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Kaio tinha pegado ônibus dentro da cidade pouquíssimas vezes na vida. Quando era muito pequeno, antes de sua mãe conhecer Roger, ele lembrava de ter pego ônibus com ela algumas vezes, e na época nem sequer eram os ônibus de agora, mas sim uns modelos antigos, mais quadrados e pintados de um vermelho vivo. Ele passava por baixo da catraca. Tirando isso e aquela noite em que Leo o acolheu e o levou para casa, ele não tinha muita experiência com ônibus.
Mas quando ele entrou no ônibus do Prado Velho naquela noite, ele soube que ver seu nome escrito na parte de trás dos bancos não era muito comum. Embora, claro, o que estivesse escrito no ônibus fosse “Caio”, com C, e alguém estava riscando por cima do C com a letra K, inconfundivelmente escrevendo “Kaio” com uma caneta permanente preta. De onde estava sentado, ele podia ver que o banco da frente tinha sido alterado, assim como um à sua direita, algumas fileiras para cima.
E aí, sacolejando dentro do ônibus pelas ruas esburacadas, suando no calor de dezembro, Kaio sorriu. Ele passou a mão pela nuca, e o suor na ponta de seus dedos tinha um leve tom de lilás.
Naquela quarta-feira de tarde, Kaio levou Lívia junto com ele para pintar o cabelo. Se era para fazer mudanças radicais, ele não queria estar sozinho. E se era para dar um susto em Leo, tinha que ser bem feito. Lívia marcou um horário para ele com a moça que a deixou ruiva, e as mãos de Kaio tremiam um pouco enquanto ele dirigia até lá e continuaram tremendo quando ele sentou na cadeira. Lívia chamou ele de dramático, e Kaio não soube explicar para a cabeleireira porque era tão apegado ao cabelo loiro. Ele ficou de olho fechado durante a maior parte do processo, mas quando se viu com o cabelo todo roxo no espelho, sentiu que algo finalmente tinha se desprendido dele. Poderia parecer bobagem, pouca coisa, mas para ele era uma sensação de existir completamente nova. Se ele podia pintar o cabelo, o que mais não poderia fazer? E ele estava se sentindo bonito.
Com a adrenalina ainda correndo nas veias e cheirando a tinta de cabelo e shampoo, Kaio entregou a chave do HB20 para Lívia e foi caminhando pegar o ônibus, que parecia não chegar ao bairro de Leo nunca. Talvez não tenha sido a ideia mais inteligente entregar o carro para Lívia, que sabia dirigir — mais ou menos, de acordo com ela mesma —, mas não tinha carteira. Mas era melhor que Leo não visse o carro quando chegasse, e Kaio não ligava muito.
Ele conseguiu descer no lugar certo, agradecendo por ter uma memória razoável, e ficou feliz por não ter precisado pedir socorro à Lívia. Por sorte e para o bem de seu plano maligno, Kaio sabia embaixo de qual pote de planta dona Regina escondia a chave reserva. Foi o próprio Leo que deu a informação, o que meio que fazia toda a coisa de ter uma chave secreta meio inútil. Talvez ele pensasse que Kaio fosse confiável. E ele era, na maior parte do tempo. Nunca que Leo imaginaria que Kaio tramaria contra ele.
Não era, na verdade, contra ele, era em favor deles. O que é um jeito muito suspeito de se pensar.
Era estranho estar na casa de Leo sem ele. Fazia dias que Kaio não visitava Leo, e ficou surpreso em encontrar um dos seus próprios moletons sobre a guarda do sofá, ele nem se lembrava que estava com Leo. Kaio se fechou no quarto, não sem antes tomar água da garrafinha de Leo que estava dentro da geladeira.
Ele tentou não fazer barulho, esperando, mesmo quando Regina chegou, já tarde. Ele estava nervoso, e tentou ler os quadrinhos e revistinhas de Leo, mas não parava de tremer a perna, para cima e para baixo. Ele não sabia ainda o que ia dizer e naquele momento só pensava em ver Leo, em falar com ele.
Leo, que passou a noite trabalhando sem ter ideia do que estava acontecendo, só queria chegar em casa, tomar um banho e dormir até às duas da tarde de quinta. Ele estava todo suado, cheirando a gordura e não dormia direito há dias. Talvez desde o dia em que Kaio apareceu com a mala. Ele andava pela casa, assistia TV na sala, ficava um tempo sentado no pátio, pensando em formigas e gansos e sentindo falta dos oito meses em que Pietro teve uma fase rebelde e às vezes ele roubava cigarros da mochila dele. Mas quando ele chegou em casa, tomou, realmente, um susto.
— Não grita — disse Kaio quando Leo abriu a porta do quarto.
Leo engoliu o grito, chegou a doer. O susto fez seu coração pular, principalmente porque não identificou, a princípio, quem estava ali, casualmente deitado na sua cama, com uma das pernas apoiada no chão. Depois que percebeu que aquela pessoa era Kaio, seu coração se acalmou, só para acelerar de novo.
— Roxo. — Foi o que ele conseguiu dizer quando se recuperou do susto.
Leo fechou a porta do quarto e largou a mochila, se sentindo incapaz de conceber uma frase com mais de duas palavras. Ele estava, talvez, muito impactado pelo quanto Kaio estava bonito e talvez um pouco envergonhado porque ele mesmo estava parecendo que perdeu uma briga com um pancho.
— Sim, Leo. Roxo. — Kaio sorriu.
Leo conseguiu se sentar na cadeira, sentindo as pernas doerem de ter ficado tanto tempo de pé. Aos poucos, ele começou a pensar.
— Minha mãe sabe que tu tá aqui? — disse ele, mesmo sabendo que a resposta era não.
— Não, — respondeu Kaio, como esperado — eu entrei com a chave que fica embaixo do potinho.
— Não sei se tu sabe, mas invasão de domicílio é crime.
Kaio sorriu, o que mexeu com uma parte muito particular de Leo, que resolveu se levantar e começar a tirar coisas de sua mochila, procurar por roupas limpas no guarda-roupa, enfim, qualquer coisa.
— É invasão quando o dono da casa nos contou onde encontrar a chave?
— Sim! E eu não sou o dono da casa, minha mãe que é!
— Tá, mas não importa isso agora.
Leo, na verdade, só se importava em tomar banho naquele momento. Ele sabia porque Kaio estava ali, e talvez soubesse que uma coisa assim ia acontecer mais cedo ou mais tarde, mas ele ainda podia sentir ketchup embaixo das unhas.
— Eu vou tomar um banho — anunciou ele, apressado, tirando a camiseta e a atirando em um canto do quarto. — Só me dá uns minutos antes da gente falar sobre isso tudo.
Kaio quase disse alguma coisa, porque ele queria, mais do que tudo, falar sobre isso tudo, mas ele entendia que tinha tirado Leo dos eixos. Talvez o cabelo e a invasão fossem demais, principalmente a invasão, mas era isso que Leo merecia por estar evitando ele. Além disso, ele foi distraído por Leo tirando a camiseta dramaticamente, igual o Jacob nos filmes de Crepúsculo, embora Kaio não gostasse do Jacob. E nem a Bella, aliás.
Depois que a água gelada do chuveiro acalmou os pensamentos de Leo, ele pensou que era um pouco estranho que Kaio tivesse cometido um crime leve, mas quem sentia que devia desculpas era ele. Saindo do banho, ele voltou para o quarto, rezando para sua mãe já estar dormindo. Não ajudava muito que Kaio continuava ali, atirado, com o cabelo roxo sobre o qual Leo não sabia nada, e aquela bermuda que ele raramente usava, e os coturnos que Leo nem ligava de estarem atirados perto de seus lençóis.
— Então, ignorando a parte do crime, por enquanto, o que tu veio fazer aqui?
Leo se aproximou da cama, e Kaio abriu espaço para ele sentar, cruzando as pernas. Ele ainda sentia a tensão entre eles, ela estava bem explícita na forma como seu joelho estava quase encostando no de Kaio, mas mesmo assim ele resistia a vontade de se aproximar mais, de estender a mão para fazer carinho em Kaio, de beijar ele.
— Não posso visitar?
— Não acho que tu tenha vindo só pra visitar hoje — disse Leo com sinceridade, apenas querendo que Kaio fosse honesto sobre aquela pataquada.
— Bom, a gente precisa conversar várias coisas e tu não tava falando comigo, precisei dar um jeito. Tudo ideia da Lívia.
Claro que tinha sido ideia da Lívia, Leo pensou, grandes gestos eram a cara dela, ela amava um drama, mas apenas ao modo dela. Que baita dupla ele tinha criado, mesmo que sem querer.
— Só podia ser…
— E se eu fosse no trailer, acabaria atrapalhando teu trabalho, não ia ser legal.
— Sei, a desculpa também foi ideia da Lívia?
— Sim.
Leo suspirou, sabendo bem que eles tinham pensando em tudo. Ele reuniu coragem e encarou Kaio.
— Desculpa por estar estranho e por ter sumido. — Ele disse, pensando que seria mais fácil começar pelas coisas simples.
— Desculpa pelo susto — respondeu Kaio.
A tensão nos ombros de Leo diminuiu um pouco quando ele percebeu que a expressão no rosto de Kaio era tranquila. Havia mesmo um sorriso no canto dos lábios dele. Leo esperava encontrar raiva, ou mesmo rejeição. Ele tinha até cogitado que sua estupidez fosse afastar Kaio dele para sempre. De todas as possibilidades que passaram por sua cabeça, ele não pensou em reconciliação e agora se sentia meio idiota por ter pensado que as coisas ficariam horríveis para sempre.
— Eu não devia ter saído da casa da Lívia daquele jeito. Eu queria ter te ajudado. Foi um dia difícil. — Aos poucos, Leo estava chegando a algum lugar.
— Tu fez tudo que pode, Leo. E eu… eu podia pensar melhor antes de fazer as coisas, aí talvez não tivesse nos metido nessa situação.
Kaio fez uma pausa, tentando olhar Leo nos olhos, mas ele tinha o rosto virado para a parede. Aquilo era, claramente, muito mais difícil para Leo do que ele iria admitir. Mas nada estava sendo exatamente fácil nos últimos dias, e eles continuavam tentando.
— Eu entendo porque não posso ficar aqui e eu também entendo que só posso culpar a mim mesmo por não ter conseguido fazer as coisas de um jeito melhor. É tudo meio difícil e eu… — Ele respirou fundo, tentando articular o que queria dizer. — Eu me senti um pouco rejeitado.
— É tão ruim morar com a Lívia? A gente pode dar um jeito, Kaio — disse Leo.
— Não… — Kaio fez um gesto com as mãos. — Na verdade, é bom. A gente tá se ajeitando e eu acho que gosto da ideia de que o quarto é um espaço que eu vou poder transformar aos poucos, do meu jeito. Tô feliz que tu nos juntou. Eu e a Lívia nos entendemos.
Leo olhou para Kaio, aliviado, e estendeu sua mão. Kaio entrelaçou os dedos deles.
— Eu queria que fosse possível tu ficar aqui. Se fosse só por mim, Kaio, eu construiria uma casa de três andares no centro da cidade pra ti — disse Leo, e Kaio riu. — Eu não consigo fazer tudo e acho que fiquei assustado, depois culpado, achei que tinha estragado tudo entre a gente.
Kaio apoiou a mão livre nas costas de Leo, puxando ele para um abraço. Leo estava tão cansado, e o cheiro do cabelo de Kaio era tão bom e ele ficou ali por um momento, com o rosto apoiado na curva do pescoço de Kaio.
— Tu não pode sumir mais. — Kaio resmungou.
Leo riu, e endireitou a coluna para observar o rosto de Kaio.
— Não vou. — Ele tocou levemente a ponta dos cabelos recém-pintados de Kaio. — Tu tá muito bonito, sabia? Eu adorei teu cabelo.
Kaio ficou levemente vermelho e passou também uma mão pelos cabelos.
— Isso não foi ideia da Lívia, foi minha. Mas, de qualquer forma, foi ela quem marcou o horário e me acompanhou lá… e me inspirou, eu acho?
Leo só conseguia pensar que Lívia devia estar adorando ser uma musa inspiradora. Era um dos grandes sonhos dela.
— Que profundo isso — Leo abriu um sorriso. — Eu sabia que tinha sido ideia tua.
Kaio sorriu, e deu um beijo em Leo. Ele nunca poderia ter imaginado que sentiria tanta falta de beijar alguém, mas ele sentiu falta daquilo, e aproveitou cada um dos beijos demorados, respirando fundo o cheiro de Leo.
— Tu tem sido muito corajoso, Kaio, eu tenho muito orgulho de ti… — disse Leo, um tempo depois, quando estavam os dois embaixo das cobertas, enroscados um no outro para dormir. — Eu…
Ele nem chegou a terminar a frase, simplesmente apagou de cansaço. Kaio o puxou mais para perto.
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