos, permitindo-se perder a consciência aos poucos, sentindo-se cada vez mais relaxado, até sua mente ser consumida pelo sono tranquilo.
Em seus sonhos, cumpria o que havia dito logo antes de dormir, e falava com a bela jovem. Suas respostas ele não lembraria ao amanhecer, mas ali, naquele devaneio, eram palavras que Jehan guardaria com carinho em seu coração — mesmo que apenas por uma noite.
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