Sara Buarque costumava se refugiar na última carteira da fileira próxima à janela, porém, naquele dia, a professora do Jardim pediu que todos se reunissem em grupos de quatro integrantes para uma brincadeira.
A mulher fidalga também anunciou os nomes das crianças que seriam as líderes de cada grupo, aquelas que possuíam a maior proporção de cor no cabelo — e que ganhariam balinhas auradas como premiação, com exceção do líder que figurasse na última colocação.
E é claro que Alana foi escolhida! Dentre todas as crianças daquela turma, era quem detinha o cabelo com a maior quantidade de mechas coloridas. O azul dela se espalhava caprichosamente por todo o cabelo — um indicativo, diziam os adultos, de que, quando chegasse à adolescência, ela seria uma jovem de cabelos totalmente azuis.
Embora Alana geralmente não se sentasse ao seu lado, preferindo a companhia de outras amigas, a irmã nunca escolhia outra criança a não ser a Sara para um trabalho em dupla, assim como negava participar de uma atividade em grupo que não incluísse a “vulgar da sala”, como alguns ali gostavam de chamá-la. Ainda assim, Sara preferia muito estar sozinha no seu cantinho seguro, pois lá seus cabelos inteiramente negros chamavam pouca atenção em meio às madeixas de cor de seus colegas.
— Todos já estão em grupo? — perguntou a professora.
Cada líder escolheu três crianças para formar uma equipe. A professora até havia ido a outra sala de fidalgos pedir dois estudantes emprestados para, assim, arrematarem todos os grupos.
Com tudo preparado, a fidalga fechou as cortinas, mergulhando a sala numa penumbra. Em seguida, circulou pelos alunos, distribuindo em cada mesa — formada pela junção de quatro carteiras — uma flor de lumeia, cujas pétalas exalavam um brilho suave e encantador. Sara conhecia essa flor. Ela aparecia no Mago Mirim, por isso também sabia o que a professora explicou à turma: quando um fidalgo encosta nas pétalas dessa flor, elas assumem a cor da aura dele. A lumeia deixada na mesa de Sara brilhava em azul.
— Não toquem nela ainda — a professora apressou-se a dizer. — Vamos imaginar que a lumeia… é um desgarrado. E vamos assumir que vocês, crianças, são auranos!
Sara franziu a testa. Não sabia o que era mais difícil: conceber aquela flor como um monstro, ou se imaginar como uma adulta capaz de usar magia.
— Se o desgarrado na mesa for vermelho — continuou a professora —, quem vai conseguir derrotar o monstro?
— Um aurano vermelho — respondeu uma criança, com a mão levantada.
— Isso mesmo.
A professora, então, explicou o jogo. A cada rodada, seria decidida uma cor para a lumeia, e cada equipe precisaria ter alguém com a cor da aura correspondente para o líder marcar um ponto — rosa, azul, verde, amarelo, vermelho ou laranja. Nesta dinâmica, antes de cada rodada, todos os grupos eram obrigados a descartar um de seus integrantes e convidar outro que fora descartado das demais equipes. Além disso, a mesma cor não poderia ser sorteada por duas rodadas seguidas.
Os líderes logo perceberam que não adiantaria nada ter duas pessoas com o mesmo tom de aura no time. Por isso, já na primeira rodada, Sara foi substituída — com um pedido de desculpas no olhar da irmã — por uma criança de aura vermelha, para manter o máximo de diversidade possível na equipe de Alana.
Sara odiou aquele jogo que mal havia começado. Era pior do que sentar na primeira carteira em frente à professora.
Quando a terceira rodada trouxe um “desgarrado azul”, o líder do grupo onde Sara estava sorriu satisfeito, acreditando ter garantido seu primeiro ponto após ter sido azarado nas duas primeiras. Contudo, quando Sara encostou na lumeia, que apresentava pétalas alaranjadas, ela não mudou de cor. O líder pediu que a menina usasse a outra mão e que mantivesse os dedos nas pétalas por mais algum tempo. Nada aconteceu.
O líder, confuso, chamou a professora.
— Nossa flor tá com defeito! — disse ele. A professora esboçou um sorriso e perguntou o motivo. — A Sara tá encostando nela, mas ela não muda de cor.
— Hm. Que estranho — ponderou a docente. — Vamos testar com outra criança azul. — E direcionou seus olhos para outra equipe. — Alana, pode vir aqui um instante?
Sara trocou um breve olhar com a irmã. Sentiu um desconforto familiar, uma negação que a fez soltar a flor na mesa enquanto Alana se dirigia até o grupo. Quando a neriquiana de mechas azuis apanhou a lumeia… suas pétalas mudaram para um azul brilhante.
Em todos os cantos da sala, frases carregadas de veneno infantil perfuraram Sara como agulhas, causando nela uma reação de vergonha e impotência que ruborizou suas bochechas.
“A Sara não conseguiu.”
“É porque ela não tem cor no cabelo.”
“Menina estranha.”
“Ela é vulgar.”
“Não chama ela pro time”
“Devia estar na sala dos vulgares, não aqui.”
— Mas vai contar como ponto — insistiu o líder do grupo.
Os demais líderes protestaram, com exceção de Alana, que procurou defender a irmã ao dizer que, alterando ou não o tom da flor, Sara ainda detinha a cor que fora pedida.
— Regras são regras, Alana — disse a professora. — Isso aqui pode ser uma brincadeira, mas, no mundo real, é diferente. Nem sempre um aurano azul consegue derrotar um desgarrado azul. Se sua irmã não consegue mudar as pétalas, então ela não consegue derrotar o desgarrado.
Quando o jogo prosseguiu, o líder trocou Sara por outra criança logo na rodada seguinte, e o mesmo se deu no próximo grupo onde ela se instalou brevemente. Nenhum líder a queria. Rodada após rodada, Sara mal esquentava a cadeira em que se sentava. Por onde passava, era como uma carta inútil de um jogo que era sacada e instantaneamente descartada. Houve, inclusive, quem preferiu trocá-la por uma criança rosa, mesmo o grupo já tendo uma neriquiana dessa cor. A certa altura, Sara passou a se levantar sem que o líder precisasse anunciar que ela era quem seria substituída. Suas pernas — e sua mente — já começavam a se cansar daquela situação. Até que ela voltou a integrar o grupo de Alana.
Na rodada seguinte, estava prestes a se levantar, quando Alana segurou seu braço.
— Não. Você fica aqui — disse a irmã, pouco antes de indicar outra criança da equipe para ser substituída.
— Você não vai ganhar se eu ficar aqui.
— Tanto faz se eu ganhar ou perder.
Veio a próxima rodada, e a professora anunciou a cor azul. Sara encarou a lumeia, que exibia pétalas cor de rosa. Aguardou a irmã apanhá-la para modificar o tom da flor, mas percebeu Alana intercalando o olhar entre a lumeia e ela.
— Vamos, pegue — disse Alana.
— Hein? Sabe que não consigo.
— Eu te empresto a minha aura — disse a irmã, levantando a mão. — Eu toco as pétalas, e você toca a minha mão, pode ser?
Sara sorriu e balançou a cabeça. A pele de sua irmã era quente e aprazível como o conforto de uma melhor amiga. A lumeia brilhou como o azul do céu do verão, sob o qual Sara pôde, enfim, descansar as pernas e também os seus sentimentos. Foi como se ali, perto da irmã, houvesse achado um cantinho seguro que só existia naquele instante.
Mesmo que prender a Sara na equipe significasse perder o jogo, Alana não se importou. E como consequência dessa escolha, passou a marcar menos pontos, terminando a brincadeira na última colocação.
— Não ligo — disse ela, caminhando com Sara pelo corredor do Jardim de Infância, após o término da aula.
— Mas só você não ganhou bala — lamentou Sara.
— A gente compra, ué.
As irmãs passaram na cantina e encheram a mão com balinhas azuis, dividindo igualmente uma porção para cada. Sentaram-se à sombra de uma parede branca, num chão fofo e gramado, e mastigaram uma bala enquanto aguardavam a tia do portão gritar seus nomes em sinal de que a dona Helena havia chegado.
Sara notou o olhar de algumas crianças sobre as duas – mais nela do que em Alana. O sabor doce em sua boca se misturava ao gosto amargo de uma solidão que sua irmã não provava.
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