Era vinte e três de dezembro quando eles se lembraram que era quase natal. E apenas porque Leo avisou, com muita lástima, que ia viajar com Regina para passar as festas de fim de ano com o irmão em Santa Maria.
— Natal, né — disse Lívia, atirada no tapete da sala.
— Natal — concordou Kaio, deitado de cabeça pra baixo no sofá.
— Pior que eu comprei presente no começo do mês e depois apaguei a existência do natal da minha cabeça.
— Comprou presente pra mim?
— Teu presente é morar aqui de graça. — respondeu. — Mentira, comprei sim.
Realmente era um presente poder morar ali sem pagar uma conta, mas Kaio ficou feliz de saber que ela tinha comprado alguma coisa mesmo assim.
— E o que que é?
— Amanhã o Papai Noel te traz e tu descobre.
Lívia ergueu a cabeça para encontrar os olhos de Kaio e sorriu. Eles estavam assistindo O Grinch, um grande clássico da comunidade LGBT natalina.
— Aqui nem tem chaminé! — disse Kaio, indignado. Ele recentemente tinha descoberto que alguns apartamentos no prédio tinham lareira e ficou com inveja.
— Foda-se, o Papai Noel dá um jeito!
— A gente nem montou árvore de natal, ele vai ficar indignado e jogar meu presente no lixo.
— E quem não tem dinheiro pra comprar árvore de natal é esnobado pelo Papai Noel?
Kaio revirou os olhos, porque ele tinha certeza que ela devia ter, escondida em algum canto daquele apartamento, uma árvore cor-de-rosa e enfeites de glitter.
— Que que tu tá falando? Tu tem dinheiro pra comprar 300 árvores de natal!
— Não é esse o ponto!
— Tá, beleza, mas e aí? Vamo fazer o quê? — Kaio perguntou. — Passar a véspera comendo pancho e assistindo filme?
— Não! É nosso primeiro natal morando juntos nessa fortaleza queer, a gente precisa ter um natal decente!
De repente, ela se levantou com um salto, erguendo um dedo para o teto como se estivesse fazendo pose em um filme de super-herói. Kaio admirava, acima de tudo, a energia de criança que ela tinha.
— Qual teu plano maligno de natal?
— Vou mandar mensagem para o Carlinhos e para o Maurício!
Lívia tinha, de fato, uma árvore de natal cor-de-rosa e bolinhas roxas com glitter. E depois de confirmar que Carlinhos e Maurício viriam para a ceia de natal, cada um com a missão de trazer alguma coisa para comer, ela começou a montar a árvore na sala. Vinte minutos depois, deu seu cartão de crédito para Kaio e mandou ele ir comprar uma luzinha colorida, um festão e uma estrela para colocar em cima da árvore.
Ele aproveitou a oportunidade para comprar os próprios presentes de Natal, já que com toda a confusão dos últimos dias ele não tinha lembrado de comprar nada. Ele ia precisar arrumar alguma forma de ganhar dinheiro logo.
Não era muito fácil andar no centro de Bagé no dia vinte e três de dezembro, ainda mais que estava um calor horrível, mas ele fez um esforço, porque tinha muito que agradecer naquele ano. Comprou uma vela aromática para Lívia e bottoms para Carlinhos e Maurício. Ele nunca havia tido tantos amigos antes.
Leo ligou para ele justamente enquanto Kaio tentava procurar alguma coisa para dar de presente a ele, e Kaio aproveitou para sentar um pouco, em uma mesa de frente para um trailer de pancho, o que lhe pareceu apropriado.
— Vem me buscar — implorou Leo. — Eu pago a gasolina.
— Tu não tem dinheiro pra gasolina, Leo — disse Kaio. — Não deve tá tão ruim assim.
Leo fez um som entre um suspiro e um grunhido. Kaio quase pensou em largar tudo e realmente ir buscar ele, mas nunca tinha dirigido na BR e ficou com medo de bater o carro.
— Não tá… eu só queria estar aí. Vocês nem sabem cozinhar.
— Manda o peru pra gente pelo Correio então.
Aquilo fez Leo rir, o que só aumentou a vontade de Kaio de que ele estivesse ali. Leo provavelmente estaria coordenando a Operação Natal, fazendo mais comida que o necessário, montando playlists e ajudando Lívia na decoração.
Kaio acabou gastando mais do que ele provavelmente deveria comprando o presente de Leo, mas um all-star botinha vermelho com cadarços azuis era muito a cara dele, e Kaio não resistiu.
***
Leo não havia dito muita coisa naquela viagem a Santa Maria, mas ele com certeza estava desfrutando dos salgadinhos que a família de Kamyla tinha comprado pro natal. Ele nunca nem tinha comido alguns, aliás, mas aproveitava a oportunidade.
O apartamento da avó de Kamyla tinha mais quartos do que um apartamento normal deveria ter, e mesmo estando cheio de gente, parecia espaçoso, e ele conseguia encontrar cantos para ficar meio escondido quando queria falar com os amigos ou ligar para Kaio. Mas, em geral, ele era sempre interrompido por seu primo, ou o amigo do seu primo, que queriam que Leo os levasse de um lugar para outro.
— Leva a gente no shopping? — disse Gustavo, na manhã do dia vinte e quatro. Kauê estava logo atrás dele, usando uma camiseta do Garfield que Leo achou que Kaio ia gostar. — Minha mãe não deixa a gente ir sozinho.
— Mas bem capaz que eu vou levar vocês no shopping dia vinte e quatro de dezembro. — Leo não estava a fim de enfrentar a montoeira de gente, e também não sabia direito como chegar no shopping.
Leo não culpava Gustavo e Kauê por quererem sair. Eles estavam entediados, e ele também estava. Juntando a insistência deles com o fato de que se ele levasse aqueles dois no shopping, não teria que ficar procurando assunto com sua família, acabou cedendo.
Os pais e a avó de Kamyla eram pessoas muito legais e Leo estava feliz de ver sua tia que morava em Santa Maria, e até a própria Kamyla estava se esforçando para gostar de Leo, apesar das diferenças deles. Mas ele não se sentia disposto a conversar muito tempo com nenhum deles, e quando tentava, sentia uma angústia estranha no peito.
Porém, Gustavo e Kauê tinham treze anos, não davam a mínima para o que Leo fazia da vida dele e só queriam falar de animes e Minecraft, então Leo chamou um carro e levou eles no shopping.
Carlinhos estava muito triste de não poder passar o natal com os pais em Ilhéus e eles tentavam animá-lo. Lívia, pelo que ela contou pra Kaio, não passava o natal com os pais desde 2020, por conta de alguma coisa que aconteceu em 2019 sobre a qual ela não quis falar. Kaio não falava mais com a mãe e não morava mais na casa dela. E, por fim, Maurício também não passava o natal com os pais e não morava com eles, apesar da família dele ser de Bagé. Por mais que Kaio estivesse um pouco curioso com isso, achou melhor não perguntar.
E assim eles formavam o natal dos rejeitados e abandonados.
Lívia estava tão envolvida fazendo um pudim para a ceia que acabou envolvendo Kaio também e eles esqueceram que ele também deveria preparar alguma coisa. E ainda queimaram o pudim. Lívia estava desolada.
Carlinhos e Maurício chegaram às sete horas, um com uma torta fria que tinha encomendado com a intenção de comer sozinho, mas que aceitou trazer, e o outro com um pote cheio de salpicão para o qual Kaio torceu o nariz porque estava cheio de uva-passa.
— Ai que saudade do Leo — disse Maurício.
Há poucas situações humanas que se comparam a passar pelo purgatório, mas ir ao mercado na véspera de natal com certeza é uma delas. Kaio definitivamente não estava disposto a enfrentar aquilo, mas Lívia estava quase chorando por conta do pudim queimado, então Kaio, Maurício e Carlinhos decidiram embarcar no HB20 e seguir nessa odisseia do inferno.
Kaio nunca deu muita bola pro natal. Sua mãe sempre organizava ou participava de uma festa com as famílias de suas amigas, ou, raramente, com os parentes de Roger. Ela não falava com a família de Novo Hamburgo e Kaio não conhecia ninguém. Ele passava os dias de final de ano sem sentir nada, se mexendo de cômodo em cômodo e pensando que a alegria era para as outras pessoas. Mas naquele ano, mesmo enfrentando as filas quilométricas do mercado, ele estava feliz por estar ali.
— Não tem mais nada nesse mercado! — comentou Carlinhos — Vamo em outro.
— Nos outros também não vai ter nada, é 24 de dezembro! — respondeu Maurício — Acho que a gente volta pra casa da Lívia e faz pipoca.
— Não, não, comi pipoca a semana inteira, não aguento mais — Kaio reclamou — A gente pega qualquer coisa, não precisa ser nada tradicional.
Eles decidiram comprar uma lasanha de micro-ondas, sabor carne, uma pizza congelada de calabresa, um pacote de 1kg de batata-frita, uma torta doce (a última, aliás) duas garrafas de espumante e três litros de Coca-Cola.
— Ei, Maurício, sabia que usar verde no natal engravida? — Carlinhos disse, inclinado sobre o carrinho de compras enquanto eles esperavam na fila. Maurício estava usando uma camiseta verde-musgo.
— Sim, tu acha que o menino Jesus vai nascer como hoje?
— A virgem Maria tá diferente — disse Kaio, e eles riram.
Kaio ficou meio surpreso de perceber que Carlinhos e Maurício realmente gostavam dele. Que o viam como amigo, que queriam estar com ele mesmo quando Leo não estava por perto. Ele conseguia entender porque Lívia gostava dele, já que as circunstâncias aproximaram eles. Mas Carlinhos e Maurício escolheram ser amigos de Kaio. Isso nunca tinha acontecido antes, pelo menos não antes dele conhecer Leo.
Apesar da falta de comidas temáticas, eles fizeram questão de sentar à mesa e comer juntos. Ligaram a TV em algum canal que passava filmes e Leo mandou para eles uma playlist de natal que deixaram tocando baixinho. Leo ligou para Kaio e Carlinhos fez uma longa chamada com a família em Ilhéus. Como estava muito calor, sentaram na sacada depois da meia-noite, tomando os restos do espumante.
Kaio não aguentava mais os fogos, tinha vontade de mandar eles calarem a boca, mas, infelizmente, fogos de artifício não tinham boca. No intervalo entre um rojão e outro, Kaio ouviu um miado e considerou estar ouvindo coisas que não existiam. Porém, percebeu que os outros ouviram também. Começaram a procurar de onde vinha aquele miado, nenhum dos vizinhos próximos de Lívia tinham gatos, também nunca viram nenhum gato de rua ali por perto.
— Ó lá um gatinho! — Mauricio gritou apontando para perto de uma árvore do outro lado da rua.
— Onde, Maurício? — Carlinhos espremeu os olhos tentando achar alguma coisa enquanto se inclinava sobre o parapeito da sacada.
— Ali ó, pertinho da raiz da árvore, bem pitiquinho — Maurício continuou apontando para um pontinho preto na calçada.
O gato miou de novo e, então, todos conseguiram encontrar a bolinha de pelos.
— Meu deus, é minúsculo! — Lívia falou com mais emoção do que imaginava que ia.
— Vamo lá pegar ele! — Kaio se levantou, deixando a taça de espumante no chão e correndo para colocar seus tênis.
Ninguém respondeu, apenas saíram em disparada ao encontro do gato. Deixaram tudo pra trás, a porta ficou escancarada, os celulares atirados nas cadeiras na sacada, nada importava mais que o gatinho.
Ao chegarem perto da árvore, o gato fez exatamente o que se esperava de um gato: fugiu para baixo do carro mais próximo.
— Porra, e agora como tira o gato debaixo do carro? — Carlinhos perguntou indignado.
A luz do poste mal iluminava o gato e ajoelhado no chão, Kaio só conseguia ver os olhinhos amarelos brilhando. Eles podiam ouvir uma música de natal tocando da sacada de algum dos prédios ali perto.
— Talvez se a gente chamar ele com um pouquinho de comida de gato… — Kaio ponderou.
— E a gente tira comida de gato de onde a essa hora num feriado internacional? — Lívia questionou fazendo muitos gestos.
Kaio revirou os olhos, ainda ajoelhado ao lado do carro. Lívia inclinava o tronco para tentar ver o que Kaio estava fazendo. Carlinhos e Maurício estavam acompanhando, atentos.
— Não precisa ser comida de gato, qualquer uma serve!
— Mas e depois se o gato adoece? — Lívia continuou fazendo gestos demais. Kaio se dividia entre olhar para ela e não perder o gato de vista.
— O gato não vai adoecer, ele nem precisa comer, é uma armadilha!
Foi a vez de Lívia revirar os olhos, se equilibrando sobre as botas com salto plataforma, meio tonta de espumante. Kaio não estava muito diferente, tirando as botas.
— Agora tu é o Freddy do Scooby-Doo?
— Sim! E tu é a Velma!
— Mas eu sou ruiva, tenho que ser a Daphne! — Lívia segurou uma mecha do cabelo, para provar seu ponto.
— Tu não é ruiva natural, e a minha Daphne é o Leo!
Se Leo estivesse ali, provavelmente o gato já teria sido resgatado, mas Kaio e Lívia provavelmente ainda estariam batendo boca.
— Olha aqui, seu…
— PEGUEI! — gritou Maurício, interrompendo a discussão.
Enquanto Kaio e Lívia discutiam sobre quais personagens eles eram, Maurício encontrou o gato na sombra da roda e pegou antes que ele saísse correndo de novo. Carlinhos roubou o gato das mãos de Maurício e levantou tal como um bebê sendo batizado.
— É um milagre de natal! — anunciou Carlinhos no meio da rua — O nome dele vai ser Jesus Cristo!
— Ah, não! Eu não vou criar esse gato! — disse Maurício encarnando seu papel de Virgem Maria novamente — Não tenho dinheiro pra ração!
— Acho que o gato deveria ser de todos nós — Kaio olhava fascinado para Jesus Cristo nos braços de Carlinhos, como os três reis magos provavelmente também olharam.
— Ele pode ficar aqui em casa, eu tenho como bancar o coitado — disse Lívia pegando Jesus das mãos de Carlinhos.
O gatinho miava nos braços de Lívia, e Kaio fez carinho nele. Parecia estar se acostumando com eles. Kaio já estava pensando em levar ele no veterinário, comprar ração, brinquedos, e tudo o mais que o cartão de crédito do pai de Lívia pudesse pagar.
— Jesus com guarda compartilhada? — Carlinhos perguntou.
— Jesus Cristo original também tinha guarda compartilhada — lembrou Maurício.
Todos fizeram um “Ah é”.
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