Senti algo quente e amargo subir pela minha garganta. Tudo o que tinha no meu estômago foi parar no chão do altar. O cheiro da morte era tão terrível quanto o seu som, meu corpo tremia e eu não conseguia me mexer. Uma coisa era ler sobre o ocorrido em um livro, e outra completamente diferente era presenciar uma cena tão brutal. Corpos e mais corpos sendo destroçados em um piscar de olhos, entranhas se espalhando por todo lugar, os gritos de desespero ecoando pela Mansão Sagrada como uma cacofonia infernal.
— Me dê cobertura — Ignis reagiu antes que eu pudesse segurá-lo no lugar, eu não podia deixar que ele tentasse entrar no portal, apesar do seu nível ser alto o suficiente para ultrapassar as barreiras tóxicas. porque no momento em que ele tentasse atravessar, um monstro poderoso sairia e arrancaria a sua cabeça em um único golpe.
Eu não podia deixar que isso acontecesse. Precisava salvar Ignis, não só porque ele era um amigo precioso de Spes e o seu futuro Sentinela, mas também porque a morte de Ignis significaria um destino trágico para Spes. Para mim. Se Ignis morresse, eu me tornaria um Excluído.
— Não! — gritei, tentando alcançá-lo.
Algo dentro de mim grasnou, e um brilho azul tomou a frente de Ignis. Um enorme pássaro se materializou, envolvendo Ignis em suas asas como um abraço protetor. Era Cerulean, o espírito animal de Spes, uma arara-azul gigante. Ela era ainda mais linda do que eu imaginava, as cores de suas penas eram vivas, o bico preto parecia ter sido lustrado e o amarelo ao redor de seus olhos a deixava ainda mais cativante.
— Eu sou o único Sentinela aqui, sou a única pessoa capaz de deter o portal! — gritou Ignis — Me deixe lutar até que os reforços cheguem!
— É perigoso demais! — supliquei, ainda imóvel no altar.
Tentei buscar apoio da Prioresa, mas a velha desgraçada já tinha sumido. Pensando bem, uma Guia poderosa como ela poderia ter salvado muitas vidas sem ter que se arriscar muito. Então por que ela correu ao invés de lutar?
— Se eu não fizer isso, todos nós morreremos! — insistiu Ignis.
— Então lutaremos juntos! — concordei, tentando ver o lado positivo da situação. Eu sabia o que aconteceria, então poderia ajudar Ignis como Spes nunca pôde.
A coragem cresceu dentro de mim junto com as minhas palavras. Cerulean deu espaço para Ignis e seu animal espiritual, Mox, um lobo-guará envolto em chamas, que surgiu ao seu lado. Eu sabia exatamente o que fazer: precisava usar minha energia mental e conjurar um escudo ao redor deles, assim poderiam lutar com a criatura. O problema era que eu não sabia como! Nessa época, nem Spes sabia como conjurar um escudo, então talvez não fosse possível. Mas eu precisava tentar.
Lembrei das aulas de defesa que Spes teve. Ele precisava se concentrar e enxergar a energia dentro de si, moldá-la e extraí-la, e assim poderia enviá-la para onde quisesse. Fechei os olhos tentando ignorar o caos, eu era bom nisso, já que conseguia ler em qualquer tipo de ambiente, por mais barulhento que fosse. Ignorar o mundo fora da minha mente era minha habilidade mais forte, afinal.
Me concentrei no pequeno ponto de luz que me chamava, e ele foi crescendo à medida que o som ao meu redor foi desaparecendo. Senti meu corpo se aquecer e eu estava novamente girando em meio ao caleidoscópio, exceto que dessa vez eu sabia aonde ir. Os tons de azul se misturaram em uma bola de energia no centro do festival de cores, e quando abri os olhos, algo azul translúcido estava sobre a palma aberta da minha mão direita.
O tempo parecia ter parado no meu momento de autorreflexão. Ignis, Cerulean e Mox ainda corriam para o portal, e, com um simples movimento, ao apontar na direção deles, estavam envoltos por uma luz azul translúcida. Um escudo mental. O meu escudo mental. Essa era a proficiência de uma pessoa que já era Guia há 9 anos, e mesmo sem o devido treinamento, Spes desenvolveu a sua energia mental em seus treinos improvisados com Ignis.
Ao chegarem na frente do portal, um chocalho horripilante soou, um aviso que a cascavel estava perto. Assim como na história original, ela tentou dar o bote na cabeça de Ignis e falhou graças ao meu escudo. A cobra gigante sibilou e mostrou suas presas monstruosas, escorrendo um veneno tão poderoso que abria crateras no chão com pequenos respingos.
Ignis sorriu, mostrando seus caninos pontudos. Ele parecia uma fera cercando a sua presa, e não o contrário. Chamas emergiram de suas mãos e uma explosão tirou a minha visão. Apesar da fumaça densa, ainda podia sentir a energia dos escudos, então eu sabia que Ignis e os nossos animais espirituais estavam bem.
Mantive a minha posição, alerta para o som do chocalho ainda distante. Eu não sabia como lutar, estava contando com a força de Ignis para derrotar aquela víbora ou ao menos contê-la até o reforço chegar.
A fumaça diminuiu e pude ver que a catedral já estava vazia, a maioria das pessoas que tinham sobrevivido tinham recuado. O portal vermelho, o fogo de Ignis e Mox e a luz azul de Cerulean brilhavam no centro da Mansão Sagrada. Com uma agilidade impressionante, Ignis conjurou uma espada de fogo e a brandiu contra o couro duro e impenetrável da serpente, gerando o som de metal sendo lentamente derretido.
A víbora era grande, porém lenta. Seu corpo gigantesco parecia intransponível, era a agilidade dos seus adversários que compensava. Era tão impressionante que eu mal conseguia acompanhar. Cerulean sobrevoava sobre a cabeça da cobra, mantendo-a atordoada, e Mox queimava o chocalho em seu rabo para impedir que acertasse Ignis, que tentava perfurar a pele feita com uma armadura resistente.
“Só mais um pouco”
Após um tempo, o fogo rachou o couro da cobra. Com um rugido feroz igual ao de um lobo protegendo sua alcateia, Ignis quebrou a armadura e alcançou o coração da cascavel. Um cheiro putrefato dominou o ambiente e uma pedra verde brilhou, envolta por uma fumaça tóxica. Ignis enfiou sua mão em chamas arrancando a pedra.
A cascavel foi esmaecendo e fez um som esganiçado, seu último suspiro. Sua cabeça balançou violentamente arremessando veneno para todos os lados, e derretendo os pilares ao meu redor. Tentei usar aquela mesma energia mental dos escudos para jogar os destroços para longe, pois já estava exausto demais para criar um para mim mesmo, e nem tinha certeza se ele seria forte o suficiente para deter pedaços de mármore.
Foi o meu erro.
— Spes, cuidado! — ouvi Ignis gritar e quando me virei era tarde demais.
Uma bola massiva de veneno veio na minha direção e caiu sobre o meu corpo antes que eu pudesse tentar me desviar. Eu gastei muita energia conjurando Cerulean e os escudos por tanto tempo. Ainda gastei um pouco mais tentando não ser esmagado pelos pilares, e não conseguiria purificar aquela quantidade de veneno antes que ele consumisse os meus músculos.
— Nãããão! — Ignis gritou e correu em minha direção.
Todo o meu corpo estava dormente. Eu não sentia dor e não conseguia ouvir nada, apenas via os olhos vermelhos brilhantes de Ignis se encherem de água.
Então é assim que acaba? Eu achava mesmo que eu poderia mudar um destino tão cruel só porque minha mãe me deu o nome idiota de Salvador? Como pude ser tão ingênuo? Eu sou um mero leitor, um espectador que nunca fez nada de bom com a própria vida. Como eu achei que poderia mudar o destino de alguém tão grandioso como Spes? Ao menos essa é uma forma digna de morrer, lutando por algo que eu acredito e por alguém que eu amo…
Era triste que Spes tivesse que morrer por causa de um erro meu, mas eu estava em paz com a minha morte. Não tinha ninguém para lamentar por mim, ninguém para sentir a minha falta. Ao menos, no corpo Spes, eu seria velado de uma forma digna e seria lembrado de alguma forma, mesmo que ninguém aqui saiba o meu verdadeiro nome.
Minha morte significaria que Lux teria um destino diferente, assim como Ignis. Infelizmente Spes não encontraria a felicidade, mas dois de três me parece suficiente. Tentei me reconfortar com esse sentimento, mas a tristeza me envolveu no final. A tristeza de Ignis, a dor ao saber que eu nunca sequer conheceria Lux, a certeza de que eu era um inútil, que eu sempre fui.
Nem minha própria mãe me quis. Fui abandonado ainda bebê, nunca fui adotado e sempre vivi sozinho, tendo o mundo dos livros como único conforto. A solidão era uma velha amiga que me acompanhou até o fim. Eu não conseguia sentir, mas sabia que as lágrimas escorriam dos meus olhos quando a luz deles se apagaram.
Revisão Ortográfica por: Isabella Viard
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