As tentativas de Miko e Daena de irem junto com Darka foram tantas que ele acabou cedendo pela insistência. E também sabia que se forçasse os dois a ficarem para trás só ia fazer eles elaborarem algum plano para acompanharem escondidos, o que poderia ser mais perigoso ainda. Amara ia levá-los em seu veículo, uma caminhonete jipe velha mas surpreendentemente robusta, e disse que ficaria de olho nos dois caso precisasse.
— Não somos crianças, você devia respeitar a gente! — Daena estava emburrada sentada em um canto da caçamba, em cima de uma caixa de ferramentas e com Miko em seu colo.
— Se respeitar é deixar vocês dois serem completamente desleixados com a própria segurança então prefiro ser mal-educado. — Darka, sentado na frente deles, ainda tentava parecer alguém responsável.
— Quanto tempo até o local, jovem? — Katarina, no banco do passageiro, perguntou para Amara no volante. — Preciso saber quanto tempo vai durar a provação de aguentar isso.
Amara riu da pergunta, aliviando um pouco a tensão que se formou em seu semblante. Ele explicou que seria uma viagem curta de apenas meia hora, mas pela companhia barulhenta com certeza não seria entediante. A estrada até a montanha era bem acidentada e sinuosa, mas não teriam problemas em chegar lá. Era quase um clima de viagem de férias, se o objetivo não fosse salvar o mundo.
— Então, Impronunciável... — Katarina falava sem olhar para Darka, mantendo os olhos firmes à sua frente e a postura rígida mesmo com o balanço do veículo. — O que vamos fazer quando chegarmos na montanha?
— Vou entrar na caverna de onde eu saí. Eu fui soterrado junto com a Yrina, mas não vi ninguém comigo quando acordei, então vou ter que procurar melhor. Se ela ainda estiver por lá, não deve tá tão longe de onde eu tava.
— Nós vamos ter que procurar melhor. Não fique achando que vai entrar sozinho, escória.
— Achei que os apelidinhos feios tinham ficado para trás. — Darka reclamou, fazendo biquinho.
— Força do hábito.
Miko saiu do colo de Daena e com o balanço do carro tropeçou em direção ao amigo, que lhe segurou no meio do caminho.
— Nós vamos entrar também, Darka! Sabia que eu enxergo no escuro?
— É claro que vocês vão entrar, Miko. — Darka parecia aborrecido. — Mesmo se eu dissesse que não, vocês iam arrumar um jeito de entrar. Mas já aviso que se algo der errado é pros dois saírem imediatamente, senão eu mesmo chuto vocês dois de lá.
— Você fala essas coisas, mas não tem coragem nem de levantar um dedo para gente. — Dessa vez foi Daena quem falou, em tom arrogante. — É só um moleque reclamão sem autoridade nenhuma, aliás, até Miko intimida mais do que você.
Quando olhou para ele, Daena viu um Darka com cara de quem estava muito magoado, sem saber se era fingimento ou não. Miko também notou o amigo cabisbaixo e se virou para garota.
— Senhorita Daena, pare de ferir os sentimentos do senhor Darka!
— Eu só falei a verdade! Olha aí, ele é um belo de um frouxo, isso sim! Como é que vai salvar o mundo desse jeito? Óbvio que vamos precisar ajudar ele.
— Tá tranquilo. — Darka suspirou. — Não me importo com o que pensam de mim, só me prometam que se as coisas ficarem perigosas demais, cês vão se cuidar.
— Eu não prometo nada. Que fique claro que eu te acho um idiota. Mas ainda é meu amigo, e eu não deixo amigos na mão.
Katarina observou aquela cena pelo retrovisor, não conseguindo deixar de pensar como Daena parecia estar feliz. Desde que a mãe morreu, ela sempre estava triste ou com raiva, mas agora a animação da menina era quase palpável. A paladina pensou em como queria contar isso para Estephan.
✰★✰★✰
Apesar do nome, a montanha de Jhotar na verdade era um morro de cerca de pouco mais de duzentos metros de altura, localizado ao extremo leste do continente. Formado principalmente pelos escombros da antiga capital da província de Jhotar, revirada por Ângelo Aurea durante sua luta contra Yrina, o local era habitado apenas por animais e era evitado por todos que acreditavam que aquelas terras estavam amaldiçoadas com a energia da bruxa. Os restos de construções, pilares e tijolos entre a vegetação faziam a silhueta do relevo parecer estranha e quebrada, conferindo um ar de estranheza aos arredores, como se aquilo não pertencesse àquele lugar. Quando finalmente chegaram na base do monte, desceram e começaram a procurar uma forma de entrar.
A entrada da caverna de onde Darka saiu era quase imperceptível no meio da vegetação densa, o que fez ele levar quase uma hora para achar o local. Dois anos haviam se passado no mundo de Red Ocean desde que ele havia saído dali, e Lauren notou como era estranho ter memórias diferentes da mesma situação. Ela lembrava tanto de estar na frente de um computador apertando a tecla W quanto da sensação do sol na sua pele depois de uma centena de anos debaixo da terra.
— Darka, está tudo bem? — Amara, que entregava lanternas para todos, havia notado que ele estava distraído.
— Sim... Tô bem sim. — Ele se virou para o resto do grupo. — Ok, vamos fazer o seguinte. Eu vou na frente com a Katarina, Miko fica atrás da gente e Amara e Daena fecham a fila. Nós dois vamos garantir que o caminho é seguro, enquanto vocês três ficam atentos para qualquer sinal dos gêmeos.
Assentindo com a formação, o grupo entrou na caverna. Embora estivesse úmida e ligeiramente fria, era larga o bastante para passarem de forma confortável. O caminho também estava desobstruído, com apenas algumas colunas e pedras estreitando a passagem de vez em quando. Darka sabia que estavam se aproximando de onde ele surgiu quando notou as marcas nas pedras ficando mais proeminentes a medida que avançavam. Aquelas marcas eram parecidas com as de seu corpo, e foram feitas por Yrina no chão da praça central quando ela iniciou o ritual de ressurreição.
— Que lugar estranho. — Daena observava as paredes, passando os dedos pelas marcas. — O que são essas coisas nas pedras, Darka?
— São as runas que a Yrina desenhou. Serviam para canalizar energia mágica e provavelmente passaram os últimos cem anos alimentando meu corpo com o resquício da fonte de magia.
— Credo. — A menina fez cara de repulsa. A ideia de passar anos enterrada naquelas condições parecia horrorosa.
Sim, credo, mas onde a bruxa está? — A impaciência de Katarina crescia. — Não estou vendo nada além de pedras e marcas.
Darka decidiu ignorar as duas e começou a procurar qualquer coisa que pudesse indicar a presença de outra pessoa, mas não sabia nem por onde começar. A caverna terminava em um beco sem saída onde havia a pequena cavidade onde ele havia despertado, rodeada dos mesmos símbolos em seu corpo.
— O que estamos procurando, exatamente? — Miko perguntou enquanto levantava uma pedra do tamanho de sua mão.
— Não sei, talvez uma passagem, um vão, algum lugar onde pode ter um corpo, sei lá...
Enquanto todos conversavam próximo ao final do túnel, Amara estava a alguns metros de distância do grupo observando atentamente as paredes. Quando sua lanterna falhou, ele notou algo.
— Vocês podem desligar as lanternas, um momentinho?
— Achou alguma coisa? — Darka apontou a lanterna para a parede que Amara estava olhando.
— Talvez, mas preciso de um pouco de escuridão.
A primeira pessoa a desligar a lanterna foi Miko, com certa animação. Havia uma ansiedade palpável na criaturinha em mostrar sua habilidade no escuro. Os outros desligaram em seguida, esperando para ver o que ia acontecer.
— Que bonito, senhor Amara! O que é isso?
— Do que está falando, Miko? Não estou vendo nada. — Daena tateava o escuro, tentando acostumar os olhos à escuridão.
Todos ficaram confusos, ainda sem saber o que estava acontecendo. A voz de Amara soava séria no meio do breu.
— As runas estão ativas, mas bem fracas. Se seguirmos a direção delas, talvez a gente encontre algo.
— Eu vou na frente! — Miko, que conseguia enxergar claramente a tênue luz das marcas, correu para onde a luz fluía.
— Espera, Miko! — Ligando a lanterna novamente, Darka tentou segurar o luziwurmo antes que se machucasse, sem sucesso. Só teve tempo de ver Miko desaparecendo atrás de um pedregulho, por uma fenda pequena demais para qualquer um além dile conseguir passar.
Darka sentiu Katarina empurrá-lo para o lado e ir em direção à fenda, carregando um brilho em sua mão direita e desferindo um soco no meio da pedra. Uma rachadura surgiu na superfície e estalos podiam ser ouvidos no resto da caverna.
— O que diabos... Você ainda tem poderes?!
— Aparentemente sim. — A paladina olhou ligeiramente surpresa para o próprio punho fechado, ainda vibrando com energia. Seu movimento havia sido instintivo, mas não queria admitir.
— Isso foi perigoso, tia! Podia ter causado um desmoronamento! — Daena se aproximou da fenda, apontando a lanterna para o buraco. — Miko? Você tá aí?
Se passaram alguns segundos antes dos chifres da criaturinha surgirem pelo buraco, aliviando a tensão do grupo.
— O que estão fazendo? Que barulho foi esse?
— Sai daí agora, sua minhoca teimosa! — Darka ralhou, batendo o pé. — Eu disse pra não sair de perto!
— Gente... — Notando um certo ruído em volta deles, Amara tentava chamar a atenção, nervoso. — Podemos focar no...
— Sim, vamos focar na missão, mas preciso que vocês se comportem!
— Ei, como assim "vocês"? Eu não fiz nada! — Daena reclamou.
— Chega!! — Perdendo a paciência, Katarina inconscientemente bateu o pé no chão com a mesma energia de seu último soco, o que fez com que a rachadura da pedra se espalhasse embaixo de todos. O ruído que Amara escutou antes eram mais rachaduras surgindo, que se juntaram e causaram o colapso do frágil chão onde estavam.
Um grande buraco se abriu, e todos os cinco despencaram dentro dele.
✰★✰★✰
Estava escuro, frio, úmido e desconfortável demais. A cabeça de Darka doía, suas pálpebras pesavam e sua garganta estava seca. Ele não sabia onde estava, mas sentia que flutuava e, principalmente, que não estava sozinho.
Um abraço veio por trás, e uma sensação familiar inundou seu peito.
— Você está vivo. — A voz aliviada de uma mulher fazia cócegas em seu ouvido. — Deu certo.
— Yrina...?
Tão rápido quanto surgiu, a voz desapareceu e Darka acordou. Estava afundando no que parecia ser água e rapidamente se impulsionou em direção à superfície. Apesar de estar praticamente deitado no fundo, ao levantar percebeu que estava em uma parte rasa, com a água batendo na altura de seu peito.
— Bem ali! — Ele ouviu a voz de Miko. — Por aqui, Darka!
O resto do grupo estava na beira do que parecia ser um lago. Amara ajudava Daena a sair da água e Miko pulava para chamar a atenção do amigo. Assim que alcançou a margem, Darka percebeu que os estigmas de seu corpo brilhavam e que se sentia estranhamente "carregado".
— Katarina, eu sei que a gente ainda não tá em bons termos, mas precisava disso?
— Está dizendo que fiz de propósito?! Como ousa sugerir isso?
— Ok, vamos nos acalmar, por favor... — Amara tentava amenizar a situação. — Precisamos encontrar logo a...
— Yrina. Sim, eu já sei onde ela tá. — Darka interrompeu.
O lugar onde estavam era uma caverna ampla, e o buraco por onde caíram não era muito alto. O lago onde aterrissaram era grande e parecia ser raso, pelo menos próximo à margem. Mas o que mais chamava a atenção era como o local era iluminado pelas muitas marcas nas paredes que pareciam ir em direção ao fundo da água, todas emanando o mesmo brilho azulado das runas na pele de Darka.
— Não vai me dizer que ela está no fundo desse lago. — Katarina cruzou os braços, impaciente.
— Não exatamente. — Darka passou a mão pelo ombro, onde sentiu o abraço da bruxa. — Ela é o lago.
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