Spes era filho de um Sentinela nível C e uma Guia nível D. A sua manifestação precoce foi uma grande surpresa. O seu poder despertou aos seis anos, sua aura era imaculada e sua energia mental era esplêndida desde tenra idade. Um Guia SS nascido de pais com níveis intermediários era considerado um milagre. E ele sendo o orgulho da família, era cotado para ser o sucessor da Soberana.
Mesmo sendo tão poderoso, Guias só podiam começar o seu treinamento a partir dos 21 anos, pois a purificação demandava muita energia, e em Pristine, a infância era importante. Crianças felizes se tornavam adultos competentes. Por isso, Spes passou anos de sua vida morando na Guilda Ipê Azul, uma das sete que existiam em Pristine, junto com seus pais, esperando pelo grande dia: o momento em que seria batizado, e começaria a treinar para lutar ao lado do seu grande amigo, Ignis.
Assim como Spes, Ignis morava com sua família, um Sentinela nível C e uma Guia nível D, na Guilda Ipê Azul, e despertou como Sentinela S ainda na infância. Um ano depois do amigo, para ser mais exato. Os dois treinavam luta com espada e tiro com arco e flecha juntos. A primeira era a especialidade de Ignis, e a segunda de Spes.
Apesar de Spes não poder purificar antes do seu treinamento, com duas crianças tão amigas e tão poderosas, foi feito o teste de compatibilidade, uma forma de medir a ressonância entre as ondas tóxicas do Sentinela e a purificação do Guia. Todos ficaram satisfeitos com a marca de 80% atingida por eles, pois isso significava que Spes podia purificar Ignis sem nenhum dos dois sofrer danos no processo.
Um milagre duplo.
Era raro nascerem Sentinelas e Guias com níveis tão altos, e ainda mais raro encontrar alguém compatível. Eu sabia que a compatibilidade nada tinha a ver com sorte. Ela aumentava ou diminuía de acordo com a afeição ou nível de atração um tinha pelo outro, então como Spes e Ignis sempre foram bons amigos, era natural que a compatibilidade deles fosse tão alta. Mas todos encararam aqueles acontecimentos raros como sinais do destino. E mesmo sem nada oficial, todos os tratavam como futuros parceiros.
E lá estava eu, ao lado do alto e imponente Ignis, agora sem o capuz, expondo os seus cabelos e olhos vermelhos como rubi. Sua aura era quente e poderosa, digno de um Sentinela do elemento fogo. Tentei não tremer ao permanecer prostrado no altar segurando aquela maldita vela de sete dias. Meu corpo suava como se aquela pequena chama pudesse me queimar por inteiro.
Só de pensar que eu estava no ano 700 do calendário da Luz, em meio a uma cerimônia importante que estava prestes a dar errado, meu estômago revirava. Eu sei que amava aquela novel, mas eu odiava todo o tema religioso que ela carregava, pois toda a opressão que o povo de Pristine sofria vinha do Culto da Luz. Eu acreditava que toda a tragédia que estava por vir era culpa deles também.
— Todos de pé — anunciou a Prioresa novamente — Após o abandono de Deus, ficamos entregues a criaturas ferozes e demônios foram enviados para nos aniquilar, até que fomos abençoados novamente, depois de mostrar que somos dignos do amor divino. A Deusa nos enviou os Guias, e hoje estamos aqui para celebrar a vida de mais um dos símbolos do amor da Deusa, o Guia Spes.
A Prioresa estava elegante em seu traje formal, um corpete azul bem ajustado, sobre o vestido preto de manga bufante e saia volumosa, parecendo uma princesa emo gótica da terceira idade. Enquanto isso, eu me sentia ridículo naquela bata branca que mais parecia um lençol. Por mais que Spes fosse bonito, com longos cabelos prateados e feições angelicais, qualquer um pareceria um saco de batatas envolvido naquele lençol.
— Que a Luz ilumine o seu caminho, Guia Spes — a Prioresa colocou sua mão direita sobre minha cabeça e me envolveu com a sua energia.
Tentei sorrir enquanto todos na catedral aplaudiam. Eu odiava aquele papo, e era também uma das coisas que eu mais amava na história. Pristine vivia em uma teocracia, uma cidade governada pela Imperatriz Safira, uma Guia de nível SSS. Nesse universo os Guias eram sagrados, considerados as pessoas mais próximas da Deusa. Era execrável e fascinante.
— Deus em toda a sua sabedoria também nos enviou os seus demônios — continuou a Prioresa quando as palmas cessaram. — Para se redimirem dos seus pecados e nos protegerem. Os Sentinelas são pecadores em busca de redenção, e pertencer a um Guia é uma honra. Seja portanto grato, Ignis, pela bênção que lhe foi enviada e a proteja com a sua vida, assim você conquistará o seu lugar ao lado do da Deusa Mãe e Toda Poderosa.
— Sou grato por sua bênção, Spes.
As mãos grandes de Ignis se envolveram nas minhas sobre a vela, e senti meu coração acelerar. Não sei se aquela reação era do corpo de Spes, onde eu me encontrava, ou minha. Não fazia diferença. Sorri docemente apreciando aquele toque.
O calor que Ignis emanava era tão reconfortante, que senti vontade de morar para sempre naquele instante. Era uma pena que a autora tenha o matado tão cedo, mas eu estava obstinado a mudar isso. Se eu queria mudar o final de Trilha de Lágrimas, eu precisava salvar Ignis. Não só porque ele era um amigo precioso para Spes e seria um aliado precioso, mas também para evitar o futuro tenebroso que me aguardava.
A morte Ignis não era só triste, era o início de toda a desgraça que cairia sobre Spes. Seria durante toda aquela tragédia que Spes, ou melhor, eu me tornaria um excluído, seria trancafiado no laboratório por alguns anos e depois sequestrado para viver em cárcere privado como escravo de um cientista obcecado.
Salvar Ignis era a minha prioridade! Assim, eu não viraria um excluído e poderia treinar como um Guia comum. Com a mudança no enredo, não sei como faria para encontrar com Lux, mas isso não era importante agora. O importante era saber como evitar o que estava por vir. Eu não queria ver Ignis morrer, nem passar 9 anos preso!
Uma área tão purificada quanto a Mansão Sagrada deveria ser segura, nenhum portal poderia abrir no perímetro da catedral. Mesmo assim, aconteceu. Isso nunca foi explicado na novel, pois seria mostrado posteriormente no spin-off do casal secundário, mas ainda não havia sido lançado, então eu não sabia a sua origem e não tinha como impedir o inevitável.
Não sabia qual seria a origem daquele portal nível S, só sabia que ele apareceria a qualquer instante. Fingi prestar atenção nas palavras da Prioresa, quando na verdade estava vigilante. Cada segundo era precioso e eu precisaria agir rápido se eu quisesse salvar Ignis da primeira tragédia, de uma série que ocorria naquela novel.
O coral ficou em silêncio, dando fim à canção funesta, e um silêncio sepulcral se instalou. Ninguém falou por um longo momento. Se minha memória não estivesse falhando, esse era o momento em que Spes precisava mostrar o seu animal espiritual, uma arara azul chamada Cerulean, para que logo em seguida ele cumprimentasse o animal espiritual de Ignis, um lobo guará chamado Mox.
Pensei um pouco em como faria isso e senti um calafrio percorrer a minha espinha. Olhei para o centro da catedral e vi um feixe de luz cortar o corredor. Uma minúscula bola brilhante surgiu e cresceu rapidamente. O vento rugiu forte no centro da catedral, os bancos de madeira rangeram ao serem arrastados para o centro do redemoinho vermelho. Um Guia mais próximo foi o primeiro a colidir contra a energia maligna, seu sangue pintando o chão de pedra de carmesim, e quando seu corpo foi partido ao meio, suas vísceras foram espalhadas por toda a catedral.
O portal estava aberto e eu precisava dar um jeito de salvar Ignis e a mim mesmo. Só que eu não fazia ideia de como usar os poderes de um Guia.
Revisão Ortográfica por: Isabella Viard
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