Ouvir seu nome sendo dito por Amara disparou um milhão de pensamentos na mente de Lauren. O que aquilo significava? Como ele descobriu? Ele ainda segurava o rosto de Darka, observando sua reação.
— Como... como você sabe?
— O que está fazendo aqui?! Como veio pra cá?! — A expressão de Amara era um misto de surpresa e curiosidade, mas com uma estranha ponta de receio. — O quê você fez?
— Eu não sei, eles iam fechar o servidor do jogo e eu queria te ver e quando me dei conta eu já estava aqui, no corpo do Darka!
— Eles fecharam o servidor?!
— Não faço ideia! Eu entrei alguns minutos antes de desligarem... mas como você sabe de tudo isso?!
As mãos de Amara soltaram o rosto dele, e ele baixou o olhar. Ainda esperando uma resposta, Darka continuou.
— Você também era um jogador que veio pra cá? Se você lembra de mim como Lauren, era da minha lista de contatos?
— Não, eu não era um jogador.
— Então como...
Amara se sentou em uma cadeira, enterrando a cabeça em seus braços cruzados na mesa de trabalho. Darka, sem saber o que fazer, apenas sentou na cadeira mais próxima do amigo e esperou. Ele sabia que uma enxurrada de perguntas só ia estressá-lo mais ainda, e mesmo que estivesse à beira de um colapso nervoso era melhor ir com calma.
— Deixa eu adivinhar, é uma longa história?
— Nem tanto... — A sua voz saía abafada. — Talvez.
— Você sabe onde a gente tá, pelo menos? Isso aqui não é exatamente o jogo, né?
Finalmente levantando a cabeça, Amara relaxou um pouco. Darka também ficou aliviado em ver que ele estava menos tenso.
— Eu não tenho certeza, mas sim e não. — Ele se endireitou na cadeira. — Isso aqui não é o jogo Red Ocean em si, mas eu acho que é uma realidade paralela ou coisa do tipo, que espelha exatamente o mundo daquele jogo. Mais especificamente do seu jogo.
— Como você sabe que era o meu jogo? — Darka tentava ir devagar, mas ainda estava muito curioso. — Como sabia que eu sou Lauren?
— Ah, então... — Amara coçou a cabeça. Era difícil explicar tudo quando nem ele sabia exatamente o que acontecia. — Resumindo, você é o protagonista da história e tudo que acontece aqui é reflexo das decisões que você tomou no jogo. Provavelmente você já deve ter percebido isso.
— Sim... Mas ainda não explica como...
— ... eu sei sobre você, é. Eu estou aqui há muito tempo, acho que desde que você abriu o jogo pela primeira vez. — O mecânico se virou para ele. — Pra mim, você sempre falava sobre as coisas da sua vida "real", sobre o idiota do seu pai e seu problema em fazer amigos na faculdade e no trabalho. Claro, fora as conversas sobre suas aventuras por Argrene. Então foi meio óbvio descobrir que você era o protagonista e uma pessoa que vivia uma vida fora daqui.
— Você ouvia tudo?! — Darka passou por um momento de realização, levantando de repente. — Eu sabia! Quer dizer, eu pelo menos sempre tive a impressão de que você era diferente dos outros NPCs, não era coisa da minha cabeça! As suas respostas eram automáticas, mas eu sentia que...
Ele congelou ao perceber que aquilo significava que o mecânico também ouvia seus lamentos e ideias suicidas. Sentindo-se envergonhado, ele voltou a sentar e ficou amuado. Percebendo a mudança de humor do amigo, Amara tentou continuar o assunto.
— Respostas automáticas? Sério? Eu sempre respondi normalmente o que você falava comigo, então o jogo traduziu pra você da forma mais próxima possível, pelo visto. Ah, e como eu soube que era a Lauren na minha frente... acho que foi intuição. Ou só você agindo fora do personagem pro Darka, isso foi uma flag gigantesca. — Amara riu. — Chorar que nem criança quando me viu também foi bem estranho.
— Em minha defesa eu tinha acabado de passar por um perrengue e tava nervoso. — Darka fez biquinho, envergonhado.
O momento descontraído foi logo interrompido por um tapa na própria testa de Amara se dando conta que estava esquecendo de algo.
— Ah! Droga, eu quase esqueci! — Ele se levantou de repente, assustando Darka. — Eu sei que isso vai soar absurdo, mas você precisa continuar o que estava fazendo.
— Continuar o quê?
— Com o processo de ressuscitar a Yrina.
— O quê?! Não, não, isso é exatamente e o que eu NÃO preciso fazer! Eu nem sequer tava tentando fazer isso desde o começo do jogo, do que cê tá falando?!
— Eu sei, eu sei! Mas é que você vai precisar dela.
— Mas hein...? — Darka levantou e olhou no fundo dos olhos dourados de Amara, extremamente confuso. — Por que?! Ela não vai querer se vingar destruindo tudo?
— Olha... eu não era um jogador. Na verdade, eu fazia parte da equipe de desenvolvimento do Red Ocean Online como programador... — Nervoso, ele parecia estar com receio de contar sobre aquilo. — E por causa disso, eu sei um pouco do planejamento da história. Logo após o protagonista recuperar as memórias, ele vai sim atrás de reviver a Yrina, mas não é ela quem vai destruir tudo.
Aquela informação fez a cabeça de Darka tumultuar de perguntas, que muito provavelmente precisariam de uma longa tarde de conversa para serem respondidas, e pelo tom de urgência de Amara isso não aconteceria tão cedo. Então decidiu apenas respirar fundo e escutar para entender por qual motivo ele estava pedindo aquilo.
— Então... — Darka ficou pensativo. — Trazer ela de volta vai ser importante pra história.
— Não, vai ser importante pro destino desse mundo. Não estamos mais no jogo, Darka, isso aqui é real.
O mecânico foi até a janela do recinto, que dava para uma bela paisagem noturna da cidade, salpicada com algumas luzes acesas apesar de ser o começo da madrugada. Ele abriu os vidros e deixou a brisa úmida da noite soprar no recinto, enquanto se debruçava para sentir o vento depois da chuva.
— Quando cheguei aqui, passei um tempo com a ideia de que era um lugar desconhecido e não tinha relação comigo. De que, por ter sido trazido pra cá contra a minha vontade, eu não deveria nem me importar com o que acontecia ou deixava de acontecer. Mas depois que você apareceu e começou a me visitar todos os dias, eu comecei a aceitar onde eu tô e quem eu sou agora.
— Amara... — Darka encarava o amigo, pensando em como todo esse tempo o que ele via como um personagem de conforto, na verdade era outra pessoa real.
— Foi aí que percebi que eu só tava com medo de me apegar a uma coisa que eu poderia perder. — Ele se virou para Darka e sorriu. — Mas agora já é tarde demais, eu quero aproveitar essa oportunidade de viver aqui.
— E ressuscitar a Yrina vai ajudar nisso, entendi. Pera... então você sabe como a lore do jogo ia terminar?!
— Mais ou menos. Como eu disse, isso aqui é um mundo real e as coisas podem mudar. Eu era só um programador júnior e mexia com as partes chatas que os sêniores não queriam lidar. Mas sim, você mesmo sabe que a Yrina não é uma pessoa ruim. Não sente falta dela?
O peito de Darka apertou com um sentimento que ao mesmo tempo que não parecia seu, era praticamente o mesmo que sempre sentiu como Lauren: saudades da figura materna.
— O que eu contei mais cedo sobre ela... é tudo verdade, não é?
— Sim. Não são memórias artificiais, se é o que tá pensando. Darka passou por tudo aquilo. — Amara voltou para perto dele. — Mas de qualquer forma, o que importa é o que vem pela frente.
— E pra isso a Yrina precisa estar viva. Esse era o plot twist do final do jogo? — O tom dele era de sarcasmo.
— Você faz soar como se fosse algo previsível e idiota. — Amara deu de ombros, rindo. — De qualquer forma, Red Ocean não era lá um bom jogo exatamente, né? Deve ser por isso que fecharam os servidores.
— Na verdade foi por causa do CEO fugindo com o dinheiro da empresa.
— O quê?! — Amara parecia surpreso e irritado. Respirou fundo tentando manter a compostura e logo se acalmou. — Ok, ok. Vamos focar no agora. O que você sabe sobre os gêmeos?
— Nada além de que são irritantes e me fazem cogitar perder meu réu primário por agressão a menores. E que estão tentando fazer com que eu seja o culpado pelas coisas ruins que acontecem. — Darka pensou um pouco. — E... que eu nunca vi eles no jogo antes.
—Então, eles... — Algo atrás de Darka chamou a atenção de Amara. — Cuidado!
Em um movimento rápido, o mecânico puxou Darka para baixo a tempo de desviar de uma chave de fenda que voou em sua direção, fincando-se na parede. Ao se virar para ver o que estava acontecendo, viu Katarina escorada na porta, com uma dificuldade aparente em se manter de pé. Darka imediatamente fechou a cara.
— Mas que inferno, mulher!! Tu não sossega não?!
— O que você fez... comigo... — Ela andou na direção dele com dificuldade, antes de cair de joelhos no chão. — O que fez com Tharia?!
— Ah não, chega, Katarina. — Darka foi em direção a ela também, visivelmente impaciente.
— Darka, não é pra bater nela. — Amara avisou enquanto tentava puxar a chave de fenda presa na parede. — Ela ainda tá machucada.
— Ah, quando era EU com a costela quebrada apanhando dela ninguém falou nada! — Ele observou a mulher para ver se ela não tinha mais nenhuma possível arma para atacá-lo, antes de se inclinar para tentar carregá-la de volta para o quarto.
— Não ouse tocar em mim! — ela se afastou. — O que pensa que estás fazendo?!
— Eu estou tentando TE AJUDAR, sua idiota! — Darka perdeu a paciência. — Eu não sei qual é o diabo do seu problema que te impede de escutar o que os outros falam! Eu não fiz porcaria nenhuma contigo, muito pelo contrário! Sabia que fui eu quem te carregou de Caadis até aqui? Sinceramente, em toda essa maldita história foi você que veio atrás de mim baseada em historinhas imbecis dizendo que eu sou isso e aquilo! Você só fica falando de demônio isso, execrável aquilo, pelo amor de seja lá o que é sagrado pra você, pensa com a sua própria cabeça uma mísera vez! Você não é a Tharia, você é Katarina Aurea, acorda! Tu não precisa ser essa guerreira maluca defensora da paz mundial o tempo todo!
A paladina congelou, sem reação ao ver Darka brigando daquele jeito com ela. Diferente de todas as outras vezes, agora ela sentia que de certa forma conseguia vê-lo. Não era o demônio da lenda, mas um garoto zangado e até decepcionado com ela. E aquilo despertou emoções que ela nem sabia que tinha. Ainda surpresa e processando o que sentia, lágrimas começaram a escorrer em seu rosto, sem tirar os olhos de Darka.
— Mas... se eu não for o que eu preciso ser... — ela baixou a cabeça. — Quem eu sou?
Darka começou a se acalmar, agora surpreso pela reação dela. Olhou para Amara, que apenas respondeu com um suspiro. Katarina tinha sido uma pedra enorme no seu sapato por muito tempo, mas ela ainda era uma pessoa. Todos ali eram. Depois da conversa com Amara, ele se deu conta que cada pessoa era muito mais que o rótulo de NPC, e com a mulher na sua frente não era diferente. Ela tinha sofrido lavagem cerebral a vida toda para ser a heroína perfeita, para ser a marionete de Tharia, e ter isso tirado dela era como perder única versão de si mesma que ela tinha disponível. Darka respirou fundo e se abaixou, estendendo a mão para ela.
— Se você não sabe quem é, nunca é tarde demais pra descobrir.
Ainda em prantos, ela alternava o olhar entre a mão e o rosto do jovem. O barulho de passos correndo chamou a atenção dos três, quando então Miko apareceu ofegante na porta com cara de quem havia levantado há poucos segundos.
— Darka! A Katarina não tá na cama e certeza que ela vai vir matar você e... Ah. — finalmente prestando atenção na cena, Miko se acalmou. — Creio que já está tudo sob controle então. Vou voltar pra cama, boa noite.
Observando Miko bocejar e ir dormir, Darka e Amara se entreolharam e riram. Para a própria surpresa, Katarina também achou graça e um sorriso muito sutil escapou de seus lábios.
— Está... está tudo sob controle agora. — Katarina suspirou, sentindo um alívio novo e reconfortante.
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