Existiam duas estranhas criaturas em minha cozinha, e para deixar tudo pior, os meus pais também estavam ali.
Uma delas tinha a pele completamente negra, parecia que tinha sido envolta do completo e absoluto breu. Seu rosto era de certa forma delicado, um nariz pequeno e com lábios também pequenos. Seus olhos me deixaram vidrada, eram de um completo branco, junto de longos e grossos cílios, seus cabelos também eram negros, algumas mechas caiam para frente quase em uma franja enquanto o resto estava trançado para trás. O que me parecia mais estranho não era o breu de sua pele ou o branco dos olhos, mas sim os enormes chifres curvados para cima em sua testa e a enorme cauda com quase o mesmo tamanho que ela.
Seu corpo tinha semelhança com o de uma humana, tinha seios e curvas como a de uma mulher comum além da pele parecer sensível - era possível dizer isso já que ela não usava roupas-, suas regiões íntimas me lembravam de bonecas articuladas que só sabemos que é mulher pelo formato do corpo. Sua mão esquerda estava esticada segurando uma fina corrente com firmeza, e acorrente estava no pescoço de meu pai, o enforcando.
O outro, pelo corpo, era um homem e assim como a outra não vestia nada e igualmente só podia determinar seu sexo por conta do formato do corpo já que de resto não continha nada. Sua pele era como se eu estivesse olhando para o céu escuro à noite, sem nenhuma estrela, lua, ou iluminação da cidade. Ele estava de lado e ao se mover, virando-se de costas para mim, pude ver que ele tinha duas cores. Metade do corpo era escuro e a outra metade era negra, não o breu igual à outra, mas sim um negro comum, a outra metade dele era humana. Sua parte monstruosa era semelhante à outra, os olhos brancos e um único chifre, já o lado humano tinha os olhos castanhos. O cabelo dele era igual para ambos os lados, fios escuros e bagunçados.
Ao mesmo tempo em que eles eram assustadores, também eram belos e talvez se não estivesse naquela situação poderia ficar admirando aquela beleza exótica existente neles.
Mas eu estava assustada, afinal quem não ficaria ao se deparar com tal cena? Meus instintos gritavam para que eu corresse, mas eu precisava fazer algo para salvar minha família. Nesse momento minha mãe que estava caída no chão, sendo segurado pelo, aparentemente, pesado pé daquele monstro me olhou e em seus olhos pude ver o completo desespero dela. Ela tentou abrir a boca como se fosse dizer algo, mas então desistiu.
―Guardiões, não me façam repetir! Onde está a detentora da pena? ―A voz da mulher monstro parecia ecoar diretamente em meu cérebro e soava de forma metálica como se fosse uma voz sintética.
―Quantas vezes precisamos dizer? ―Minha mãe agora encarava as duas criaturas, seus olhos e mesmo a voz tomados pela raiva. ―Aqui nesta casa vivemos apenas eu, meu marido e minha filha! Não somos mais guardiões, desistimos de viver daquele lado.
―Não quero saber da sua vida, mulher inútil. ― A voz dele era mais forte e tinha um tom autoritário, e assim como a outra parecia vir de dentro de minha cabeça. O homem meio criatura levantou o pé tirando de cima de minha mãe para poder chuta-la logo em seguida. ―Cadê a menina?
Minha mãe mordeu o lábio para conter seu grunhido de dor, fechando seus dedos com força. Logo depois ela olhou séria para os dois, dizendo em tom de deboche.
―Estúpidos. Acha mesmo que eu sei onde ela está? Talvez esteja morta, essa era a nossa missão... Matar a detentora.
―Creio que você esteja mentindo. ―Mais uma vez a voz da mulher ecoou em minha mente, me deixando zonza.
Meu pai não estava em condições de falar, a corrente parecia estar o impedindo e estranhamente não o impedia de respirar. Já estava bastante confusa com tudo aquilo, mas mesmo assim me apegava a esses detalhes, como aquilo era possível?
Olhei para o chão, precisava me acalmar um pouco, meu coração estava muito acelerado e estava começando a suar bastante. Fechei os olhos e respirei fundo, puxando o ar e o soltando de forma bem lenta. "Talvez agora consegua fazer alguma coisa" mas então fui surpreendida.
Pensei que meus batimentos acelerados tinham me entregado, mas quando levantei a cabeça meu pai me olhava assustado e a mulher monstro notou seu olhar, virando o rosto. Quando ela me viu sorriu como se tivesse acabado de ganhar na loteria. Sua cauda balançou de um lado para o outro fazendo alguns utensílios da cozinha voarem o forte vento que surgiu.
―Então, esta é a detentora? ―Ela largou a corrente que segurava meu pai, que mesmo assim permanecia bem firme em sua garganta. Sua cauda não deixava de balançar e me senti um pouco hipnotizada com aqueles movimentos.
―Não! Esta é minha filha! ―Minha mãe berrou tentando se levantar desesperadamente, mas o homem a impediu da forma mais bruta possível, forçando seu peso sobre a perna para não deixa-la se mover a fazendo apenas assistir aquilo.
―Calada! Se ela fosse só filha de vocês, meros guardiões, nascida no mundo humano ela não seria capaz de enxergar nossa forma verdadeira, assim como vocês dois não conseguem. E pelo o que vejo, ela consegue muito bem ver minha bela cauda.
Estava com medo. Nunca tinha visto algo como aquilo antes, meu corpo começou a tremer, perdi a força e desabei no chão. Um novo clarão surgiu me deixando sem a visão por meio segundo. Quando minha visão retornou ao normal a mulher estava com o rosto bem próximo do meu, seus olhos me olhavam com tanta intensidade que era como se ela pudesse ver todos os meus segredos.
―Onde está a pena? ―A pergunta me soou como uma ordem e mesmo sem saber que “pena” era essa que ela dizia quase abri minha boca e falei o que nem mesmo sabia só para poder “obedecer” a ordem dada.
Eu nem mesmo tive chances de responder, um som alto veio da porta da sala como se ela tivesse sido derrubada, o que eu acho difícil já que ela é feita de madeira genuína sendo pesada e resistente. Estava muito assustada para virar o rosto e ver a causa do barulho, mas a mulher logo se ergueu lançando um olhar furioso para trás de mim. O companheiro dela chutou minha mãe a fazendo desmaiar com a força utilizada para que pudesse se juntar a outra.
―Fecha os olhos! ―Ouvi um grito vindo da sala, mas como estava desnorteada não tive tempo para reação.
Um novo clarão tomou conta da casa, um diferente do anterior na cor azul e vermelho, a criatura balançou sua cauda me acertando com toda a força o que fez minha cabeça rodar com a dor e aos poucos fui perdendo minha consciência, antes de fechar os olhos pude ver as duas criaturas gritando –as duas vozes se misturavam em minha cabeça– e se preparando para um possível ataque.
Senti meu corpo tocar o chão gelado, e o ambiente parecia bem mais frio que o normal. Também era possível sentir algo me tocando e alguns sons antes de por fim apagar de vez.
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