O gemido de angústia do aurano ao arrancar a adaga cravada em seu ombro era quase perturbador de tão convincente. Talvez ele, de fato, estivesse com a lâmina fincada em sua carne e todo aquele sangue empapando o uniforme fosse real. Sendo o próprio ator um aurano, bastaria um comprimido de curamida para sarar a ferida e apagar qualquer vestígio do corte em segundos.
Duas batidas na porta, seguidas de uma voz familiar, fizeram Sara baixar o volume da TV. Logo o murmúrio de vozes e o som da música que entrava pela janela do quarto tornaram-se insuportavelmente mais audíveis, invadindo seu refúgio com a lembrança constante de uma festa na qual ela deveria estar presente. Era muito azar o seu aposento localizar-se justamente de frente para o salão improvisado.
— Enjoou da festa? — perguntou Camilo, entrando no quarto com a leveza de quem conhece bem o estado da filha.
— Ahã — Os olhos de Sara ainda estavam fixados na cena do filme, como se pudesse se perder naquela angústia fictícia e esquecer a sua própria.
— Não quer voltar lá e… tacar um drink de chocolate na cara de alguns jovens. — A proposta quase arrancou um riso da garota. Vontade ela tinha, mas não queria estragar a noite da Alana. — Daqui a pouco vai começar a valsa. Você aceitou que dançaria com sua irmã, não é?
— Ela que se vire achando outro par — disse Sara, lançando um breve olhar para a janela.
— Certeza? Ela estava animada para dançar com você.
— Diz pra ela que não estou me sentindo bem — respondeu, olhando para o pai e se preparando para rechaçar todas as tentativas que a fizessem voltar para aquela tortura a céu aberto, no entanto…
— Está bem. Vou pedir a Helena subir aqui depois com alguma coisa para você comer. Quando a festa é ruim, ao menos a comida tem que valer a pena, não acha?
Camilo simplesmente deu meia-volta e caminhou até a porta. Mas, antes de sair, Sara se levantou da cama e envolveu-o num abraço.
— Obrigada.
Ele acariciou sua nuca e, antes de deixar o quarto, disse suavemente:
— Se precisar de mim, peça a uma das empregadas me chamar, está bem?
Sara voltou à cama. Era bom ter um pai compreensivo que fazia de tudo para lhe garantir um ambiente seguro e confortável, mesmo que isso implicasse em decisões ao seu contragosto, como tê-la mandado a uma escola vulgar em vez de uma instituição fidalga. Camilo não precisou de muitas palavras para compreender que aquela festa, com toda a sua pompa e circunstância, não era um bom ambiente para sua filha de cabelos escuros.
Apesar disso, ao ouvir no microfone que em breve dariam início à dança, Sara desligou a TV e pôs uma cadeira ao lado da janela. Empurrou levemente a cortina e espiou a movimentação lá embaixo.
Seus olhos buscaram a silhueta da irmã. Encontrou-a conversando com um trio de fidalgos adultos, parados em pé com uma bebida na mão. Não demorou para Alana dispensá-los e dar atenção a um par de jovens garotas; depois a um homem de meia idade; e, em seguida, a uma mulher acompanhada de uma criança. Todos ali se revezavam para trocar palavras com a debutante, como se fosse uma obrigação tratar a jovem com tamanha deferência. Chegava a ser um incômodo testemunhar o quanto Alana era bajulada, o quanto ela parecia importante, o quanto parecia fidalga, o quanto Sara gostaria de estar no lugar dela.
Quando a valsa começou, assistiu a irmã e o pai dançarem no espaço reservado à dança, rodeados por todos os convidados. A cena desencadeou uma sensação estranha nela, como se uma manta invisível a cobrisse, separado-a do mundo e das pessoas que ela mais amava. Tentou imaginar-se lá embaixo, entre os neriquianos de madeixas coloridas, mas a imagem se desmanchou em sua mente, insustentável. Apesar daquele salão ser grande o suficiente para comportar mais centenas de pessoas, Sara não conseguia encontrar um espaço para si.
A primeira dança terminou, e seu pai deixou Alana para que ela escolhesse um novo par. Como Sara não estava presente, teria de ser um garoto. E qual não foi sua surpresa ao ver a irmã caminhar até a borda da pista e puxar Thales Montenegro para o centro dela.
— Só pode estar de sacanagem… Por que justo aquele imbecil?!
Assistir os dois dançando juntos foi de embrulhar o estômago. Foi também a gota d’água que faltava para não desperdiçar mais seu tempo com aquela festa idiota.
Levantou-se da cadeira, fechou a cortina e saiu do quarto. O som da valsa ainda ecoava pelos corredores, provocando imagens que ela gostaria de banir de sua memória. Ela poderia facilmente sair de casa, caminhar sem rumo pelas ruas de Lerofonte, para bem longe de onde a festa acontecia, poderia até mesmo se enfurnar na floresta vizinha à cidade. Mas preferiu uma alternativa mais segura, menos exaustiva — um lugar mais próximo, onde pudesse desfrutar de um silêncio absoluto.
Minutos depois, já havia descido as escadas até o subterrâneo, atravessado o salão de treinamento da família e alcançado o porão. Ali, sentou-se sobre uma almofada, as costas apoiadas na parede fria, onde nenhum ruído do mundo acima lhe chegava aos ouvidos.
No entanto, o isolamento físico não foi o suficiente para manter Alana longe de seus pensamentos. O cavalete, as telas penduradas nas paredes e o restante do material de pintura guardados no porão, que Alana havia transformado parcialmente em um ateliê, pincelaram traços de uma inveja inevitável no rosto de Sara.
Por que tinham que ser tão diferentes, mesmo sendo gêmeas? Será que, algum dia, seus cabelos iriam refletir o mesmo azul que os dela?
Riu de si mesma ao lembrar que, na infância, apostou suas esperanças na promessa de um livro infantil. Mas, agora, ela não era mais uma criança. Precisava de algo mais tangível, de um novo alicerce que sustentasse o sonho de ser uma fidalga normal, de ser aceita na Academia como uma maga e, finalmente, se graduar como aurana.
Pensar na irmã como fonte de inspiração só fazia a diferença entre elas parecer ainda mais cruel. Era um contraste insuportável que destacava a ausência de cor em seu cabelo.
Esse pensamento a fez pegar uma mecha sua e segurá-la em frente ao rosto. Sara odiava o azul que transbordava em Alana, mas que faltava em si. Por que sua aura não se manifestava naqueles fios? Por que teve que nascer com essa deficiência aurânica? Não precisava ter cabelos completamente azuis como os da irmã; apenas algumas mechas já seriam o bastante para ela não ser tratada como uma vulgar.
De repente, em meio a uma lágrima derramada, uma ideia assaltou-lhe a mente. Levantou-se e foi até a caixa onde Alana guardava os potinhos de tinta. Procurou o azul mais próximo do tom de suas unhas. Destampou o frasco e mergulhou o dedo indicador na tinta, sentindo a textura fria e molhada do pigmento. Sua próxima ação foi lambuzar o cabelo com ela, separando uma grande mecha e usando os dedos para esfregar freneticamente a tinta nos fios. Repetiu o processo com mais afinco, com mais raiva, e mais lágrimas.
Não era a primeira vez que pintava o cabelo com tinta. Fizera isso quando criança, de maneira inocente, ao notar as primeiras mechas azuis aparecerem na irmã. Naquela época, não passara por sua cabeça essa tempestade de ódio e frustração que agora ditava os movimentos das mãos. Seu pai havia lhe explicado que era proibido pintar o cabelo ou as unhas de outra cor, pois eram características físicas que marcavam sua identidade como neriquiana. Mas ali, naquele porão isolado, não havia ninguém para denunciá-la por esse crime, então que se dane! Continuou ensebando suas mechas até esvaziar o pote.
Como estaria sua aparência agora? Para descobrir, teria de subir as escadas e correr o risco de ser flagrada por Helena ou algum outro empregado.
Foi então que se lembrou de um espelho coberto por um lençol, meio escondido entre a parede e o fundo de um armário. Seu pai sempre a advertira para não mexer naquele espelho, dizendo que estava quebrado e que a estrutura poderia desabar. Mas que escolha ela tinha? Era só um espelho esquecido no porão. Se quebrar, quebrou, pensou.
Com dificuldade, arrastou o espelho retangular, de quase dois metros de altura, e puxou o pano que o cobria. O reflexo que surgiu não era o de uma fidalga com cabelos negros e mechas azuis, mas de uma neriquiana com o rosto debulhado em lágrimas e cabelos sujos de tinta. Não era a imagem que ela desejava ver, tampouco a pessoa que gostaria de ser.
Furiosa, Sara apanhou o pote de tinta vazio e o arremessou contra o espelho. Esperava que o objeto colidisse com o vidro e caísse no chão, mas, em vez disso, ele o atravessou!
— Quê?
A raiva deu lugar à confusão. Sara ficou encarando sua própria imagem por alguns instantes, tentando compreender o que acabara de ver. Lentamente, um passo após o outro, ela se aproximou do espelho. Será que realmente tinha visto o pote atravessar o vidro? Se foi isso mesmo…
Sara olhou para sua mão direita, ainda suja de tinta, e, num gesto hesitante, encostou no vidro. Com os olhos arregalados e a boca entreaberta, viu seus dedos e, na sequência, a mão inteira desaparecer atrás da superfície.
Não havia dúvida. Aquele espelho era um artefato divino, um objeto criado pelos deuses e imbuído de alguma propriedade mágica.
Para satisfazer sua curiosidade em relação ao artefato, a próxima ideia demandaria coragem. Por isso, Sara respirou fundo, apoiou as mãos nas laterais do espelho e, com os olhos fechados, mergulhou a cabeça no vidro. Abriu-os do outro lado, mas quase não fez diferença. Era uma escuridão quase total, como estar num quarto à noite com a luz apagada e as janelas fechadas. Se sua visão não lhe dava pistas sobre aquele lugar, sua audição, por outro lado, captava um som estranho e abafado, meio espumoso. Os segundos foram passando, e a escuridão começou a causar arrepios na garota, com um medo de ser sugada para dentro daquele breu.
Recuou a cabeça, voltando para o porão. Deu alguns passos para trás, encarando o espelho com uma mistura de terror e fascínio.
— Quebrado, é?
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