Festa de debutante. O esperado momento das moças e dos rapazes fidalgos ao completarem quinze anos de idade, quando a aura em seus cabelos, enfim, suspendia a profusão de cor que vinha assimilando mechas desde a infância. Era o caso de Alana Buarque, parada diante do espelho e admirando-se no vestido longo de cetim. O tecido azul-celeste abraçava sua silhueta de forma delicada, enquanto o decote ombro a ombro e um fino colar de safira destacavam sua pele lisa. O corpete bordado com fios prateados e adornado com pequenos cristais transparentes lhe conferiam uma pompa invejável. Aquele era o vestido que Sara, sentada na cama atrás da irmã, gostaria de estar usando. Infelizmente, teve que se contentar com um vestido azul, justo, de corte reto, que moldava seu corpo com discrição, sem o brilho ou a sofisticação que embelezavam Alana.
Claro, a Buarque “vulgar” também fazia seus quinze anos. Mas a festa não era para ela. Não fazia sentido ser para ela. As discussões com Alana nas semanas anteriores haviam sido acaloradas; a irmã insistia para que Sara também se apresentasse como debutante, a despeito do seu nível de aura e da sua aparência. Acontece que Sara sequer gostaria de participar da festa. Não queria atrair o olhar das pessoas, que dirá ser uma das debutantes — mesmo que, no fundo, desejasse experimentar o que a sua irmã estava prestes a viver. Lembrava-se das palavras do pai sobre a necessidade de se provar perante os outros, mas a festa de quinze anos não lhe proporcionaria isso. No fim das contas, Sara aceitou estar presente, mas não como uma das estrelas da noite.
— Estou um pouco nervosa — confessou Alana, virando-se para Sara enquanto alisava o vestido pela centésima vez.
— Percebi… Desde que tirou sua 3x4 hoje de manhã.
Sara também havia tirado sua nova foto para a carteira de identidade, mas sem diferença alguma nos cabelos, que permaneciam inalterados, iguais ao do antigo documento.
— Nosso pai disse que algumas famílias importantes estarão na festa. Até alguns supremos vão estar presentes.
— Uau! — ironizou Sara, sem esconder a falta de empolgação.
A irmã notou aquele desconforto e, sentando-se ao lado de Sara, tentou suavizar a situação.
— Quer ser minha parceira de dança depois do papai? — sugeriu Alana.
— Eu? — estranhou Sara. Era tradição a debutante dançar a primeira valsa com o pai (ou com a mãe, se a figura paterna estivesse ausente) e depois com um pretendente. — Não tem nenhum garoto com quem você queira dançar?
— Vários! Mas a vez deles pode vir depois — Alana deu de ombros.
Dançar com outro familiar após o pai era um sinal de desinteresse nos pretendentes da festa. Não que escolher alguém significasse um pedido de namoro, apenas que havia uma inclinação romântica, sexual ou, pelo menos, de pura amizade. Mas, acima de tudo, havia também a questão política.
— Nosso pai não fez nenhum acordo com outra família? Pra você selecionar o filho fidalgo de alguém importante?
— Ah, quanto a isso… Ele me contou que foi abordado por algumas pessoas, mas deixou claro que a decisão cabia inteiramente a mim.
Sara sorriu. Era típico do pai priorizar o desejo das filhas. E se a irmã não gostava da ideia de dançar com um cara por motivos políticos, então tudo bem. Mas, se fosse a própria Sara a receber uma proposta dessas, não negaria. Qualquer rapaz serviria, até o tipo mais babaquinha e orgulhoso, pois, ao menos, seria vista como fidalga. No entanto, a ausência de interesse por parte de outras famílias deixava claro que a filha “vulgar” dos Buarque não era considerada digna de tal posição. Restava-lhe, então, cumprir o seu papel naquela noite.
— Tá bem. Eu aceito dançar contigo.
Alana sorriu de volta, levantou-se da cama e chamou-a para descer ao térreo, pois já estava quase na hora dos convidados chegarem. Sara a seguiu, preparando-se mentalmente para uma festa de aniversário que não a trataria como aniversariante.
No andar debaixo, ouviram a voz firme de dona Helena, a serviçal da casa que ajudara a cuidar delas na infância e que hoje fazia apenas faxinas ocasionais durante o mês.
— Sr. Camilo, porque contratou cozinheiras para a festa se não permite que façamos o nosso trabalho? Faça-me um favor. Tire esse avental e vá recepcionar os convidados, sim?
Sara e Alana trocaram sorrisos na sala de estar. Era engraçado ver um fidalgo levando bronca de uma vulgar. Em outras famílias, isso certamente jogaria a empregada ao olho da rua, mas ali a situação terminava em um simples dar de ombros.
Quando Camilo entrou na sala, foi capturado pelo visual das aniversariantes. Seu olhar alternou entre as filhas enquanto despejava elogios para ambas, cuidando para não prestigiar uma mais do que a outra.
E assim, seguiram para a noite lá fora, onde a festa os aguardava.
O quintal dos Buarque era pequeno e modesto demais para acomodar os mais de trezentos convidados esperados naquela noite. Cercado por um muro baixo de apenas um metro de altura, o espaço não oferecia a privacidade necessária para um evento de tal magnitude. No entanto, a cidade de Lerofonte, com seus vastos campos abertos e casas luxuosas dispersas pela paisagem, oferecia uma solução. Do outro lado da rua, um gramado amplo foi transformado em um salão de festas improvisado. Auranos haviam conjurado muros de pedra com cinco metros de altura, delimitando o perímetro do evento e criando uma sensação de exclusividade. Embora essas barreiras não impedissem de alguns magos e auranos espertinhos saltarem por cima e entrarem de penetra na festa, elas mantinham os vulgares à distância — uma casta que raramente se via em Lerofonte, exceto por aqueles que trabalhavam como serviçais nos casarões da fidalguia. Naquela noite, muitos desses vulgares foram contratados para ajudar na organização da festa, ocupando-se na cozinha da casa dos Buarque ou servindo os convidados nas mesas.
No salão improvisado a céu aberto, esferas de luz mágica flutuavam no ar como lâmpadas penduradas por fios invisíveis. Conjuntos de mesas e cadeiras já acomodavam os primeiros convidados, que voltaram seus olhos na direção dos Buarque quando estes entraram no local.
Sara acompanhou o pai e a irmã na recepção a esses convidados. Não demorou a reparar que: ou era tratada como se não existisse, ou como se sua presença fosse um incômodo.
Mas com um homem foi diferente. Era o único convidado vestindo uniforme militar, o mesmo que o seu pai usava como policial, mas com uma insígnia vermelha em forma de hexágono no peito. Dário Lamar, chefe da 1º Delegacia de Polícia, sediada em Helió. Era um homem de cinquenta anos aparentes, gordo, cabelos curtos e castanhos entremeados com mechas alaranjadas, e uma barba bem cuidada num rosto meio exausto. Conhecera-o no ano passado, quando ele viera em sua casa lhe fazer perguntas após ela ter desmaiado na rua enquanto voltava do pólo comercial, só para se certificar de que ela não fora alvo de um criminoso vulgar que vendia balas com sonífero pelas redondezas de Helió.
Dario se mostrou gentil com ambas as aniversariantes, alternando o olhar entre as duas. Apesar de ser um aurano com cargo importante, Sara se sentiu à vontade perto dele. Infelizmente, o delegado informou que não poderia permanecer devido às obrigações do trabalho e que só compareceu para felicitar as filhas de seu amigo.
Os próximos convidados foram um teste de paciência para Sara. Eles só tinham olhos para Alana. Decidiu por bem se afastar e arrumar um cantinho para ela, tal como fazia no Jardim de Infância. Sentada a uma mesa, observava tudo à distância. Quanto menos estivesse no campo de visão das pessoas, melhor — embora desejasse mesmo estar longe dali, talvez no refúgio de seu quarto.
— Abacaxi coado? — ofereceu uma das empregadas, aproximando-se com uma bandeja.
— Obrigada — agradeceu Sara, pegando uma taça. Notou que os olhos da vulgar perscrutavam-na com uma insistência intrusiva. Quase dava para ler os pensamentos dela: “Então essa é a fidalga com aparência vulgar?”. A única diferença “vulgar” entre elas eram o vestido fino e as joias caras que Sara usava.
Após a serviçal ir embora, voltou sua atenção para os convidados, que continuavam a interagir, alheios à sua solidão. Avistou o pai e a irmã, provavelmente se apresentando à família que acabara de se acomodar. Alana, como sempre, era o centro das atenções. Mas mesmo de longe, Sara podia sentir os olhares furtivos em sua direção, seguidos de murmúrios e comentários que, embora inaudíveis, ela podia imaginar: “É ela ali, né?”; “Soube que ela tem deficiência aurânica. Nasceu assim, a pobrezinha”; “Fizeram bem em não deixá-la ser debutante. Ela não é uma fidalga igual a irmã”; “Eu sei que é da família, mas ela precisa estar aqui?”; “Ela é uma exceção, mas ainda bem que não convidaram os amigos vulgares dela. Seria um horror!”…
Deu mais uns goles na bebida, deixando o sabor doce do abacaxi desanuviar tais pensamentos. Uma fidalga de cabelos escuros, irmã da aniversariante, sozinha numa mesa de uma festa fidalga… É claro que chamaria atenção. Não tinha amizade com nenhum dos amigos de sua irmã e nem de seu pai, como se realmente não fizesse parte da comunidade fidalga. E, infelizmente, ela não tinha avós, primos ou tios, por parte de pai ou de mãe, que poderiam lhe fazer companhia.
— Olá. Está sozinha?
Em meio a sua introspecção, foi surpreendida pela aproximação de um jovem fidalgo de pele morena e cabelo loiro em quase todos os fios. Exibia um sorriso carismático que deixou-a meio desconcertada.
— A-Ahã — respondeu Sara, sem jeito, intrigada por ter despertado o interesse de alguém, ainda mais de um rapaz. Contudo, ele parecia ser um pouco mais velho que ela. Talvez fosse um mago, estudando em sua tão sonhada Academia. Ela não tinha contato com magos, somente com fidalgos da sua idade, os quais faziam dela um alvo para brincadeiras de mal gosto. Seria também essa a intenção do rapaz? O medo de ser alvo de uma brincadeira cruel a fez tomar mais um gole da bebida.
À vontade, o garoto se sentou, tirou uma caixinha do bolso do paletó e depositou-a sobre a mesa.
— Feliz aniversário, Sara — disse ele.
Sara arregalou os olhos. Aquilo era mesmo um presente? Pra ela? Não que não esperasse presentes dos convidados, a despeito de sua imagem vulgar, mas um garoto chegar do nada e lhe oferecer um? Era uma situação estranhamente positiva.
Ao abrir a caixinha, vislumbrou um par de brincos de safira em forma de gota.
— Clichê, eu sei — comentou ele, ainda sustentando aquele sorriso leve, como se quisesse acolher a garota. — Você e sua irmã vão receber muitos presentes como esse. Mas achei importante dar o meu pessoalmente.
— São lindos. Obrigada — agradeceu Sara, esboçando um meio sorriso ao sentir parte da sua preocupação ir embora. Talvez ele estivesse ali apenas para oferecer alguma gentileza, em vez da troça que ela aguardava.
— Eu sou Thales. Thales Montenegro — apresentou-se o rapaz, estendendo a mão em um gesto amigável.
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