Aos dez anos de idade, as crianças neriquianas deixavam o Jardim de Infância e eram transferidas ou para a escola fidalga ou para a escola vulgar, conforme a casta à qual pertenciam. Sara Buarque foi matriculada em uma escola vulgar.
No primeiro dia de aula, quase não saiu da cama. A ideia de estudar entre as crianças da casta inferior lhe parecia insuportável. Foi dona Helena, com palavras acalentadoras, quem a convenceu a se levantar e enfrentar aquela nova realidade. Sara pegou seu uniforme — um conjunto de camisa, saia e meias num tom cinza escuro — e entrou no banheiro anexado de seu novo quarto para tomar um banho. Tal qual a vida escolar, as irmãs não compartilhavam mais o mesmo cômodo.
No café da manhã, Alana parecia ter a empolgação de quem sairia para uma viagem de férias. O uniforme dela era semelhante ao de Sara, porém azul, o mesmo azul das madeixas que ostentavam a fidalguia dela.
No caminho para a escola, as irmãs dividiram o banco traseiro do carro, mas a viagem conjunta terminou cedo. Sara foi deixada primeiro, em frente a um prédio de paredes acinzentadas e janelas opacas que provavelmente abrigaria seus próximos oito anos de estudo.
Os cabelos coloridos dos fidalgos agora não passavam de uma memória entre aqueles neriquianos de tons neutros. Sara era como eles, mas não se sentia um deles. Nesse sentido, nada havia mudado. Era a mesma sensação de estar na sala dos fidalgos no Jardim de infância. Por isso mesmo, refugiou-se novamente na carteira ao fundo da sala, próxima à janela. Trocou algumas palavras com um menino chamado Tiago e uma menina chamada Paola, e nenhuma com o restante da turma.
Com o passar dos dias, acabou optando pelas carteiras do meio pra frente, não raro sendo vista diante da mesa da professora. Ao contrário de sua época no Jardim de Infância, não havia o que reparar em Sara Buarque. Seu cabelo, sem cor, não destoava dos demais. O azul celeste presente somente nas unhas, nos olhos e nas sobrancelhas tornavam-na uma vulgar como todos à sua volta.
Mas eu não sou uma vulgar, dizia a si mesma.
Só que ela não estaria ali se fosse uma fidalga. Estaria com sua irmã, em outra escola, com outras companhias.
Alana lhe contava as maravilhas da escola fidalga, e Sara ia tomando nota ao observar as diferenças entre a sua e a dela. Na fidalga, o recreio durava o dobro do tempo e a cantina parecia vender o dobro de coisas para uma fila de estudantes muito menor; todas as salas de aula, e não só algumas, eram equipadas com ar-condicionado para ninguém derreter em dias de muito calor; havia uma biblioteca pequena, o que era melhor do que ter nenhuma; a carga horária das aulas era a mesma, mas a variedade de disciplinas era maior, incluindo aulas de música que Sara adoraria participar; até mesmo as matérias pareciam ser mais detalhadas, com livros didáticos mais grossos; e os professores e professoras eram todos fidalgos também!
Outra diferença era que, na escola fidalga, professores anunciavam nome e sobrenome durante a chamada. Na vulgar, por outro lado, o “Buarque” não importava. Ninguém ali apelava para o sobrenome, a não ser quando existiam duas pessoas com o mesmo nome. Às vezes, a garota se sentia como se não fosse Sara Buarque, somente Sara. Era uma identidade estranha, incômoda, como se estivesse vestindo uma roupa que não lhe pertencia.
Quem era a Sara que ela via no espelho do banheiro escolar? Era a mesma Sara refletida no banheiro de sua casa?
Sou Sara Buarque, afirmava-se em frente ao vidro.
Em contrapartida, a garota ocultava de seus colegas de classe o endereço residencial dos Buarque, afinal, nenhum vulgar poderia saber que morava em Lerofonte, uma cidade nobre populada quase que inteiramente por fidalgos. Ainda assim, na necessidade de um trabalho em grupo, Sara se locomovia até a casa de um dos vulgares, geralmente em Helió, e que não se diferenciava tanto assim do luxo de seu casarão de dois andares, pois, embora estudasse numa escola da casta inferior, ainda era a melhor escola vulgar da região Sudeste de Neriquia. Seus colegas eram de uma classe média de vulgares, com pais que exerciam profissões que lhes pagavam 6 mil latis por mês, o salário máximo que um vulgar tinha o direito de receber. Uma mixaria aos olhos de Sara. Seu pai ganhava 20 mil por mês, sem contar a pensão de 10 mil dada pelo Estado desde a morte de sua mãe.
Sou superior a eles, gabava-se em frente ao espelho, orgulhosa de sua linhagem, ainda que esta não estivesse refletida em seu cabelo.
E por não querer se nivelar aos vulgares, Sara decidiu se sobressair nas notas escolares. O que não foi difícil usando os livros e anotações de sua irmã, que recebia uma educação mais avançada. Se tirava menos de um nove, era por conta de trabalho em grupo.
Entre os vulgares, Sara era como óleo na água. Não se misturava, mas estava presente nas rodinhas de conversa, sabendo que era superior. Não era muito quieta nem muito falastrona, pois não queria ser a garota solitária que era no Jardim; sua irmã não estava mais ali para mediar as amizades. Por outro lado, não iria considerar aquela gente como amiga. Eram apenas colegas de escola. Amigas mesmo… bem, ela não tinha.
A família era a sua única definição de amizade. Seu pai era a voz madura da responsabilidade ao seu ouvido, ao passo que também era o abraço afetuoso em momentos de felicidade e tristeza. Sua irmã era uma confidente que guardava seus sonhos e suas inseguranças, bem como uma modelo do que gostaria de ser no futuro. E a mãe, embora nunca a houvesse conhecido, era a musa que lhe dava inspiração para tocar seu violino.
Aliás, era em sua extrema habilidade com o instrumento que Sara mais se reconhecia como uma Buarque e, portanto, como fidalga. Talvez a música fosse sua quarta melhor amiga, uma companhia para a qual, e com a qual, poderia expressar seus sentimentos mais profundos, complicados demais para traduzir em palavras.
Não à toa, aos fins de semana, ia ao polo comercial de Helió tocar em público. Seu pai havia dado o incentivo, e desde então ela seguiu oferecendo música aos desconhecidos — ou aos conhecidos que ali trabalhavam ou transitavam com frequência. Sara mantinha o estojo do instrumento fechado, recusando moedas ou notas de latis. Tocava por prazer e para ser.
Um dia, no entanto, mostraram a ela alguém que não era.
— Alana?
Sara parou de tocar ao ouvir o nome da irmã. A indagação veio de um pré-adolescente de cabelo escuro e alaranjado, de pele branca e estatura semelhante a dela. Estava acompanhado de outras duas fidalgas da mesma faixa etária. Tinham a confusão estampada nos rostos, até que o neriquiano esboçou um sorriso e pediu desculpas, pois a confundira com uma amiga. Eles se afastaram aos cochichos, e Sara temeu que aquilo virasse uma fofoca.
E, claro, virou.
No dia seguinte, tarde da noite, Alana entrou aborrecida em seu quarto dizendo que as amigas da escola encontraram a “irmã gêmea” dela, embora ainda não soubessem que era, de fato, a irmã gêmea.
— Caramba, Sara. Falei que ia dar problema essa sua mania de ir tocar no polo comercial.
— Não quer que suas amiguinhas descubram que tem uma irmã sem aura? — disse Sara.
— Não é isso. Elas vão descobrir uma hora ou outra. Mas você não precisa ficar chamando atenção em lugar movimentado — protestou Alana. — E para de falar que você é “sem aura”. Isso é igual dizer que seu coração não bate ou que seu corpo não respira. Até vulgares têm aura.
— Só que vulgares não usam magia — Sara rebateu, contrariada.
— E a gente também não. Por enquanto. — Alana suspirou. — Olha, pode ao menos parar de ir lá?
Mas o pólo comercial de Helió era o mais perto de casa, o único lugar que seu pai permitia que fosse por conta própria. As pequenas cidades fronteiriças a Lerofonte ainda possuíam uma população fidalga considerável, e, nos espaços frequentados por essa casta, a criminalidade era próxima de zero. Por consequência, também eram regiões seguras para a casta vulgar, o que valia também para uma menina de 11 anos de cabelos escuros. Mas isso começava a mudar de figura em cidades mais distantes nas quais prevaleciam uma população inteiramente vulgar. Camilo afirmava isso tanto baseado em dados estatísticos quanto em sua experiência como policial ao patrulhar as ruas dessas cidades, embora ele reportasse que não se comparava à criminalidade que testemunhava entre os humanos no além-Leviatã.
No fim de semana seguinte, lá estava Sara novamente. Já não bastasse não frequentar uma escola fidalga, também teria de abdicar de um espaço público do qual ela gostava? Para quais outros lugares ela seria escorraçada apenas por ser inconveniente? Continuaria tocando ali, sim! Para a Derroka com os amigos da sua irmã!
— Ei, irmã da Alana!
Eles vieram. E não só os três da semana passada, mas um grupo de dez fidalgos, garotas e garotos, que se postaram à sua frente. Aparentemente, já corria na escola o boato de que Alana tinha uma irmã gêmea… peculiar. Com exceção dos três fidalgos do outro dia, os demais a olhavam com espanto. Como assim seu cabelo não é igual ao da Alana? Por que não tem sequer uma mecha azul? Ela é fidalga mesmo? Que menina estranha! Ela tem alguma doença? Será que pega? Ô, cuidado aí, melhor não tocar no cabelo dela. Vamos chamá-la de “Alana vulgar”…
— Ei! Parem com isso! — gritou Alana, surgindo esbaforida perto deles. Trocou um olhar rápido com Sara, como quem diz “Poxa, eu avisei”.
O garoto de cabelo parcialmente laranja retrucou:
— Alana, você disse que não tinha irmã gêmea. Por que escondeu isso da gente?
— Pra que vocês não viessem aqui e tratassem ela como se fosse uma aberração.
— E ela não é? — provocou o garoto, desviando o olhar para Sara, que se encolhia dentro de si mesma enquanto ainda segurava o violino e o arco em cada mão. — Como podem gêmeos não terem o mesmo nível de aura? Pior, como alguém que nasce fidalga… tem a aura de uma vulgar?
— Noah, ela nasceu com uma doença — explicou Alana. — Ainda assim, a Sara é tão fidalga quanto eu e você.
— Então por que sua irmã não estuda com a gente? — perguntou Noah, olhando para sua colega de escola. — Ela está numa escola vulgar, não é? — O silêncio constrangedor das irmãs foi uma confirmação. — Heh. Aposto que daqui a alguns anos, ela vai pro Instituto do Trabalho junto com os vulgares, enquanto você e eu seremos magos na Academia da Aura.
Alana lançou um olhar fulminante para Noah, mas a provocação já havia atingido Sara em cheio. Estava sendo tratada como uma sombra, um reflexo distorcido da perfeição que sua irmã representava.
— A Sara também tem potencial — Alana insistiu, tentando conter a maré de desdém.
Sara queria acreditar nas palavras da irmã, mas a humilhação era profunda demais. Os olhos de todos estavam sobre ela, analisando sua aparência como se ela fosse uma piada que eles se esforçavam para segurar o riso. Ela baixou o olhar, fingindo ajustar as cordas do violino, mas na verdade estava tentando esconder as lágrimas que ameaçavam escapar.
— É mesmo? — disse Noah. Em seguida, virou-se para uma de suas amigas. — Tábata, me passa aquela lumeia. — A garota, de cabelos curtos com mechas esverdeadas, estendeu uma flor de pétalas verdes que se tornaram laranjas nas mãos do rapaz. Em seguida, ele estendeu-a para Sara. — Tome. Quero ver se tem mesmo esse potencial?
Sara congelou ao ver a lumeia. Apertou forte o instrumento nas mãos e deu sutilmente um passo para trás.
— Vamos, toque — insistiu Noah, como uma farpa em sua pele.
Com um nó crescente na garganta, não demorou para os olhos se encheram d’água.
— Tá bem. Já chega — disse Alana, colocando-se à frente da irmã e cravando o olhar em Noah. — Se não estiverem aqui pra ouvirem ela tocar, então passem direto. Não quero que importunem mais a Sara daqui em diante, entenderam?
Noah deu de ombros e, como quem havia enjoado de um rolê, chamou todos para irem embora.
Alana virou-se para Sara com um sorriso reconfortante, embora a mente dela parecesse estar cozinhando o que dizer. Os olhos recaíram no violino por um instante, para então oferecer as palavras de apoio que Sara gostaria de ouvir:
— Nossa mãe usava magia musical com o violino dela. Se… Quando você for pra Academia, pode aprender essa magia e ser igual a ela. Então… continue tocando, tá bem?
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