Melina não quis sair de seu quarto. Ela não devia se preocupar com o infeliz do Thadeu, mas seu coração não conseguia se desviar desses pensamentos. O que será que aconteceu? Durante esses dias ela não conseguia dormir direito pensando no que poderia ter causado a morte de Anacrônica e os ataques aos negócios de seu pai. Seria o gato e a fada, ou algum discípulo que resolveu surgir em Boombayacles? Ficar pensando nisso não era a solução, ela precisava de respostas e o único jeito era investigar por conta própria.
A noite não foi tão animada como costumava ser na comunidade liderada pelo Dragão Cinzento. As ruas, sem crianças jogando futebol ou velhos fofocando diante de uma fogueira, mostrava o quão temerosas as pessoas ficaram com as notícias dos ataques. Era só um passo até Malphas resolver destruir tudo e todos. Melina cobriu sua cabeça com o capuz e continuou seu caminho.
Ela percebeu um movimento estranho nos becos e se desviou para as luzes da única padaria aberta. Os proprietários dormiam no balcão. Talvez eles ficaram cansados de esperar por clientes e caíram no sono, ou foram mortos por assaltantes. Malphas proibiu roubos em sua favela, mas às vezes alguns viciados não obedeciam às regras. O vício em pirimpimpim levou muitos jovens à morte somente para saciar aquele desejo de se conectar com o mundo mágico. Esse era o efeito desse pó, levar o usuário a mundos além da imaginação!
— Em que posso ajudar? — perguntou o atendente acordando com a respiração de Melina.
— Quero duas coxinhas — pediu Melina se sentando numa mesa de madeira velha e suja.
— Querida, a comida tá fria. Tenho só pastel de tarde e nem de carne é, mas vegano — disse o atendente.
— Não tem problema, me vê dois deles e um pouco de refrigerante.
Melina mordeu o pastel e sentiu um gosto amargo. O tempero amargou sua língua. Pelo menos o refrigerante foi um alívio que fez Melina suspirar. O atendente não tirou os olhos dela. Melina ficou desconfortável e se levantou. Quando estava se preparando para sair, o homem fechou a porta e fez sinal para ela voltar para mesa. O que diabos está acontecendo? Nesse momento, Melina sentiu falta de um guarda-costas.
— Você não gostou da minha comida? — indagou o atendente.
— Como assim? Você vai levar mesmo uma careta a sério? — disse Melina.
— Você conhece os temperos que usei para a preparação desse pastel que deixou sobrar no prato? Eu mesmo colho essas ervas e passo um mal bocado para não ser pego pelo seu pai!
— Meu pai? — Exclamou Melina. O homem sabia quem ela era.
— Não se preocupe, não vou fazer mal nenhum a você. Só estou pedindo, por gentileza, que você fique aqui até o homem que está lá fora ir embora.
— Que homem? — perguntou Melina olhando pela janela.
— Não olhe, sua idiota! — gritou o Atendente.
— Você conhece Maria e Helena? Elas são famosas por dirigir as boates dos dentes de sabre.
— O quê? Essa boate não está mais funcionando, o seu pai começou proibir festas noturnas até que o sujeito que tá te seguindo seja pego.
— Por Sýnpam, que sujeito é esse?
— Ele é o mascarado que diz ser um novo membro da antiga Guilda dos Heróis.
— Como você tem tanta certeza? Você dormia até agora pouco! — falou Melina voltando a morder o pastel.
— Sou meio elfo, não percebeu ainda? — o atendente mostrou sua orelha mutilada, um gesto ultrapassado que os elfos usam para marcar mestiços.
— Beleza… não tem problema, sei que vou sair dessa.
— O que fez a moça mais segura de Boombayacles sair do castelo de seu pai? — indagou o atendente.
— Curiosidade e preocupação com uma pessoa. Só o conheci por poucos dias, na verdade, só dois. Mesmo assim, eu sinto que ele não era uma má pessoa. Preciso descobrir se ele está morto ou se desistiu de ser meu guarda-costas.
Melina ficou cansada de esperar. O homem misterioso ainda estava lá fora, será que vale a pena mesmo esperar? A noite logo chegaria ao fim e sua investigação seria um desperdício de tempo. Ela se levantou. O atendente tentou dizer alguma coisa, mas ela fez um sinal para o homem calar a boca. “Seja lá quem estiver me esperando, terá que lidar com meu pai”. Os pés de Melina tocaram a calçada. A luz da lua serviu como um guia. Ela seguia o caminho desconhecido apenas confiando que o seu perseguidor não iria lhe fazer mal por ser a filha de Malphas. Que pensamento mais tolo… Uma sombra negra surgiu bem diante dos seus olhos. Ele usava uma máscara, trajes negros e tinha a presença dos heróis, os mesmos que os livros de histórias detalhava com tanto detalhes.
— Quem é você e por que tá me seguindo? — indagou Melina.
— Você ainda deseja punir o seu pai pelos pecados que ele cometeu? — disse a figura com uma voz distorcida.
— Como você sabe o que desejo? Nunca vi você em minha vida, quiçá te contar meus segredos!
— Malphas, o líder do Dragão Cinzento, fez tantas coisas ruins nesse mundo que nem preciso listar. Mas, como prova do que digo, sua mãe foi uma de suas vítimas. Ele forçou a pobre mulher a se casar com ele, imagine o quão sofrida foi sua vida.
— Onde você quer chegar, seu desgraçado! — gritou Melina.
— Estou te dando uma oportunidade de limpar o seu nome. Seu pai, como qualquer homem nesse mundo, tem uma fraqueza que o deixa vulnerável. Se eu descobrir qual é essa fraqueza, poderia derrotá-lo e dar fim a seu império manchado com sangue de pessoas inocentes.
— Eu… não consigo… — respondeu Melina, limpando as lágrimas dos olhos.
— Não consegue trair o homem que fez sua mãe sofrer? — gritou o homem.
— Quero que ele pereça, mas meu coração não consegue trair ele. Mesmo que eu quisesse, não sei sua fraqueza. Ele nunca me contou.
— Você disse que sabia!
— Eu disse? Quem é você?
— Ninguém, sou apenas um homem que deseja fazer justiça com as próprias mãos.
— Ainda sinto em meu coração um laço que me prende a Malphas. Preciso tirar ele ou não conseguirei ajudar você.
— Melina, se eu mostrar meu rosto, você viria comigo? — perguntou o homem.
— Para onde?
— Posso tirar esse laço que prende você ao seu pai, mas preciso que confie em mim.
— Por acaso tenho escolha? Mostre o seu rosto de uma vez.
O homem tirou a máscara revelando seu rosto. Melina começou a rir. “Não acredito que o maldito atirador de elite é o meu guarda-costas”. Thadeu fez uma expressão de raiva. O que deu na sua cabeça de querer ver a maldita filha de Malphas? Nem ele sabia. Desde o dia que a viu, seu coração começou a guiar suas escolhas. Quando a risada terminou, Thadeu deu um soco no rosto dela, fazendo-a desmaiar. Ele pegou o corpo e desapareceu na escuridão.
Melina abriu os olhos. Ela estava diante de Thadeu e Angélica naquela casa mais suja que galinheiro. Melina se levantou da cama e correu em direção de Thadeu para lhe dar um soco. Nosso herói segurou a mão dela e sorriu. Não foi sua intenção machucá-la. Se ele tivesse levado ela sem força, as pessoas poderiam desconfiar, além disso, ele queria fazer um pequeno teste.
— Você tem cabeça dura — zombou Thadeu.
— Quem você tá chamando de cabeça dura? — gritou Melina.
— Quando você sofreu aquele acidente de carro — disse Angélica —, sua cabeça bateu em cheio, mas, em vez do seu crânio ter se partido, foi o carro que quebrou.
— Tá doida? De onde saiu essa mendiga? E que diabos é esse barraco fedido?
— Você é filha de Malphas, provavelmente você herdou alguma coisa dele — falou Thadeu soltando a mão dela.
— Não faz sentido! Eu já tentei, não sou forte e mal consigo sair no frio sem ficar doente, imagine ter os poderes dele.
— Angélica, conta para ela.
— Como Thadeu disse, você tem laços que te prendem ao seu pai. Ele insistiu que eu ajudasse você a tirar eles do seu coração. Já adianto, isso é doloroso e você pode perder algumas memórias ou relembrar outras.
— Você vai me enfeitiçar? — indagou Melina.
— Naquele dia, na boate, você me disse que odeia tudo o que seu pai faz — disse Thadeu —, mas não consegue lutar contra ele, uma vez que seu coração ainda sente alguma coisa pelo homem que te criou. Não tem outro meio de tirar esses laços sem usar o tempo, mas não temos tempo para isso. Angélica criou uma poção que acelera esse “tempo” que levamos para curar as feridas. Como ela disse, o processo é doloroso, mas quando acabar, você terá se curado.
— Inferno… mil vezes — suspirou Melina —, se o que diz é verdade, por favor, me ajude a me livrar de Malphas.
— É só tomar isso e se deitar — disse Angélica entregando o frasco nas mãos de Melina.
— Não se preocupe, sei que você vai conseguir — falou Thadeu olhando nos olhos dela. Melina sentiu seu coração acelerar.
— Para de olhar um para o outro e toma logo essa merda! — gritou Angélica.
Melina tomou a poção e caiu logo em seguida. Os pensamentos dela se tornaram um redemoinho. Num piscar de olhos, sua alma atravessou uma cortina. Uma névoa branca e brilhante preenchia aquele cenário vazio. Melina sentiu que seu corpo já não era seu, mas de sua mãe. Ela não tinha o controle, era como um espectador assistindo a um filme na visão do personagem principal. Do meio da névoa, um homem vestido de policial veio em sua direção. Ele a abraçou com carinho e beijou sua testa.
— Filha, você já tá quase me alcançando!
— Papai, logo vou poder dirigir o nosso carro? — perguntou a menina.
— É claro que não! — zombou o policial —, sabe quanto custou essa brincadeira!
Outro redemoinho. Melina não era mais a criança. Seu corpo era do policial. Ele estava na delegacia diante de vários outros homens e mulheres. Alguma preocupação afligia aquelas almas. Olhar de desespero e algumas lágrimas podia ser visto. O Policial deu um soco na mesa.
— Draco Griseus matou nosso capitão sem nenhuma piedade — gritou Melina com a voz daquele homem.
— Quem dera fosse só nosso capitão! Esse moleque mal surgiu e já conseguiu derrubar os grupos rivais. Se não parar ele agora, logo esse verme vai se tornar o novo ditador de Miragem — afirmou uma policial.
— Vamos com calma! — gritou Melina. — Não adianta se desesperar, estamos lidando com um anormal que destruiu uma favela inteira sozinho em menos de 3 minutos. Quem somos nós para combater um anormal desse nível?
— Devíamos desistir enquanto dá tempo. É melhor viver covarde do que morrer herói — afirmou um policial elfo.
— Desistir é para os fracos. Sei que podemos mandar esse maluco para cadeia — disse Melina—, mas também sei dos riscos. Tenho uma filha de 19 anos, quero vê-la feliz. O certo é eu abandonar de uma vez essa ideia, mas sou um policial, jurei diante de Sýnpam que arriscaria minha vida pelos mais fracos e farei isso.
Como se fosse empurrada do próprio corpo por um vendaval, o espírito de Melina caiu no chão de uma sala vermelha. Ela se levantou. Sua mãe, uma jovem de 20 anos, ficou de pé ao lado dela. Malphas, vestido de noivo, puxou o braço dela, arrastando-a até o púlpito de madeira. Um sacerdote, gordinho e com uma expressão de medo no rosto, encarou o casal enquanto lhes abençoava com o livro sagrado. Melina escutou os gritos de seu avô sendo espremido feito uma laranja. Ele gritava “Por favor, eu prometo que nunca mais vou me meter em seus negócios, deixe minha filha em paz”, Malphas apenas respondia num tom seco e sem nenhuma emoção “Morra sabendo que sua filha será minha concubina, um simples brinquedo em meu harém. Seus netos serão meus filhos, toda justiça que você prega será esquecida e, num futuro próximo, eles tomarão o meu lugar no Dragão Cinzento e serão dez vezes pior do que eu um dia já fui!” A jovem, girando sua cabeça feito uma coruja, gritou o seu nome. Sangue escorreu da boca dela, alcançando os pés de Melina. Ela tentou correr, mas escorregou e bateu a cabeça no degrau do templo. “Você sente mesmo que seu paizinho te ama? Você é só mais um objeto dele, um prêmio para provar seu ponto de que qualquer um pode se tornar seu discípulo.
Melina acordou. Ela estava deitada na cama de Thadeu. Angélica e o nosso herói encarou seu rosto com uma expressão de preocupação. Ela não sentia as palmas da mão e seu estômago parecia que tinha uma enxurrada de formigas. Angélica não deu a mínima e saiu do quarto. O único que ficou foi Thadeu. Ele fingiu um olhar de quem não ligava para ela, mas Melina sentia sua preocupação. Duas horas atrás, Thadeu continuava de pé ao lado da cama esperando ela acordar. Angelica lhe perguntou “Por que você está querendo incluir a filha do nosso inimigo na operação?”. Essa pergunta pode parecer boba de início, mas possui uma pequena verdade que alfinetava o ego de Thadeu. Nos últimos dias ele vinha pensando em Melina, não como um alvo, mas como algo diferente. Ele não sabia o que aconteceu, na verdade, isso nunca devia ter acontecido! O que diabos significava aquela dor no peito? Até seu estômago doía quando pensava nela! “Eu só acho que podemos nos aproveitar da fraqueza dela para alcançar nosso objetivo, sua imbecil”. Angélica sorriu e deu um tapa no ombro dele, “Só se o objetivo for sua cabeça debaixo”.
— Por que você fica me encarando feito um psicopata? — indagou Melina.
— O que você viu e sentiu no mundo das lembranças?
— Uma dor terrível. Eu senti o sofrimento do meu avô e a tristeza da minha mãe. Meu pai pode ter me tratado como uma boneca, mas o que ele fez com minha família não foi justo! Ser forçada a se casar com o assassino do seu próprio pai, ter que se deitar com ele… esse homem é um monstro!
— Para matar esse monstro, vou precisar
de você — disse Thadeu.
— Esquece, não sei a fraqueza dele, já disse isso.
— Pouco me importa se você sabe a fraqueza dele ou não, você tem algo que podemos usar. Isniffi me disse que sua cabeça é forte e provei isso agora pouco. Você tem poderes e podemos usá-los contra seu pai.
— Poderes? Para de insistir nisso, mal consigo amassar uma lata de refri, quiçá enfrentar o homem que destruiu uma favela inteira em 3 minutos!
— É agora que eu entro. Treinarei você, transformando o seu corpo sedentário numa máquina de matar. Acredite em mim quando digo, em menos de um mês teremos descoberto seus poderes.
— E se não conseguir? Vai me descartar? — indagou Melina.
— Não se engane, você ainda é filha do meu inimigo — respondeu Thadeu forçando uma voz seca —, se não conseguir atender aos meus objetivos, vou descartá-la. Não preciso de mais um bebê chorão no time, quero uma guerreira e se não conseguir ser isso, sinto muito em dizer, você não serve para mim.
— Mal conheceu o rei das fadas e já se acha o capitão, não pense que estou concordando com essa ideia por sua causa. Quero ter poderes para enfrentar meu pai e, se tiver uma pequena esperança em seu treinamento, irei te obedecer. Mas se tentar alguma gracinha ou se eu sentir que está me enrolando para me fazer de boba e ter uma refém, chamo meu pai e deixo ele partir tua fuça.
— Quero ver você aqui todos os dias, sem se queixar. Farei todos os treinamentos que aprendi na ordem para levar o seu corpo ao limite. Você sentirá seus ossos doerem, sua carne arder e sua alma clamar para uma boa noite de sono.
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