Ondas de gritos e aplausos irrompiam das arquibancadas do Coliseu. Sara acompanhava o entusiasmo da torcida, embora preferisse aplaudir mais e gritar menos. Ao seu lado, Alana mantinha-se mais contida, soltando comentários ocasionais sobre as lutas e batendo palmas somente quando o desafiante entrava e saía da arena.
As gêmeas estavam acomodadas na ala branca, reservada aos fidalgos, que, comportando apenas 10% da capacidade do estádio, encontrava-se tão cheia quanto as alas cinzentas, destinada aos vulgares. Por isso, Sara e Alana estavam rodeadas por fidalgos de todas as idades — crianças de Jardim de Infância, adolescentes de escola fidalga, magos da Academia e auranos.
Camilo não pôde fazer companhia a elas naquela tarde, estava ocupado com a patrulha nas fronteiras do país. Era uma pena, pois sua presença costumava ser fonte de explicações valiosas sobre as magias utilizadas pelos magos e também sobre os desgarrados enfrentados. Sara precisou se contentar com a conversa alheia de um trio de magos atrás dela, que entre uma análise e outra, se perdia em fofocas triviais, como a confissão de que um deles já havia dado uns amassos na maga que, naquele exato momento, duelava contra um ogro de porte médio na arena.
Quando essa mesma maga finalmente derrotou o desgarrado, Manuela, a narradora do Coliseu, anunciou com sua voz retumbante nos alto-falantes que mais uma jovem havia conquistado o título de aurana, provando suas habilidades no uso da aura e sua capacidade de enfrentar os inimigos naturais da espécie neriquiana. E assim, o teste de graduação da Academia prosseguiu, com cada novo participante se tornando um aurano ao eliminar a criatura posta diante dele.
Assistir aquelas lutas inflamava os sonhos de Sara de estudar na Academia, imaginando as incontáveis coisas que aprenderia nela, com a perspectiva de, anos depois, entrar naquela mesma arena como uma maga. Alana, no entanto, nutria devaneios bem diferentes.
— Ai, não aguento mais. Quando é que ele vai entrar? — reclamou a irmã, referindo-se ao amor platônico dela e o principal motivo que levou-a a assistir os testes naquele dia. — Estão guardando ele pro final, só pode.
E foi exatamente como ela previu. Quase às oito da noite, a última luta do dia foi anunciada. O rosto de Juan Mostar surgiu no telão do Coliseu, e os gritos femininos ecoaram pelo estádio, com Alana se juntando à euforia:
— Uuhhh! Gostoooso!
— Alana, menos! — bufou Sara, revirando os olhos, mas contendo um riso diante do entusiasmo da irmã.
— Ah, não enche. Vai dizer que tu não acha ele um gato?
— Não gosto de mostarda — provocou ela, usando o apelido que dera ao rapaz quando queria tirar sarro da obsessão da irmã.
No telão, o mago “Mostarda” exibia seu topete com mechas de cor castanha e de um amarelo claro. O rosto moreno e barbeado, com uma mandíbula bem marcada, combinava com sua estatura alta e musculosa. De fato, eram atributos chamativos, mas poucos atraentes para Sara. Talvez ele simplesmente não fosse o seu tipo, o que a fazia se sentir um tanto deslocada em meio à gritaria ensurdecedora das meninas na arquibancada.
— É só um rostinho bonito. Que gente emocionada — murmurou, mais para si mesma.
Juan Mostar havia se tornando uma sensação entre o público feminino desde sua participação em uma novela. Alana, claro, não perdia um capítulo sequer ao voltar da escola. Sara assistia de vez em quando com ela, mas não via lá muita graça no casal de fidalgos que protagonizava a história. Parecia que todas as jovens fidalgas tinham se apaixonado pelo rapaz — ou pelo menos era o que Alana vivia comentando, já que Sara quase não interagia com adolescentes da sua casta para perceber a magnitude daquela febre midiática.
— Confiram agora a entrevista com o último participante do dia — anunciou Manuela, chamando a atenção de todos para o telão. — Vamos conhecer um pouco mais sobre esse rapaz que arrebata o coração das moças fidalgas: Juan Mostar!
O tanto de berro que tomou o Coliseu quase fez Sara tapar os ouvidos. Quem teve a ideia apelativa de entrevistar o Mostarda com o peito nu brilhando de suor, em plena praça à luz do dia? Para piorar, o rapaz procurava ostentar um sorriso de dentes brancos durante a maior parte da entrevista, ao ponto de quase parecer forçado.
— Ui! Nossa. Que delícia de calor — comentou Alana, abanando o pescoço com o folheto onde constava o cronograma das lutas.
— Será que é porque estamos no verão? — devolveu Sara.
— Ah, você entendeu.
Perto do fim da entrevista, o repórter fez a pergunta que pairava na mente de todas as meninas da ala branca: o coração de Juan Mostar estava livre ou já pertencia a alguma moça? Sara não pôde deixar de sorrir, prevendo que sua irmã e as garotas tinham o coração delas na boca prontas para oferecê-lo ao mago Mostarda. Secretamente, ela torcia para o rapaz dizer que estava comprometido, apenas para se divertir com a decepção no rosto delas.
— É uma pergunta complicada… — disse Juan, soando evasivo. — Mas sim, meu coração já pertence a uma pessoa.
Um “Ohhh!” profundo varreu as arquibancadas como uma brisa fria. Alana levou a mão à boca, e o brilho de seus olhos pareceu se apagar. Era o fim de um sonho.
— É mesmo? E quem é a felizarda? — perguntou o entrevistador.
— Bem… não posso dizer quem é — disse Juan, com um sorriso enigmático. — Essa pessoa ainda está aguardando uma declaração minha. E quero dizer “eu te amo” apenas quando estivermos a sós.
O novo “Ohhh!” foi ainda mais melódico, como se todas as meninas estivessem se derretendo. Quando a entrevista acabou, Sara ouviu a irmã comentar, meio borocoxô das ideias:
— Não acredito que ele está apaixonado por outra garota…
— E eu não acredito que você achava que tinha chance. O cara é um mago formado, e você é só uma menina de quinze anos.
— E o que que tem? — retrucou Alana, chateada. — Eu sou de uma família de ouro. Nas festas dos meus amigos, vários magos dão em cima de mim. Aaaah, eu queria ter conhecido o Juan pessoalmente, só uma vez.
Sara não deu corda ao desencanto de Alana, ainda mais com a irmã mencionando seu círculo social exclusivo, algo do qual Sara não compartilhava e, honestamente, tinha inveja.
Na sequência, a voz da narradora ecoou novamente, anunciando a entrada do mago Mostar na arena. Holofotes de luz dourada iluminaram sua figura, destacando-o na arena elíptica de terra batida. Alana, apesar de desiludida, não deixou de gritar e torcer por seu ídolo com toda a animação que lhe restava. Diferente da entrevista, o Mostarda estava vestindo o uniforme da Academia — camisa branca, colete cinza, calça verde e botas escuras —, próprio para o combate.
Do outro lado da arena, as grades começaram a subir, revelando a criatura que Juan enfrentaria: um arrasta-mãos. De acordo com a informação no telão, o monstro tinha três metros de comprimento e locomovia-se como um ser quadrúpede. Em seu corpo preto como a escuridão, sua particularidade colorida era a cabeça calva de tonalidade esverdeada. Abaixo da região do tronco, ele era um ser disforme, uma montanha de carne sem pernas. Por isso, usava as mãos de seus braços longos para se arrastar no chão. Era um desgarrado de movimentação bastante lenta, mas compensava essa desvantagem com uma língua capaz de se esticar até sua presa a uma distância e velocidade impressionantes.
No entanto, como na esmagadora maioria dos testes de graduação, o arrasta-mãos não representou uma ameaça real para o mago Mostar. Quando a língua da criatura se lançou e prendeu o braço direito de Juan, ele manteve a calma, usando o braço esquerdo para liberar dezenas de folhas de árvores guardadas numa sacola amarrada à cintura. Num movimento habilidoso, transformou aquelas folhas em lâminas verdejantes e cintilantes, que voaram com precisão até a língua esticada, cortando-a como navalhas afiadas. As folhas, então, continuaram sua trajetória em direção ao corpo do desgarrado, circundando-o e decepando-o como se controladas por um vendaval. O arrasta-mãos logo se tornou uma massa de carne mutilada, sangrando um líquido negro que, aos poucos, formou uma poça sob sua carcaça, até que, sem vida, desintegrou-se em um pequeno monte de poeira escura.
O Coliseu foi ao delírio com aquele encerramento. Os aplausos foram os mais efusivos da noite e os gritos foram os mais ensurdecedores, fazendo com que Alana, extasiada, se levantasse em meio ao clamor do público — um gesto que era tecnicamente proibido, mas que foi repetido por muitos na multidão, contagiados pelo frenesi do momento. Juan Mostar, agora “aurano Mostar”, erguia o braço em sinal de vitória, banhado pela luz dos holofotes e pela aclamação do público.
Sara ficou observando o jovem na arena enquanto o Coliseu inteiro o ovacionava, e uma ideia passageira tomou conta de sua mente: dali a alguns anos, poderia ser ela a estar naquele mesmo lugar, ouvindo a multidão gritar seu nome. “Aurana Buarque”.
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