***
Duzentos e setenta e três era o número de ursinhos de pelúcia no quarto novo de Kaio, ou pelo menos essa era a estimativa que eles fizeram. Os ursos estavam enfiados em prateleiras brancas, empilhados sobre um sofazinho e em cima da cama.
— Eles precisam todos ficar aqui? — Kaio perguntou.
— Tu pode mover os da cama pro sofá pra abrir espaço pro Leo deitar quando ele vier — disse Lívia, abrindo as cortinas lilás da janela com vista para a rua.
Leo murmurou um “graças a deus” e Kaio apenas ignorou. Ele estava se coçando para dar uma mudada na decoração, trocar a cor das paredes, colocar um tapete preto, uma roupa de cama preta, uma lona preta em cima dos ursos com cara de assassino. Mas ele precisava se lembrar que o orçamento para decorações era um pouco diferente agora.
Quando Leo explicou a situação de Kaio para os amigos, Lívia ofereceu o apartamento para ele ficar assim que leu a mensagem. Leo ficou aliviado, mas a verdade é que já estava meio que contando com isso. Eles se davam muito bem e Lívia sempre falava que queria alguém para morar com ela (Leo achava que ela tinha um pouco de ciúmes que Carlinhos e Maurício moravam na mesma pensão). E, enfim, não tinham muitas outras opções mesmo. O melhor de tudo, é que Lívia não iria cobrar nada. Ela dizia que não era justo cobrar um aluguel por um apartamento que nem tinha sido comprado com o dinheiro dela e, além disso, o pai pagava as principais contas. A condição era que Kaio ajudasse a limpar o apartamento, coisa que Lívia odiava fazer, mas talvez com companhia para tal atividade ela se dispusesse mais.
O quarto era consideravelmente menor do que o que ele tinha na casa da mãe, o que de certa forma era um alívio para Kaio. Duas das paredes eram pintadas de um verde menta bem clarinho, e em comparação com o resto da casa, tinha pouca decoração, tirando, claro, os mais de duzentos ursinhos. Fazia anos que ele não tinha uma cama de solteiro, mas Leo garantiu que já tinha dormido naquela cama com Maurício e Carlinhos várias vezes, então devia servir.
— Quer dizer, em geral, eles acordam de conchinha e eu acordo no tapete — disse Leo, sentado sobre o tapete branco felpudo. — Mas, enfim, dormimos os três aqui.
A cama era antiga, uma estrutura de ferro cor de creme, que tinha sido da vó de Lívia e que passou para ela quando era criança. O estrado da cama rangia um pouco e entre as grades da cabeceira estavam presas fitas cor de rosa já desbotando. Kaio se esforçou para aceitar que aquelas coisas agora eram, pelo menos enquanto ele morasse ali, dele.
Lívia havia saído do quarto por um momento, e Kaio sentou sobre o tapete também. A mala estava em cima da cama, assim como a enorme sacola das coisas que eles compraram aquela tarde. Roupas de cama, um travesseiro, toalhas de banho. Uma pessoa, aparentemente, precisa de muito mais do que o que cabe numa mala. Ele até tinha a ideia de voltar na casa, tinha tanta coisa que ficou para trás, mas quanto mais tempo ele ficava longe de lá, menos ele queria voltar. Ele tinha, secretamente, o medo de que se voltasse, a nostalgia de ver as suas coisas, no seu quarto, do seu jeito, fosse fazer ele não querer sair mais.
Como Kaio não estava falando nada, Leo começou a falar duas vezes mais.
— Tu odiou muito os ursinhos e a cor de sorvete das paredes? A gente ainda pode tentar comprar uma tinta, quer dizer, eu sei que é caro demais agora, mas se tu não tiver confortável aqui, eu…
— Leo — Kaio interrompeu —, tudo bem. Eu não odeio os ursos.
Era verdade, embora Leo não tenha acreditado no momento. Kaio até gostava um pouco dos ursos, embora não fosse admitir só pela graça de fingir odiar eles. O que ele não gostava muito era da ansiedade crescente de Leo.
— Kaio, eu sei quando tu não gosta muito de alguma coisa.
— Eu acho que só preciso de um tempo pra me acostumar. — Kaio apoiou a cabeça na beirada da cama, descansando a nuca no macio do colchão. — É estranho ter uma cama que não é minha em um quarto que nada é meu. Tu não precisa tentar consertar isso, Leo, tu já conseguiu um lugar pra eu ficar que não é na tua casa.
Leo desviou o olhar para a janela, virando o rosto para longe de Kaio, que sabia que tinha dito a coisa errada. Bom, talvez não a coisa errada, mas a coisa certa do jeito errado. Nos últimos dias parecia que era só o que ele fazia, magoar Leo sem querer. Ele se sentia culpado, mas Leo também. E aí com tanta culpa, como é que eles podiam resolver aquela tensão?
— Tu tá chateado por não ter ficado lá em casa?
— Não, não é isso. Eu já… a gente já falou sobre isso.
Mas eles não tinham falado muito sobre isso não, e ele estava sim chateado por não ter ficado lá. Mas isso era birra de Kaio, e Leo não merecia isso.
Lívia escolheu aquele momento para voltar, com um espumante e três taças na mão, um sorriso nos lábios pintados de rosa. Pelo menos alguém estava animado.
— A gente precisa fazer um brinde — ela disse, sentando com as pernas cruzadas sobre o tapete.
Leo se levantou, juntando seu celular e a mochila de cima da cama.
— Não posso, eu tenho que ir lá pro trailer — ele disse, já na metade do caminho para a porta. Antes de ir, se virou para Kaio. — Me manda foto depois que tu arrumar as coisas de como ficou.
Depois que eles ouviram Leo fechar a porta da frente, Lívia se virou para Kaio, que sabia que ela não ia deixar aquilo passar. Ele não tinha dado um beijo ou um abraço de tchau em Kaio, só pegou as coisas e foi embora. Kaio não devia ter dito nada.
— Que porra foi essa?
Ela se levantou e foi até a janela abrir o espumante, e Kaio ficou um pouco impressionado com a habilidade com que ela estourou a rolha, sacudindo a garrafa na rua, provavelmente derramando um pouco em algum pedestre lá embaixo. Ele nem sabia se queria espumante, mas diante de tudo que estava acontecendo, mal não podia fazer.
— O resultado das merdas que eu faço, provavelmente — Kaio aceitou a taça que ela ofereceu e brindou sem muita vontade. Lívia fez cara feia e ele suspirou e fez um brinde de verdade, tomando metade da taça de um gole só.
— Tá, e aí? Vão ficar fazendo ceninha assim?
Kaio estava se sentindo meio mal por causa de Leo, mas devia estar sendo um saco para Lívia também, que só queria comemorar ter um colega de quarto.
— É uma possibilidade.
— Ah, não, não aceito essas coisas embaixo do meu teto — disse bebendo um gole do espumante — Sei que o Leo às vezes é complicado de conversar sobre o que tá ruim, mas cacete, vão se ajeitar.
— Eu não sei o que fazer — Kaio disse, alongando a letra “e” o máximo que podia. Lívia encheu a taça dele de novo.
Ela estendeu uma das mãos para fazer carinho no cabelo de Kaio. Se ter um colega de quarto era beber espumante e receber cafuné, até que não era tão ruim.
— Vocês têm que dar jeito, Kaio. É diferente agora.
— Como assim diferente?
Lívia tomou um gole de espumante antes de responder. Ela pensou em todas as vezes que desperdiçou seu tempo dando conselhos para que Leo insistisse em alguma coisa, algum projeto, alguém que gostava dele, mas ao menor sinal de problemas, ele saía correndo.
— Acho que eu nunca tinha visto o Leo insistir numa coisa que ele quer como ele insiste em ti. Se vocês jogarem isso fora por bobagem, eu acho que mato ele e depois tu.
Kaio não sabia o que dizer sobre aquela informação que mais parecia um tapa na cara, então ele tomou o resto de sua taça de espumante e se levantou para começar a arrumar suas coisas.
Três horas depois, os ursos já tinham sido tirados da cama e Kaio havia colocado lençóis preto e branco, o que aliviou um pouco a sensação de estranheza do quarto. Lívia tinha tido o cuidado de pendurar os poucos posters que ele conseguiu salvar da casa da mãe. Parecia o quarto de um pré-adolescente que virou emo da noite para o dia, o que fez eles rirem. Eles jantaram nuggets e batata frita, que Lívia fez na Air Fryer, e tomaram o resto do espumante e mais um pouco da vodka que estava aberta na geladeira.
— Tu deve estar muito arrependida, meu Deus — Kaio disse, enquanto Lívia segurava seus cabelos para trás pra ele vomitar.
— Kaio, eu preciso te confessar uma coisa, esse era meu maior sonho — disse Lívia, rindo.
Kaio apoiou seu rosto na beirada do vaso. Meu Deus, como ele estava com saudades de Leo.
***
Ele não estava bravo, nem irritado, ou estava? Não queria pensar nisso, mas talvez devesse. Mas de fato não queria.
Depois de um tempo, Leo conseguiu admitir que não deveria ter saído da casa de Lívia daquele jeito. Não era sempre que ele tinha um senso de urgência muito grande de sair de algum lugar, mas quando ele tinha, ele só saia. Fazia do mesmo jeito que Kaio, que moral ele tinha pra reclamar? Ele devia ter ficado até ter certeza que o quarto estava confortável o suficiente, que se parecesse com Kaio o bastante. Só o que o confortava era que ele confiava o bastante em Lívia para ajudar Kaio e sabia que eles se dariam bem juntos.
Mas não foi isso que ele fez. Ele saiu do prédio o mais rápido que pôde e fez o caminho familiar até o centro, subindo pela General Neto para evitar o fluxo de gente que subia e descia a Sete de Setembro. Na Praça Esporte, ele se demorou um pouco, sentou em um dos bancos e ficou ali, passeando os olhos pelos brinquedos e as crianças que aproveitavam o fim de tarde. Seu pai trabalhou como pipoqueiro durante algum tempo naquela praça quando ele e Pietro eram crianças. Eles ficavam pela praça enquanto a mãe estudava, na época ela fazia o EJA à noite. Leo lembrava de deitar no banco de trás do Monza do pai, empurrando o irmão com seus tênis, e vendo as luzes dos postes passarem enquanto eles faziam o caminho de volta para o bairro. Ele gostaria de colocar aquela sensação em um quadro e pendurar na sala de casa.
Leo estava sem vontade de ouvir música, mas ouvir os próprios pensamentos era pior, então ligou sua caixa de som enquanto abria o trailer, uma hora mais cedo do que o normal, separava os ingredientes, abria os pães e montava as mesas e cadeiras. Os primeiros pedidos não demoraram muito para chegar, e era bom se ocupar em lidar com a chapa, atender os clientes, jogar um pouco de conversa fora, ignorar o sentimento de pânico e frustração, sabe, outro dia normal de trabalho.
Ele gostaria de ser uma pessoa melhor. Tinha essa vontade que o acompanhava a vida toda de ser mais do que era. Ele poderia ser um filho melhor para Regina, poderia ser um namorado mais compreensível para Kaio, poderia ser um amigo mais presente. Meu Deus, ele poderia até ser um irmão melhor para Pietro e um cunhado legal para Kamyla. Ele amava aquelas pessoas, queria que elas tivessem o melhor dele. A maior parte do tempo, no entanto, Leo estava lutando apenas para tentar ser ele mesmo. Precisava conciliar quem ele queria ser com quem ele era e com quem os outros precisavam que ele fosse. Era difícil para todo mundo, ou só para ele?
A vida tinha que ser mais do que aquilo.
Foi por volta das oito da noite que Maurício apareceu. O movimento de quarta estava mais devagar até que o normal, e Leo estava sozinho com seus fantasmas, quando viu a figura familiar de Maurício se aproximando do trailer. Ele carregava uma sacolinha de farmácia com um desodorante.
— Tem alguma coisa pra comer nessa espelunca aqui? — Ele perguntou, sorrindo, quando parou em frente ao trailer. — Olha que eu só como salsicha importada da Alemanha, hein?
— Senhor, o senhor vai me desculpar, mas eu já te vi juntar um bolinho de arroz do chão do RU e continuar comendo.
Eles riram e Leo estava aliviado de ver uma pessoa amiga. Mais meia hora e era capaz de ele começar a enlouquecer. Ele fez um pancho para Maurício e outro para ele mesmo e os dois sentaram de frente ao trailer, dividindo uma latinha de guaraná. Leo lembrou que aquela era a mesa favorita de Kaio (tanto que ele havia gravado um K + L na madeira com a ponta de um canivete da Hello Kitty) e se sentiu culpado.
— Tu tá com uma cara… — disse Maurício. — O que aconteceu?
Leo fez um gesto de que não queria falar sobre aquilo e tomou um gole da latinha.
— O que tu tá fazendo no centro uma hora dessas?
Maurício ergueu a sacola que trazia com o desodorante solitário.
— Deu um bate boca lá na pensão. Na verdade, bom, eu e o Carlinhos batemos boca porque eu usei o desodorante dele todo. Ai eu precisava dar uma volta mesmo e vim comprar o maldito desodorante. Acho que eu devia levar um pancho pra ele também né?
Leo concordou com a cabeça. Naquele momento se passavam pensamentos egoístas na cabeça dele. Carlinhos morava com Maurício na pensão e Kaio dividia o apartamento com Lívia. Será que ao tentar consertar as coisas, Leo acabou criando outra armadilha para si mesmo? Ele não precisava de mais motivos para se sentir distante dos outros.
— Leva sim, fica por conta da casa.
— Foda que provavelmente eu vou usar esse aqui também e aí o ciclo se repete. Mas tudo bem, a gente sempre pode tentar de novo — diz Maurício, e Leo não responde. — Leo… o que foi? Tá preocupado com o Kaio? Eu tenho quase certeza que a Lívia não vai matar ele de tanto fazer trabalho doméstico.
Leo apoiou os cotovelos na mesa, escondendo o rosto entre as mãos. Ele gostaria de se encolher ali mesmo e ir dormir até o dia seguinte.
— Maurício, eu só não… não to bem, ok, deixa isso pra lá, pelo amor de deus.
Ele apenas acenou, e os dois ficaram em silêncio por um tempo enquanto Maurício terminava de comer. Eventualmente Leo levantou e voltou para o trailer para fazer o pancho de Carlinhos. A vapor e com adicional de bacon. Com dois sachês de maionese.
— Diz pra ele que Papai Noel mandou presente adiantado — disse enquanto alcançava a sacola para Maurício.
Maurício se levantou para ir embora quando Leo deixou o trailer para recolher a latinha de guaraná e seu pancho que ficou pela metade. Por uns segundos, Leo sentiu vergonha. Não queria ter tratado seu amigo daquele jeito. Ele não acertava uma.
— Ei. — Maurício deu um abraço em Leo, meio desajeitado, considerando que ele estava carregando uma sacola com pancho e desodorante. — Vai ficar tudo bem.
Leo respirou aliviado. Maurício deu uma última olhada nele, e Leo achou que devia dizer alguma coisa, mas naquele momento um cliente estava chegando, e ele não teve tempo.
Comments (0)
See all