Leo pedia fotos de Jesus Cristo a cada uma hora. Ele já tinha ido dormir na madrugada do dia 25 quando foi acordado por uma chamada de vídeo dos amigos passando um gato todo sujo de mão em mão. Maurício e Carlinhos se atropelaram para contar a história, e ninguém conseguia parar de rir.
Nos próximos dias ele assistiu de longe enquanto Kaio e Lívia levavam o gato no veterinário, discutiam qual a ração mais premium possível para dar pro gato e compravam roupinhas e brinquedos.
Entre o natal e o ano novo ele viveu metade do tempo pendurado no celular recebendo atualizações da Odisseia do Gato e a outra metade fazendo sala para sua família e a família dos outros. Ele odiava o limbo entre os feriados. Parecia que ele não existia nem ali em Santa Maria e nem lá em Bagé. Sua mãe, pelo contrário, estava se divertindo como nunca, andando para cima e para baixo com Kamyla e a mãe dela, provando doces pro casamento, escolhendo flores para decoração, indo e voltando da chácara onde seria a cerimônia.
Leo estava gastando todo seu carisma com aquela gente. Ajudando a lavar a louça, jogando pife com o avô de Kamyla, levando Gustavo e Kauê no shopping ou na praça, mas os dias simplesmente não passavam. Quando achava um lugar onde se esconder por um tempo, ele lia O Avesso da Pele e se sentia triste.
Ao escolher trazer justamente aquele livro, sem saber nada sobre ele, Leo tinha armado uma armadilha para ele mesmo. Cada palavra parecia doer um pouco, mas ele não parecia ser capaz de largar o livro. O pior era pensar que a única coisa que poderia fazer ele se sentir melhor era conversar com seu pai sobre o que estava lendo. Ele talvez não entendesse se Leo dissesse “é um livro em segunda pessoa que o ponto de vista fica mudando constantemente…”, mas entenderia as histórias de família que eram o centro da narrativa. Entenderia mais que muitos estudiosos e críticos de literatura.
No dia trinta, Leo tomou coragem de falar com Pietro sobre o livro. Ele nem queria necessariamente contar como aquele livro havia mexido com ele, só queria tentar convencer o irmão a ler ele também.
Pietro estava sentado na mesa da cozinha, assistindo de longe Kamyla, Regina e Roberta, mãe de Kamyla, tomando mate e discutindo o casamento. Leo sentou ao lado dele, folheando o livro, se ensaiando para dizer alguma coisa.
— A mãe me contou que tu tá namorando.
Leo deixou a frase pairar no ar, sem reagir. Ele não tinha muito o que dizer de qualquer forma. Pietro já parecia saber tudo o que Leo ainda podia ter pra contar.
— Tu podia ter trazido ele pra passar o natal aqui.
Aquilo não era bem verdade. Leo até poderia, e todos teriam se comportado muito bem se ele tivesse. Tão bem, na verdade, que Pietro se sentia confiante em dizer aquilo. Porém, Leo só poderia ter de fato trazido Kaio se estivesse disposto a ignorar que seria apenas tolerado, nunca celebrado. Seus parentes e os parentes de Kamyla se sentiriam muito bem consigo mesmos e Kaio e Leo se sentiram como experimentos sociais, sabendo que só estavam sendo bem recebidos porque, naquele contexto, eram considerados adequados.
Leo não precisava de nada daquilo, e Kaio também não. Ele não sonhava com a pseudo-aceitação que eles podiam oferecer. Não se ressentia de ninguém e nem achava que eram necessariamente preconceituosos, mas era assim que as coisas funcionavam.
— Quem sabe ano que vem — disse Leo, finalmente.
— E esse livro? — perguntou Pietro, após outro momento de silêncio.
— Ele é… — Leo tentou pensar em tudo que tinha imaginado contar para Pietro. — Muito bom, tu devia ler.
***
Em dois de janeiro do novo ano, Leo voltou sozinho para Bagé de ônibus. Regina ainda ia ficar até metade do mês de janeiro, envolvida nos preparativos do casamento. Leo já estava de saco cheio, então resolveu voltar pra casa.
Ao chegar na rodoviária, começou a se questionar se tinha sido uma boa ideia não ter escolhido fazer viagem por um aplicativo de carona. Não sabia se era o clima de pós-feriado ou se simplesmente a rodoviária que era esquisita daquele jeito. Mas a disposição de bancos, um grande bloco de cadeiras dispostas de frente para as outras do outro lado do corredor davam um ar de que todos que estavam ali aguardando eram plateia um dos outros. Uma senhora lá do outro lado encarava Leo com um certo julgamento, ele se perguntava se era por conta de sua camiseta com estampa de Agostinho Carrara ou alguma outra coisa, mas torcia profundamente pra que ela não viesse falar com ele.
Felizmente, o ônibus chegou logo e ele pode se acomodar quietinho em um banco e dormir todo o tempo de viagem. Não colocou os fones, tinha medo que alguma coisa acontecesse e ele não ouvisse. Tinha algumas paranoias que ele atendia considerando a própria segurança. Nem sentiu a viagem passar, quando acordou estava passando pelo trevo de Bagé.
***
Kaio provavelmente tinha violado alguma lei de trânsito quando parou o carro perto das plataformas de embarque e desembarque da rodoviária. Estava com tanta saudades de Leo, parecia que não via ele há meses. O tempo que passaram sustentando o mal-entendido ampliava a sensação. Não ligava se rebocassem o carro, desde que deixassem ele pegar o pacote de presente no banco de trás.
O vento que corria fazendo a curva do terminal da rodoviária ajudava a refrescar um pouco daquele calorão que fazia. Kaio não abandonava as roupas pretas nem se estivesse dando uma volta pelo inferno, no entanto, o efeito da luz sendo refratada no tecido preto não era anulado apenas pela força de vontade de manter o estilo. Amarrou a barra da camiseta do mesmo jeito que Lívia fazia, mas continuava pingando suor.
Um senhor que vendia lanches e bebidas em um carrinho redondo, que lembrava de certa forma uma laranja, chegou perto de Kaio e perguntou se ele gostaria de comprar alguma coisa. Kaio acabou comprando duas garrafas de água sem gás, a primeira foi bebida em poucos segundos.
Além do calor, começava a ficar nervoso com a demora do ônibus, mesmo que ainda nem fosse a hora que o ônibus deveria chegar. Ele devia ter ido buscar Leo no natal, quando ele pediu. Ai não precisaria estar sendo assado vivo pelo sol e pelo vapor.
Leo viu Kaio antes que ele o visse. Ele desceu do ônibus gelado de ar condicionado e tomou um soco do calor seco de Bagé. Leo tinha visto Kaio várias vezes em chamadas de vídeo nos últimos dias, mas nada comparava com de fato ver ele, com o cabelo roxo e as eternas roupas pretas.
Kaio estava aprendendo muito com Jesus Cristo. Assim que viu Leo descer do ônibus, saiu correndo, como o gato fazia quando ele ou Lívia abriam a porta do apartamento. Quase miava. Abraçou Leo tão forte que quase derrubou ele no chão.
— Kaio — disse Leo depois de um tempo. — Tenho que pegar minha mala.
— Essa é a coisa menos romântica que tu poderia falar — riu.
— E desde quando tu te importa com coisa romântica?
— Eu não, mas tu é outros 500 — respondeu — É o teu papel na relação!
— Ah, sim. — respondeu pegando a mala do bagageiro do ônibus — Mais alguma função pra mim?
— Tu também provê os lanchinhos!
— E as tuas?
— Depois eu vejo.
— Isso tá parecendo golpe.
Leo colocou a mala no porta-malas do HB20 e Kaio achou que era melhor eles saírem dali antes que ele tomasse uma multa. Desesperados por causa do calor, eles pararam o carro perto da praça do Coreto para tomar um milkshake, com o ar condicionado no talo.
— Então, — começou Kaio. — parece que quando tu não vai nas aulas eles te reprovam por falta.
Recentemente ele tinha visto no sistema da universidade que reprovou na maioria das cadeiras que estava matriculado. Mesmo que não fosse por falta, ele não tinha feito uma única prova, então não tinha notas. De certa forma, não era como se ele se importasse muito.
— Não me diga…
— Eu sei! Absurdo, né? Mas enfim… não é como se eu fosse apaixonado pelo curso ou coisa assim. Quando liberar no sistema eu vou pedir o trancamento.
— Cansou de tentar ser o novo Freud?
— Pra começar, Freud era psiquiatra, eu já te disse isso. — respondeu — E também eu nunca fui apaixonado pela área da psicologia, só me matriculei porque a minha mãe queria fazer, mas tinha preguiça. Achei que ela fosse gostar se eu fizesse, mas ela nunca deu bola.
— Me pergunto o que Freud diria sobre isso…
— Primeiro, Leo, que o que Freud diria tu não ia entender mesmo, porque tu não fala alemão. Segundo, vai tomar no cu.
Leo podia não falar alemão, mas ele conhecia uma referência do Analista de Bagé quando via uma.
— E os comentários gerais da estadia em Santa Maria? Fofocas? — Kaio perguntou.
— Ah, nada muito interessante. — Pareceu querer desconversar. Ele não sabia bem o que dizer e não queria que Kaio soubesse o quão miserável ele se sentiu nos últimos dias.
Kaio tentou olhar Leo nos olhos, mas ele tinha o rosto virado para a janela. Não tinha muita gente passando na calçada naquele horário, talvez porque o calor fosse tão opressivo.
— Sabe, eu acho que tu não deveria guardar tanto as coisas pra ti.
— Como assim?
— Não sei se tu sabe, mas eu noto quando tu foge do assunto. — disse — Posso não saber muita coisa de relacionamentos, mas acho que uma parte importante de ter um é tu poder falar sobre as coisas, sobre ti.
Leo se encolheu um pouco no banco, largando seu copo vazio de milkshake no porta-copos do carro. Ele não tinha se preparado emocionalmente pra ser confrontado com os próprios defeitos.
— Eu sei…
— É? Mas não parece. Fica se fazendo de bobo aí.
— Só não quero te encher o saco com meus problemas.
Kaio revirou os olhos, mas Leo não viu.
— Se eu não quisesse ouvir os teus problemas, eu nem amigo teu seria, imagina namorado.
Leo não tinha ideia do que responder, então emitiu um som que queria dizer muitas coisas. Um “ahhhhhhhhhh”.
— Tá me imitando agora?
— É a convivência. — respondeu. — Olha, eu sei que tenho uns problemas de comunicação e é bastante hipócrita da minha parte, mas eu não sei como não ter.
Leo respirou fundo e conseguiu, finalmente, descolar os olhos da janela e olhar para Kaio. Não era fácil. Quando Kaio estava determinado daquele jeito, tinha alguma coisa no olhar dele, e Leo ficava meio sem reação. Ele não tinha nada engraçadinho pra dizer.
— Mas tu pode tentar, pelo menos? — Kaio segurou a mão de Leo, entrelaçando os dedos deles. — Eu não tenho como saber como tu tá se sentindo se tu não falar e eu quero saber como tu tá sentindo, eu me importo.
— Eu vou tentar tentar, tá bom?
Leo viu a expressão no rosto de Kaio suavizar. Era sempre bom saber que mesmo quando tinha um problema, não era o fim do mundo. Ele tinha vivido tanto tempo achando que tudo seria o fim do mundo.
— Tá sim! — Kaio sorriu e se aproximou pra dar um beijinho na bochecha de Leo.
— Tu tá mais falante, mais soltinho, hein.
— Tem que ter coragem pra viver, né.
Leo esticou o corpo por cima do console do carro para dar um beijo em Kaio. Ele achou que estava merecendo um beijinho. Estar assim com Kaio fazia ele lembrar daquele dia, um dos primeiros, quando Kaio deu uma carona para Leo e ele nunca mais parou de pensar nos braços de Kaio.
Depois que Kaio terminou o milkshake, começou finalmente a levar Leo pra casa. Não pretendiam ficar lá muito tempo mesmo, Leo só queria deixar a mala e tomar um banho. Lívia tinha decidido que fariam uma janta de boas-vindas para Leo como se ele tivesse ficado fora muito tempo. Todo mundo sabia que Lívia só estava inventando uma desculpa para reunir o pessoal na casa dela, como se precisasse de alguma. Kaio ainda precisava comprar areia para a caixinha de Jesus Cristo. Não era fácil ser responsável de pet.
— Tu precisa conhecer o Jesus Cristo, ele é tão pitiquinho.
— Essa é a frase mais estranha que já saiu da tua boca.
Com isso, Kaio passou a debater o momento da nomeação de Jesus Cristo como se Leo já não tivesse ouvido a história 50 vezes, tanto por mensagem, quanto por áudio e chamada de vídeo. Envolvidos na conversa sobre o nome do gato, nem ouviram o barulho das sirenes do caminhão de bombeiros quando começaram ao longe, mas não tão longe assim.
Mas logo não era mais possível ignorar, o trânsito ficou lento, as pessoas começaram a se aglomerar nas calçadas e nos canteiros e a fumaça escura era extremamente chamativa. O barulho da sirene era insuportável assim de perto. Kaio só queria passar dali logo, mas os motoristas dos outros carros iam cada vez mais devagar para dar fé no caos.
Chegando mais perto, a fumaça piorava a visão, mas Kaio ainda conseguia ver o caminho. O incêndio era no térreo de um prédio, em uma sala comercial. Kaio arregalou os olhos.
— Leo, acho que ali é o estúdio de pilates da minha mãe.
Comments (0)
See all