O lugar de Anacrônica fora ocupado por Kami. Ela mexia a colher em sua xícara, deixando algumas gotas escorrer pelo seu dedo. Malphas, em sua mesa, comia seus pedaços de abacate. Sua expressão não era nada agradável. Naquele momento, Kami tinha a certeza de que os planos de seu amigo estavam dando certo. No meio da sala, dois homens, prostrados de joelhos, esperavam sua sentença. Kami sorriu. Ver o sofrimento de pessoas ruins como eles era bem divertido. Na última semana, ela vinha mantido bem o seu personagem. Ela até cometeu os assassinatos que Malphas ordenou sem contestar sua consciência.
— Vocês dois são uma desgraça! — gritou Puro Osso. — O negócio de nossa família foi destruído por sua negligência! Se vocês tivessem nos ouvido e prestado atenção em quem entrava ou saía de seus postos, provavelmente não estariam diante dos pés de meu pai.
— Quero ouvir de vocês tudo o que viram, cada detalhe — disse Kami.
— Está louca? — retrucou Papa Defunto —, já sabemos o que aconteceu, não precisamos ficar voltando ao vômito como um vira-lata.
— Se me permite dizer, já que sou nova em seu conselho particular, acredito que precisamos saber mais sobre o inimigo se quisermos combatê-lo.
— Tem razão — disse Malphas —, narre para nós tudo o que viram. Nossa equipe tem que ser uma família. Anacrônica pereceu, então não temos uma voz feminina para nos consolar, por isso, quero que tratem Kami como sua mãe. Será que fui claro?
— Sim, senhor — respondeu todas as vozes, incluindo a de Kami.
“Muito bem” disse o primeiro homem,“ na noite passada, nossa mina de ouro estava recebendo muitas visitas vindo de Mastigando Amor. Eles queriam comercializar uma nova espécie de bebida que faz o seu usuário encontrar os entes queridos no além-mundo. Eu estava em reunião com os vendedores e expliquei para eles que não nos metemos com esse tipo de mercadoria. O pirimpimpim tem sido muito útil e nosso comércio tem crescido tendo o pó como principal pilar. Os senhores sabem que sou o encarregado do ouro, sou eu que faço as compras e vendas de produtos pequenos. Lembro de ter recebido, do próprio senhor Malphas, uma carta me dando autorização para me livrar de coisas inúteis. Disse para eles se mandarem e tentar vender para outra pessoa que tivesse coragem de comercializar líquido falso. Os homens, cansados do dia de trabalho, me pediram uma festa.
Como havia sobrado uma certa quantidade de ouro que não faria falta no tesouro de meu Senhor, mandei os anões fazerem um banquete. Contratamos mulheres e animadores, fora que compramos muita carne para saciar nosso estômago. Foi uma grande noite. Ouve música e diversão, nem parecia estar prestes a acontecer um desastre. No meio da festa, vi um homem usando uma máscara estranha acompanhado do antigo dono da mina, o mesmo que o senhor tomou as esposas. Os antigos anões zombaram da cara dele. O corno retornou à própria casa para esquentar o ninho de amor do Ricardão! Era as piadas que contávamos. O homem mascarado parecia estar tenso. Ele segurava em sua mão uma estátua. Mandei os homens ficarem de olho nele. Não queria perder o meu prato de vista, por isso não fui pessoalmente ao encontro daquele sujeito.
Se arrependimento matasse, teria ido. Primeiro, escutei o som de tiros. O pessoal ficou histérico. Mandei as meninas se esconderem e, de imediato, peguei minha arma. Fiquei cercado por 30 dos melhores homens que o senhor possui em sua equipe. Vi, um por um, cair sem ao menos conseguir acertar aquele vulto. A mira dele era tão eficiente, que ele atirou na parede, para ricochetear na cabeça de um infeliz. Em sua mão tinha um orbe roxo. Pensei se tratar de alguma coisa que ele roubou da mina, mas logo se revelou algo muito pior. Luca, o nosso antigo chefe, implorou para o homem deixá-lo resgatar as suas esposas. Corno como sempre, ele correu rumo aos aposentos que o senhor usa quando está querendo relaxar com suas concubinas.
Aproveitei a oportunidade e acionei o alarme. Mais homens apareceram em meu auxílio, dessa vez, não eram anões, mas humanos do mesmo tamanho daquele infeliz. Os tiros foram tantos, que pensei ter sido o fim daquele maluco. O cara simplesmente saiu do meio da fumaça e espancou, sem armas, o reforço. Luca surgiu com suas mulheres logo atrás, mas acabou que elas se ofereceram ao misterioso. Luca ficou uma fera, uma vez chifrudo, sempre chifrudo. O Homem gritou para o estúpido fugir com as mulheres antes que aquela coisa explodisse. Foi então que percebi que aquilo se tratava de uma bomba!
— Toda nossa mina foi destruída — disse Kami, terminando o discurso do chefe da Mina.
— Sabe o quanto de ouro que perdemos? Pagamos vocês bem para proteger aquela merda e, como recompensa, recebemos a notícia de que nossos cofres se esvaziaram — gritou Kami.
— Não faço a mínima ideia de como isso aconteceu. Já vi vários tipos de bombas e nunca presenciei uma que devora o ouro, mas deixa intacto a carne.
— Isso se chama magia, seu anão idiota — resmungou Malphas, para o espanto do líder da mina.
— Quando ele terminou de destruir tudo ao seu redor, o infeliz veio até mim. Ele ficou de joelhos para alcançar meu rosto. Sua conversa poderia parecer um delírio se fosse dita antes do retorno do Gato e a Fada. Seu nome era Atirador de Elite. Ele disse ser um Herói, igual aos antigos, que foram mortos por Abrek. O atirador me deu essa estátua de mulher nua e me fez prometer que contaria a você que ele está te procurando. Peço desculpas por não ser forte e alto para acabar com aquele desgraçado. Sei que errei, mas peço o seu perdão. Prometo que irei recompensar. Não financeiramente, visto que nem uma toca possuo, mas com minhas habilidades.
Antes que o pobre anão terminasse sua fala, a arma de Kami disparou, acertando a cabeça do infeliz. Todos a olharam com expressões de susto. O único que tinha autorização para matar dentro daquele lugar era Malphas. Kami sorriu. O seu chefe olhou para ela e fez um sinal de aprovação. Papa Defunto e Puro osso acharam um ultraje. Ele estava amolecendo seu coração de um jeito que nem Anacrônica conseguira.
— Tudo bem, temos a confirmação de que estamos lidando com um herói — afirmou Kami —, mas preciso de mais informações. Sei que ele é um atirador de elite, tem o antigo dono da mina como aliado e quer restaurar a antiga guilda dos heróis, contudo, creio que isso não é o suficiente. Você ai, o chefe da fazenda dragão amarelo, espero que o que sair de sua boca não provoque o meu dedo.
“Como posso descrever o que vi?” disse o homem de uma perna só. “A fazenda tem vários hectares, sendo em sua maioria uma plantação da raiz usada na preparação do pirimpimpim. Os trabalhadores que o senhor mandou, aqueles mesmos que deviam dinheiro ao dragão cinzento, estavam recebendo o treinamento adequado. Como minha perna não é das melhores, fico responsável pelo treino. Tinha cinco meninas de 18 anos, 10 homens na casa dos 30 e duas velhas. Nosso treinamento começa com o que chamo de primeiro módulo: você pertencente ao comando. Entre os homens, tinha um em particular que usava uma máscara de arlequim assustadora. Mandei ele tirar aquela porcaria, mas o homem respondeu que seu rosto fora desfigurado e por isso cobria sua face. Peguei meu chicote e acertei um golpe nas pernas dele. Em vez de cair, como costuma acontecer, o infeliz ficou parado como se já tivesse passado por coisa pior. Como estava de noite, mandei os homens levarem os novos empregados para o celeiro, o lugar que colocamos esses vermes para dormir. Eu estava me sentindo um pouco animado e mandei chamar uma das moças. Os devedores são menos do que nada, por isso considero eles meros objetos que devem ser usados para nossos caprichos.
Uma mulher chamada Emily foi a escolhida. Levei ela até meu quarto e mandei que tirasse as roupas. Quando ela tirou, fiquei assustado. Ela era feita de pano, como se fosse uma boneca. Me lembrei do que disseram os antigos sobre a dona daquela pocilga. Gritei por ajuda, mas ninguém respondeu. Abri a janela e vi um cenário apocalíptico. As plantações estavam queimadas. Em meio às chamas, vi aquele homem mascarado. Ele atirava com tamanha precisão que acredito nunca ter visto tal habilidade em toda minha vida! Emily me levou até ele. Os seus olhos eram expressivos o suficiente para sentir todo seu desprezo por mim. Ele colocou o cano de sua arma na minha boca e disse: Homem inútil, você vicia crianças nessa porcaria de perimpimpim, fazendo da vida deles uma prisão e os mata se não pagarem por mais. Quantas pessoas inocentes vocês não mataram nessa fazenda? Diga ao seu mestre que toda crueldade que seu comando está causando será vingado. Meu nome é atirador de Elite e trarei das cinzas a antiga guilda dos heróis.
— Acredito que ele tenha te dado uma estátua? — perguntou Kami.
— A mesma que o meu companheiro anão recebeu — respondeu o homem de uma perna só.
— Impossível! — gritou Malphas logo após destruir o homem com um sopro.
— Isniffi Ikari está por trás disso! — afirmou Papa Defunto.
— O Ikari? Ele está agora numa ilha lutando contra uma princesa macaco, está saindo nos noticiários — respondeu Kami mostrando a foto em seu celular.
— Nossos rivais estão cientes desse ataque? — perguntou Malphas.
— É claro que estão e, digo mais, devem estar bolando alguma coisa para tentar nos superar na venda de perimpimpim! — disse Kami.
— Se o que diz é verdade, vamos ter que usar a força para mostrar a esses inúteis quem é que manda — disse Puro Osso.
— E atrair a General Mãos Turbina? — indagou Kami. — Acham mesmo que a amiga da imperadora de Miragem vai deixar a reputação de mandachuva ir embora sem uma boa briga? Se provocarmos uma guerra, teremos que estar prontos para esse confronto.
— Mais uma vez, Kami tem a voz da razão — afirmou Malphas. Não atacaremos as outras facções. Precisamos acabar com esse novo herói em primeiro lugar. Se apagarmos a rebelião antes que tenha início, teremos a vantagem do tempo a nosso favor.
— Malphas tem razão. Os heróis não podem voltar, não agora que estamos sem preparo para isso. Por isso, eu mesmo irei caçar esse imbecil — disse Papa Defunto, tomando coragem para falar o nome do seu chefe.
— Você disse o mesmo há alguns dias, porque devo confiar agora? — perguntou o líder fuzilando seu subordinado com um olhar sinistro.
— Tenho informações suficientes, agora sei quem devo procurar e onde encontrar, me dê dois dias e trarei a máscara dele até sua mesa.
— Só mais dois dias, se não, você morre — falou Malphas voltando a morder seu abacate.
…
Kami deixou a água do chuveiro escorrer pelo seu corpo. Ela pegou o sabonete e acariciou sua bochecha. O cheiro de rosas era tão gostoso que ela sorriu. Esse aroma a fez se lembrar do dia que ensinou seu falecido marido a dar banho na sua filhinha. O homem era horrível! Foi nesse dia que eles fizeram um acordo de que somente ela iria dar banho na pequena fedorentinha. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Aquela tristeza maldita veio lhe visitar. “Se ao menos eu pudesse voltar ao tempo… nunca teria me casado tão jovem. Meu namorado não teria me engravidado e ele nunca teria entrado no mundo do crime” Kami olhou para seu pulso e ficou tentada a se machucar, mas controlou sua respiração e se lembrou do motivo que a ainda lhe mantém viva. “Vou matar aquele verme, mas antes farei ele sentir a mesma tristeza que senti… aquela filha maldita dele sangrará, eu prometo!”
Uma sombra cobriu o banheiro. Ela pegou sua semiautomática que deixou na tampa da privada e olhou ao seu redor em busca do invasor. Ela estava sem a máscara que cobria sua verdadeira identidade. Baratas saíram de todos os cantos, formando uma face na parede. Era o rosto do Papa Defunto. Ele não conseguia enxergá-la, uma vez que aquilo era um feitiço barato de recado e Kami o conhecia muito bem. “O que esse maldito está querendo no meu banheiro?”
— Kami, não tenho muito tempo, mas preciso lhe dizer algo sobre o atirador de elite — disse Papa Defunto.
— E precisava ser bem na hora do meu banho?
— Não se preocupe, não consigo enxergar pelas baratas, somente comunicar mensagens.
— Fala logo o que você sabe?
— Acredito que podemos atrair ele se fizermos algo grande. O chefe nunca permitiria, ainda mais que isso pode atrair a atenção da QianQian para o nosso território.
— Tá querendo explodir a cidade?
— Mais ou menos isso.
— Por que você não faz de uma vez? Matar o atirador de elite é sua função, não minha.
— Você é a única que pode limpar minha barra se o plano der errado.
— Sei que o chefe me respeita, mas não acho que isso garanta sua cabeça se a QianQian colocar os pés nesse castelo.
— Você só pode ser uma tola — afirmou Papa Defunto —, olhe para os olhos dele e você vai ver que a maldita praga da paixão está tomando o coração dele.
— Ele nunca se apaixonaria por mim, ele não tem coração e muito menos caráter para isso. Ouvi histórias de que quando ele quer uma mulher, não importa de quem seja, ele a obtém. Por que diabos ele ainda não tentou nada comigo? O cara tem poder para destruir uma nação, o que sou eu para ele?
— Aí está o motivo dele gostar de você. Malphas considera as mulheres brinquedo, quando ele quer brincar, ele toma do seu dono e depois joga fora. Você é a única que ele não ousou relar o dedo. Ele te ama, isso garanto, use a seu favor.
— Malphas tem um coração, não consigo acreditar — disse Kami perplexa.
— A fraqueza de todo homem é o seu coração. Quando uma mulher consegue penetrar aquele muro que nos protege, nos tornamos seu escravo. Você é a dona do coração dele e conseguiu derrubar esse maldito muro. Use isso a seu favor, comande ele como uma rainha e nos ajude a tornar o Dragão Cinzento mais relevante em Miragem.
As baratas foram embora, deixando Kami no banheiro sem entender o que significava ser a dona do coração de Malphas. Algumas lembranças vieram em sua mente; o jeito como ele a tratava e como olhava para seu rosto e sorria. Isso! Ela conseguiu uma arma muito melhor que QianQian ou Isniffi, Kami conseguiu o coração do pior homem que já existiu em nosso mundo. Um sorriso macabro enfeitou seu rosto.
Comments (0)
See all