A sineta na porta anunciou a chegada de uma menina de cabelos negros e olhos azuis à loja de música.
Violões, baterias, guitarras, teclados e outros instrumentos de vários tipos e tamanhos passaram pelos olhos de Sara conforme ela caminhava naquele ambiente com aroma de madeira e um leve cheiro de couro, parando somente ao chegar na seção de violinos, repousados em suportes na parede.
Procurou pelos violinos de 51 e 56 centímetros. Não se preocupou com os preços, sua atenção estava no tipo de madeira e no brilho do verniz. Qual deles seria aquele que o seu pai havia encomendado para o seu aniversário de nove anos? Um presente tão especial deveria ter sido escolhido por ela mesma, afinal, era a própria Sara quem saberia o violino ideal para o seu tamanho.
— Quer ajuda, menina?
Sara virou-se e encontrou um rapaz de olhos vermelhos, ocupado em passar uma esponja na capa de alguns discos empilhados no balcão.
— Vim pegar um violino que meu pai encomendou — respondeu ela, aproximando-se do funcionário. — É meu presente de aniversário.
— Ah, é? — O atendente largou a esponja e apanhou um pano macio, dando prosseguimento à limpeza. Olhou para a menina como se avaliasse se ela estava brincando ou realmente dizendo a verdade. Ele finalmente soltou o pano e pegou uma agenda ao lado, abrindo-a com um estalo leve. — Qual o nome do seu pai?
— Camilo. Camilo Buarque.
O atendente tamborilava suas unhas de cor vermelha sobre o tampo enquanto os olhos da mesma cor pareciam buscar o nome do comprador. Ele intercalou o olhar duas vezes entre a garota e a folha de papel antes de dizer:
— Tem uma entrega marcada para Camilo Buarque, sim. Só que… — E cravando o olhar na criança, completou: — você não é filha dele.
Sara suspirou e fechou os olhos. Suprimiu a vontade de bater o pé no chão e de vomitar palavras raivosas. Havia prometido ao pai que manteria a calma em situações como aquela.
— Esse tal Camilo Buarque, pelo que está anotado aqui, é um fidalgo — continuou o atendente, batendo o dedo na agenda — Mas você, claramente, não é. Tem tanta aura no cabelo quanto eu. — Ele sacudiu os cabelos castanhos, sem um traço de cor.
— Eu sou uma fidalga! — Sara contestou.
Não perdeu tempo com explicações. Foi logo tirando do bolso sua carteirinha do Jardim de Infância. Nas mãos do atendente, a carteirinha foi virada e revirada, checada como se ali houvesse uma charada.
— Viu? O nome do meu pai tá escrito aí.
O atendente esboçou um sorriso debochado.
— Sara, isso que você está fazendo é muito feio. Não sei quem te ajudou a falsificar essa carteirinha, mas é errado. Isso é crime, sabia? Pessoas vão pra cadeia por causa disso.
— A carteirinha não é falsa! — protestou a menina, elevando o tom de voz.
— É sim, e você sabe — acusou o rapaz, com o dedo em riste. — Você ia usá-la para roubar o violino de outra criança.
— Não ia não!
— Olha, eu poderia perguntar quem te pediu pra fazer isso. Porque isso é caso de polícia. Mas o patrão deixou a loja por minha conta hoje e não tô a fim de problema. Então vou fazer vista grossa, tá legal. Conhece essa expressão? Quer dizer que não vou te dedurar.
— E eu vou descer a lenha nessa porcaria de loja se você não der meu violino. Conhece essa expressão? Quer dizer que vou falar mal dela pra todo mundo, seu vulgar burro!
— Escuta, garota. Se quiser um violino, volte aqui com seu pai ou sua mãe ou qualquer outra pessoa que tenha dinheiro, entendeu?
Sara estava com o desejo latente de pegar o violão de mostruário ao lado do balcão e dar com ele na cabeça daquele vulgar estúpido.
Nesse momento, a sineta da porta soou novamente e anunciou a chegada de um homem alto e em boa forma, de pele negra, olhos escarlates e cabelos com tranças escuras e vermelhas.
— Papai — sussurrou Sara, aliviada.
— Seu pai, é? — disse o atendente, soltando uma risada de descrença. Para ele, não tinha como aquelas duas pessoas serem pai e filha.
— Papai! — Sara gritou, erguendo a mão.
O homem sorriu para a filha e se aproximou.
— Sara, pegou seu violino?
— Não. Esse moço diz que não sou sua filha. E eu ainda mostrei minha carteirinha.
— Sério? — disse o fidalgo, direcionando um olhar espinhoso ao atendente.
Sara degustou a face atônita do vulgar com o sorriso triunfante de quem diz “Viu só?”. O rapaz ainda intercalou o olhar entre o semblante satisfeito de Sara e a cara de poucos amigos de Camilo antes de começar a gaguejar uma desculpa.
— … N-não sabia que era sua… filha, senhor. Eu pensei que… bem…
Camilo não disse nada. Só manteve aquela expressão dura de quem parecia querer mostrar o que é bom pra tosse. O vulgar provavelmente conhecia essa expressão.
— Eu… vou preparar a nota e entregar o presente da sua filha. Su-sua identidade, por favor.
Os minutos seguintes foram de constrangimento para o vulgar e de impaciência para os dois fidalgos. Finalmente, o estojo com o violino foi entregue nas mãos de Sara.
— Obrigado pela preferência. Voltem sempre.
Camilo simplesmente congelou seu olhar sobre o rapaz.
O vulgar engoliu em seco e apertou os lábios como se houvesse fechado a boca com um zíper. Dava para ver o suor escorrendo em sua testa. Ele, talvez, imaginasse que o aurano soltaria um raio pelos olhos. E por mais que essa ideia soasse divertida para Sara, seu pai simplesmente deu meia volta em direção à porta, chamando-a para ir embora.
***
— Nunca mais piso naquela loja — desabafou Camilo, caminhando com Sara pelas ruas ladrilhadas do polo comercial de Helió. — Se precisar de outro violino ou de algum acessório, vamos a um lugar diferente. Deve haver outra loja de música por aqui — disse ele, perscrutando a fileira de estabelecimentos que margeavam o calçadão.
— Mas eu escolho o violino da próxima vez — frisou a menina.
— Não gostou do que eu comprei? — indagou o pai, olhando para o estojo que ela carregava nas costas.
— Só vou saber quando tocar. E eu não queria fazer isso lá dentro.
— Então toque agora — sugeriu ele, parando de caminhar.
— Agora? No meio do pólo comercial? — Sara também parou, um tanto surpresa.
— E por que não? — disse ele, abrindo um sorriso. — Sua mãe adorava tocar na rua.
— Mas não é melhor testar em casa?
— Em casa só temos três pessoas. Aqui você tem uma plateia.
Sara observou o polo comercial em volta. Pessoas caminhavam pra lá e pra cá, entravam e saíam das lojas, sentavam-se na murada dos canteiros floridos ou nos bancos de madeira, paravam para observar esculturas e chafarizes… Não pareciam interessadas em ouvir música, embora ela houvesse visto alguns músicos se apresentando ao ar livre noutras ocasiões.
— Mas eu nunca toquei em público — confessou Sara, sentindo um frio na barriga.
— Sempre há uma primeira vez. E você tem talento, como a sua mãe.
Sara apertou a alça do estojo, nervosa com a ideia de tocar entre a multidão, animada ao ser comparada com a mãe. Sem demora, um sorriso lhe tomou o rosto. Ela abriu o estojo e revelou o violino que agora era seu. Passou alguns minutos fazendo ajustes no instrumento e, em seguida, ajeitou-o ao seu corpo de nove anos. Preparou-se: uma respiração profunda, uma troca de olhar com o pai, uma espiada nas pessoas em volta, e música!
O som começou tímido, como se tateasse o ar em busca de ouvintes. Não demorou muito, cabeças foram erguidas, passos foram interrompidos, e olhos foram atraídos para a imagem de uma criança habilidosa no instrumento que tocava. Algumas pessoas se aproximaram para ouvi-la mais de perto, oferecendo segundos e até minutos de atenção; muitas outras, no entanto, continuaram presas ao dia a dia.
Sara continuou tocando como se estivesse num palco invisível, com o coração pulsando em cada nota. Sabia que, se tivesse as mechas azuis de sua irmã, talvez mais pessoas parassem para ouvi-la, mas, naquele momento, isso pouco importava. No fundo, também sabia que não precisava de aura para conquistar o afeto de quem quisesse escutá-la.
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