Quando as gêmeas entraram no carro após deixarem o Jardim de Infância, dona Helena comunicou que não as levaria direto para casa. O pai delas aguardava as meninas no templo da cidade.
Sara deu um pulinho no banco ao ouvir a novidade. Era a chance de fazer mais uma prece à deusa Shala
— Pisa fundo, dona Helena.
— Sem pressa, menina — advertiu a babá, sem perder a serenidade.
Alana, bem comportada, soltou um muxoxo com a ideia de ir àquele lugar.
O carro dos Buarque deslizou pelas ruas de asfalto liso de Helió, uma cidade onde o concreto e o verde se entrelaçavam nas calçadas e nos quintais abertos das casas luxuosas — embora não tão luxuosas como as de Lerofonte, onde as irmãs moravam. Vários fidalgos preferiam residir ali, às vezes tendo vulgares como vizinhos a dez metros de distância, em vez de constituírem a comunidade bucólica e exclusivamente fidalga de Lerofonte. Mas era possível diferenciar as residências da casta superior, com suas fachadas pintadas de alguma cor aurânica, em contraponto aos tons de cinza, branco ou bege das moradias vulgares.
Quando o veículo parou em frente ao templo, o sol poente já começava a se esconder atrás da cordilheira do Leviatã, cujas montanhas imponentes guarneciam todo o país de Neriquia. O crepúsculo tingia de laranja as paredes alvas da ampla estrutura, com suas portas sempre abertas acolhendo qualquer visitante a qualquer hora do dia. O letreiro de metal na fachada com a palavra “Templo” era quase desnecessário. Qualquer neriquiano poderia reconhecer o local pelas janelas ogivais de vidro colorido que intercalavam suas cores ao redor do edifício. Certa vez, em uma de suas visitas, Sara havia circundado o perímetro do templo só para contar o total de janelas de cada cor. Ficou surpresa ao constatar que todos os seis tons da aura estavam presentes em quantidade igual.
Poucos minutos após saírem do carro, as duas irmãs estavam caminhando de mãos dadas por um corredor de paredes brancas enquanto seguiam um sintético de Shala.
Sintéticos eram estranhos, enigmáticos. Seu pai dizia que eles foram criados pelos deuses de Neriquia há muitos e muitos anos e que eram servos fiéis e habitantes eternos dos templos. Vestiam-se com túnicas que refletiam a cor do deus ou da deusa que serviam — o sintético de Shala vestia azul. Suas cabeças estavam sempre cobertas por um capuz justo, que se fundia a uma máscara cinzenta, a qual, aliás, assombrava Sara em alguns pesadelos; não devido à expressão sisuda ou às gemas incrustadas no lugar dos olhos, mas sim ao mistério que se escondia atrás da máscara. Ninguém sabia como era o rosto de um sintético. Sara imaginava uma face deformada, talvez derretida, às vezes desprovida de olhos, nariz ou boca, mas sempre uma figura de homem, pois a voz e o corpo dos sintéticos eram inconfundivelmente masculinos.
As irmãs chegaram a um salão com dezenas de portas de seis cores diferentes. No centro do lugar, uma recepção gerenciada por um sintético de túnica verde, servidor da deusa Nera, atendia uma fila de três neriquianos. Ignorando a espera, Sara e Alana continuaram acompanhando o sintético de Shala, que as guiou até uma porta azul. Com movimentos meticulosos, ele retirou uma chave de suas vestes e abriu a porta.
— Entrem e fiquem à vontade. Camilo Buarque logo se juntará a vocês nesta câmara de Shala. — A voz dele ressoou grave antes de fechar a porta, deixando as duas meninas sozinhas no recinto.
O interior era parcialmente iluminado pelo vitral azulado na parede ao fundo, filtrando a luz do crepúsculo e tingindo o ambiente de um azul profundo. Contudo, com a proximidade da noite, eram as velas fixadas nas paredes, com suas chamas magicamente azuis, que derramavam uma claridade serena e mística sobre o ambiente.
Sara largou a mão de Alana e encaminhou-se para um dos bancos compridos de madeira, posicionado em frente à estátua de Shala. Esculpida em mármore e assumindo uma coloração azul-prateada naquela câmara, a estátua de três metros de altura representava uma mulher adulta de cabelos longos e encaracolados que desciam sobre os ombros. Vestia uma túnica semelhante à dos sintéticos, porém na cor branca e com detalhes finamente esculpidos que sugeriam um tecido mais encorpado e gracioso. O rosto da deusa, com uma expressão doce e acolhedora, parecia inclinar-se para frente, como se estivesse pronta para ouvir os desejos e preocupações de suas filhas devotas. Tanto quanto uma figura divina, Sara considerava-a uma figura materna.
Ao sentar-se no banco, fechou os olhos com força e uniu as mãos com fervor.
— Quero azul no meu cabelo — suplicou ela, como se cada palavra fosse a nota de uma melodia que só a deusa pudesse ouvir.
O banco de madeira rangeu levemente quando Alana se juntou à irmã, mas, para Sara, a presença da outra era apenas uma sombra discreta. Alana não costumava rezar; desde que uma de suas orações não fora atendida — um pedido para que um certo garoto fosse seu namoradinho —, ela abandonara as preces. Segundo o pai, a deusa Shala não atendia a pedidos de amor infantil. “Muito nova para ter um namorado”, dissera ele, “tente de novo daqui a alguns anos”.
“Quero azul no meu cabelo”, rogou Sara, em silêncio, pela décima nona vez. Na vigésima segunda, abriu os olhos devagar, sentindo o peso da persistência em seus ombros pequenos, e descansou as mãos sobre o colo, soltando o ar profundamente.
— A gente tá rezando pra deusa certa? — Alana quebrou o silêncio, balançando as pernas para frente e para trás, como se a quietude da câmara fosse um mar de tédio. — Ela nunca atende o que a gente pede.
— Papai disse pra ter paciência. Ela atende muitas pessoas. Tem que esperar chegar nossa vez.
— Mas nossa família é fidalga — retrucou Alana, franzindo o cenho. — No Jardim, a tia sempre dá os doces primeiro pra quem é fidalgo, e só depois é a vez dos vulgares.
Sara não quis alimentar a insatisfação da irmã. Em vez disso, abriu sua mochilinha, pescou uma balinha de embalagem azul e mastigou-a. Depois, retirou um livro fino, cujas bordas já estavam desgastadas pelo uso frequente. A capa ilustrava dois irmãos gêmeos mais ou menos da idade delas.
— De novo, Sara? Quantas vezes tu já leu esse livro? — Alana bufou, revirando os olhos.
— Eu gosto, ué.
O livro chamava-se O Mago Mirim. Era a história de uma criança cuja aura não se manifestava em seus cabelos, ao contrário do que acontecia com o irmão gêmeo. A identificação com a narrativa fora imediata. Mas o que deixava Sara com um sorriso encantado era que, em um momento decisivo da história, após tantas súplicas ao deus de sua aura, os cabelos do protagonista ganharam cor de uma só vez. Não apenas isso: o menino conseguia a proeza de usar magia, um feito alcançado tão somente pelos fidalgos adultos que ingressavam na Academia da Aura. Até mesmo o semideus, governante de Neriquia, se impressionou com as façanhas do menino. Para Sara, a ideia de impressionar a todos, especialmente Alana, com um cabelo azul radiante lhe provendo habilidades mágicas era um sonho mais doce que a bala azul em sua boca.
A porta da câmara se abriu com um leve rangido, interrompendo a leitura de Sara ainda nas primeiras páginas. Camilo Buarque entrou na sala, suas tranças vermelhas e pretas balançando suavemente com o movimento.
— Já fizeram suas preces? — perguntou ele com a voz calorosa, sentando-se perto das filhas.
Sara acenou vigorosamente.
— Ahã!
Alana não respondeu.
— Eu passei na câmara de Amissius e também já fiz a minha — continuou Camilo, referindo-se ao deus vermelho.
— O que você pediu? — perguntou Sara.
— Segredo.
— Deve ter sido uma namorada — arriscou Alana, com um tom travesso.
— Não, não foi isso — respondeu ele, rindo baixinho. — Mas eu conto a vocês quando estiverem mais velhas.
Sara fez um biquinho, cruzando os braços, mas deixou o assunto morrer ali. Alana, por sua vez, balançou as pernas com mais impaciência.
— A gente já pode ir embora? — pediu ela. A luz do poente já se tornava imperceptível, deixando toda a iluminação da câmara para as velas azuis nas paredes.
Camilo olhou para as filhas, especialmente para Sara, antes de responder.
— Ainda não — Ele esfregou as mãos, como se hesitasse em prosseguir na conversa. — Tem algo que eu… preciso falar pra você, Sara. — Seus olhos passaram para a outra filha. — E é algo que você também deve saber, Alana.
— O que é? — perguntaram as duas, em uníssono.
O pai suspirou, esboçando um breve sorriso cujo resquício foi depois preservado em uma expressão mais séria. Ele se inclinou para frente, colocando uma mão suave na nuca de Sara e acariciando seu cabelo negro.
— Sara, minha filha… Eu descobri por que falta azul em seu cabelo.
O coração da criança foi à garganta e desceu, uma mistura de expectativa e medo dominando seu corpo. Ela havia feito alguns exames recentemente, sempre recebendo a mesma resposta evasiva do curandeiro: “ainda estamos investigando”. Já para os exames de Alana, a resposta era simples e direta: “tudo normal”.
Camilo, percebendo a tensão crescente, continuou:
— Você tem… uma doença. Chamam ela de… “deficiência aurânica congênita”.
O nome soou como um quebra-cabeça na mente de Sara, difícil de compreender, impossível de lembrar.
— Então, a Sara tá mesmo doente?! — perguntou Alana, recompondo-se no banco e encarando o pai com o rosto apreensivo.
— Sim — respondeu Camilo, com um aceno lento.
Sara ainda absorvia aquela informação. Para ela, estar doente significava ficar deitada na cama, sentindo dores, tomando colheres de remédio amargo por vários dias até estar novinha em folha.
— E que poção tenho que tomar? — perguntou ela, a esperança cintilando nos olhos.
Camilo crispou os lábios, suas palavras saindo com dificuldade.
— Infelizmente, não existe remédio.
— Mas como vou melhorar assim? Como vou ter meu cabelo azul?
Seu pai olhou para a estátua de Shala, que parecia observar a cena com uma serenidade infinita.
— Pedindo para a sua deusa te curar.
Sara seguiu o olhar do pai, encarando aquela entidade imponente, e de repente uma compreensão aclarou sua mente.
— Aaahhhh, entendi. Igual ao mago mirim — comentou ela, levantando o livro para que o pai visse.
— Sim… Igual ao mago mirim — concordou Camilo, com um sorriso. Foi ele quem lhe dera aquele livro de aniversário.
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