Flores de todos os tipos. Uma mesa pintada com cores análogas. Quadros de crianças chorando espalhados pela parede. Cheiro de cigarro misturado com velas aromáticas. Som de ventilador irritante. Pingos de água. A luz do sol batendo no olho. Ele tentou proteger a visão com o travesseiro. “Que lugar é esse?” Perguntou enquanto se levantava do colchão.
O chão, feito de madeira, soltava um ruído a cada passo. A cozinha cheirava forte, parecia que não via limpeza há alguns dias. Thadeu tombou. Ele ainda sentia a pancada que levou daquele carro. Era para estar morto, mas por algum milagre o motorista conseguiu salvá-lo.
Os copos estavam sujos. Thadeu pegou a esponja e começou a lavar uma caneca. Ele a encheu com água e tomou num único gole. A sensação refrescante o deixou mais animado. Sua boca estava seca, era como se tivesse dormido muito mais do que devia.
— Atirador de elite… — sussurrou uma mulher pálida com cabelo sujo e roupas surradas.
Thadeu se assustou. Ele pegou a caneca, quebrou-a na pia e ameaçou aquela figura estranha com sua arma improvisada. A mulher sorriu. Seu rosto era de quem já tinha visto muita coisa para temer um doido e sua caneca.
— Gostou do meu cafofo? — perguntou a mulher procurando alguma coisa naquilo que ela chamava de armário.
— Quem é você e por… — antes que ele terminasse, um rato saltou de dentro do armário, o assustando.
— Desculpe, não costumo fazer faxina no sexto dia.
— O quê? Mulher, a tua casa tá um nojo… — afirmou Thadeu.
— Você deve ser o novo guarda-costas da filha do chefe.
— Como você sabe?
— Você ficava falando isso toda hora enquanto dormia — sorriu a mulher.
— Voltando à minha pergunta, quem é você?
— Meu nome é Angélica, sou conhecida por ser a maluca do bairro. Sem querer querendo, eu acabei te atropelando há cinco dias
e não quis levar você ao hospital, ainda mais com a bagunça que você havia feito na casa da piriguete do Malphas.
— Tô cinco dias sem aparecer? — indagou Thadeu.
— Isso é bom, todos estão achando que você morreu, incluindo a filha do chefe.
— Você é muito inteligente para não ser ninguém.
— Digamos que tenho contatos, incluindo na sua ordem — disse Angélica, causando uma expressão de espanto no rosto de Thadeu.
Angélica pegou um pacote de biscoitos embolorado e ofereceu a Thadeu. Ele encarou aquela mulher misteriosa com a sobrancelha levantada. Ela ergueu os ombros e, com um olhar de deboche, devorou aquele biscoito mofado como se fosse a coisa mais gostosa do mundo. Thadeu sentou na mesa, um rato subiu pela sua perna e saltou para cima de uma migalha que Angélica deixou cair.
— Se todos estão achando que morri, a missão foi por água abaixo.
— Pelo contrário, a missão ficou muito mais emocionante. Digamos que agora você tem a oportunidade de investigar a fraqueza do chefão sem se preocupar com Kami.
— O que você está dizendo?
— Você pode usar o anonimato, isso vai te dar uma vantagem que seu método antigo de investigação nunca daria.
— Só posso estar conversando com uma louca.
— Draco Griseus está preparando algo que vai abalar o mundo — disse Angélica com uma expressão assustadora —, ele planeja destruir ambas as comunidades rivais numa única noite.
— QianQian virá atrás dele no outro dia.
— Você acha mesmo que a imperadora de Miragem vai deixar de fazer o que está fazendo para salvar a vida de pessoas miseráveis? Somos pobres, os ricos estando seguros, já está de bom tamanho.
— Eu não estou aqui para impedir as loucuras de Draco Griseus, fui enviado para matá-lo…
— Pense por um instante. Você era a babá da filha dele, um cargo que tem o mesmo valor que uma latrina. Sua amiga, uma psicopata, só está fazendo crimes em vez de descobrir a fraqueza do líder. Você sabe, mais do que qualquer um, sua amiga não está pronta para essa missão. Use o anonimato a seu favor, destrua o negócio de Draco Griseus e você verá um homem desesperado e vulnerável.
— Destruir o negócio de pirimpimpim? — indagou Thadeu.
— Pirimpimpim é a única coisa que faz esses traficantes ricos. Se você destruir o negócio deles, o poder que eles têm, sumirá. Draco Griseus tem um ego do tamanho de um elefante, porém, ele ainda tem medo. Proponho que você me ajude a provocar esse medo ao ponto dele ficar desesperado.
— Se isso acontecer, quem vai garantir que ele não mate todos nós?
— É aí que sua amiga entra. No desespero, as fraquezas de Draco Griseus surgirão. Ele tem uma mente fraca que nunca enfrentou o desespero. Coloque uma pitada disso na vida dele e aquele muro de autoconfiança será destruído.
Thadeu ficou parado observando aquela figura estranha comer o biscoito mofado. Ele sabia que não podia confiar em ninguém, mas aquela mulher parecia ser diferente. O olhar dela, seu sorriso sujo e roupas surradas davam uma certa confiança.
— Mesmo se eu quisesse, o meu mestre não permitiria que eu andasse por aí fantasiado — falou Thadeu aceitando um biscoito.
— É agora que entra sua amiga.
— O que você tá sugerindo?
— Ela vai dizer ao seu mestre que você morreu — disse Angélica com um sorriso.
— Tá doida? Ele nunca engolirá!
— Como eu disse, tenho contatos em todos os lugares. Seu mestre não liga para vocês dois, ele apenas quer ver Draco Griseus morto para reerguer aquela ordem falida.
— Me dê um dia para pensar…
— Está bem, você tem um dia, se demorar muito, eu te dou mais um! Meu plano depende de você, sem sua pessoa, continuarei sendo a doida da casa suja.
…
O castelo de Malphas não era bem o lugar que Thadeu queria visitar. Seus passos eram lentos. A noite não permitia que sua presença fosse vista pelos homens armados. Ele encontrou uma brecha nos muros e escalou rumo à quinta janela. “Que inferno, não acredito que tô fazendo isso.” No lado de dentro, Melina chorava a morte de seu guarda-costas. Thadeu sorriu. Logo deixou sua expressão ser substituída por um ar raivoso. “Não posso me simpatizar com ela.” Ele continuou escalando. O tempo estava mudando. Pingos de chuva começaram a cair. Ele resmungou uma maldição. Para sua sorte, a janela de kami estava ficando mais perto. Thadeu precisava avisar sua amiga sobre sua saúde.
Kami, sentada em sua cama, olhava apreensiva para janela. Ela esperava que seu amigo retornasse. Um assassino da estirpe de Thadeu não pereceria nas mãos de uma mulher como Anacrônica. Um sorriso surgiu no rosto de Kami. Thadeu pulou a janela e tropeçou no criado mudo, caindo aos pés de sua amiga. Ela o ajudou a se levantar e lhe deu um abraço apertado. Thadeu sentou ao lado dela e contou tudo que aconteceu na casa de Anacrônica e como conheceu Angélica.
— Nem mesmo a mulher que dormia na cama dele sabe sua fraqueza — suspirou Kami —, não sei se é o certo a gente continuar nessa loucura. Se Malphas descobrir que tô usando uma fantasia para enganá-lo, seremos mortos.
— Não podemos desistir. Chegamos até aqui, após anos treinando com os piores métodos que esse mundo já inventou. Não podemos jogar isso fora.
— Preciso te contar uma coisa — disse Kami —, hoje de manhã, Malphas nos convocou para uma reunião. Ele disse em alto tom: “O Gato e a Fada matou a Anacrônica!” Os membros ficaram assustados. O filho de Malphas sugeriu que a gente deixasse Boombayacles, mas o papa defunto retrucou: “Não faz sentido, as lendas são claras, Isniffi Ikari não mata. Ele matou Abrek porque foi necessário, mas fez de tudo para salvar a alma dela, mesmo quase sendo morto no processo.”
— Malphas concordou com ele e perguntou se eu tinha alguma coisa a falar sobre tudo isso. Não podia defender você, ou seria morta e nossa missão acabaria ali mesmo. Fiz algo que não queria ter feito, disse para eles “O Gato e a Fada não estão mais na cidade. Eles querem derrubar o novo ditador, não precisamos nos preocupar, mas não significa que devemos dormir. Acredito que o assassino tenha a ver com os comandos rivais e acho que eles estão nos caçando. Malphas concordou com o que eu disse. Foi nesse momento que o papa defunto se ofereceu para caçar o responsável, “Não se preocupe, trarei a cabeça do responsável em suas mãos, meu velho amigo”.
— Uma pena que a morte de Anacrônica não rendeu em nada. Como que o medo que ele sente da QianQian e do Gato e a fada pode nos salvar? — indagou Thadeu.
— Você já pensou que isso pode ser alguma pista da fraqueza dele?
— Uma coisa é certa, ele tem poderes para enfrentar QianQian e o gato. Precisamos saber o motivo de não ter tentado. Por isso, preciso agir nas sombras.
— O que você tá falando? — perguntou Kami.
— Quero agir do meu estilo, sem a ordem da serpente me dando ordens. Por enquanto, você mandará um relatório ao nosso mestre dizendo que estou morto.
— Loucura! Você precisa voltar ao seu posto de guarda-costas, esse é o único caminho.
— Me escuta. Acredito que a fraqueza de Malphas só poderá ser descoberta se colocarmos pressão nele.
— O que você está planejando? — perguntou Kami com uma expressão de preocupação.
— Não sei, estou apenas seguindo meus instintos. Farei da vida de Malphas um verdadeiro inferno. Você aproveitará esse momento para sondar ele. Com sua preocupação numa nova ameaça, Malphas não irá te trazer problemas.
— E quanto ao papa defunto?
— Não se preocupe, vou dar um jeito nele. Lembre-se, a nova ameaça surgirá em breve. Você terá que caçar essa ameaça, mesmo sabendo que sou eu. Se você me capturar, não hesite em me matar. Estamos num jogo e devemos aprender a jogar.
— Seu maluco… — suspirou Kami fitando os olhos dele — está bem, vou confiar em você. Não me decepcione, você sabe o que irá acontecer se a gente falhar.
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