A mãe de Kaio estava sentada no enorme sofá bege em U quando ele passou pela porta da frente. Como de costume, distraía-se com alguma coisa no celular, provavelmente fazendo algum post para o perfil do seu estúdio de pilates no Instagram. Ao ouvir a porta batendo, tirou os olhos da tela e encarou Kaio, que tinha sujeira na roupa e no rosto. Não cansou muito os olhos na imagem do filho e voltou para o que fazia. Obviamente, Kaio notou.
— Nada? — Kaio perguntou.
— Quê? — ela perguntou sem levantar o rosto.
— Não vai falar nada? — indagou — Eu chego assim em casa e tu não diz nada?
Tempos depois, ele ia tentar várias vezes explicar porque justamente aquela vez o deixou tão indignado. Não era a primeira vez que ele chegava em casa em um estado questionável, e não era a primeira vez que a mãe o ignorava. Mas foi a primeira vez que ele reagiu.
— Se tu quiser me falar o que aconteceu, fique a vontade — disse — Não vou me meter no que tu não quiser me contar.
— Ah, sim, claro que o motivo de tu nunca se interessar em nada do que acontece comigo é a minha liberdade — disse de forma ríspida.
— A maioria dos filhos das minhas amigas implorariam por uma mãe que não se mete na vida deles.
Kaio não estava nem aí para os filhos das amigas dela, o que faziam, onde estudavam ou o que pensavam. Mas, se ele sentia alguma coisa, era uma pontada de inveja, porque parecia que eles eram, aliás, que todo mundo era, mais importante que Kaio. Por muito tempo ele realmente acreditou que aquilo era verdade e estava exausto disso.
— E é isso que te importa? Os filhos das tuas amigas? E foda-se eu, claro.
Ela largou o telefone sobre o sofá, mas Kaio percebeu que ela não se deu ao trabalho de bloquear a tela ou de se levantar, apenas apoiou as mãos sobre as pernas e ergueu a cabeça para ele. Kaio queria fazer alguma coisa, gritar, atirar um vaso na parede, se encostar atrás da porta e escorregar lentamente pro chão como protagonista de novela, mas ele parecia incapaz de mexer, como se de alguma forma ele soubesse que uma vez que começasse a sair dali, não pararia mais.
— Tu não fale assim comigo, Kaio!
— Assim? Pra ti o melhor seria se eu não falasse nada de jeito nenhum, né? — respondeu — Aí ficaria mais fácil pra ti fingir que eu não existo.
— Que que deu em ti?
— Agora tu quer saber? — Kaio fez um gesto com as mãos, exasperado. — Cansei de não existir.
Kaio saiu andando em direção ao próprio quarto, não parou para ouvir se ela respondeu alguma coisa, provavelmente não disse nada. Se sentou na cama, a cabeça muito cheia chegava a chacoalhar, não conseguia se concentrar em nenhum pensamento. Por que tinha feito isso? Por que tinha estourado logo agora? Já não tinha passado anos assim? Mas não se arrependia, não aguentava mais, não queria nada daquilo. Tanto tempo buscando uma atenção que nunca teve, um carinho que nunca recebeu e que, quando achava que receberia, era só mais dinheiro e presentes quando ela se sentia culpada. E ele sabia, sem dúvida alguma, que aquela discussão não mudaria nada, o que ele fazia ou deixava de fazer era o mesmo que se um desconhecido fizesse ou não. Não podia mais se agarrar a essa esperança de que em algum momento as coisas melhorariam.
Abriu o guarda-roupa e tirou de lá a mala de viagem. Começou a encher com tudo que ele considerava importante, gostaria de poder enfiar o quarto todo naquela mala e levar consigo para onde fosse. Sentiu quase uma dor física de ter que selecionar, mas se prometeu que voltaria para buscar o resto, a mãe nem notaria que ele foi embora, com certeza não se daria o trabalho de jogar suas coisas fora.
Antes de ir, Kaio ficou algum tempo sentado em sua cama. Pode ter sido dez minutos ou uma hora, ele perdeu a noção da passagem do tempo por um instante, só sabia que precisava ficar um pouco no silêncio daquele quarto que havia testemunhado os últimos anos da sua vida. Suas mãos tremiam, o cheiro de terra úmida em suas roupas e em sua pele o deixava enjoado. Ele tinha a sensação de que não ia mais falar com sua mãe. Foi o toque da notificação de Leo perguntando se estava tudo bem que o fez sair do transe.
Tirou o carregador do celular da tomada e saiu do quarto. Ela não estava mais na sala, e a casa parecia deserta. Ele não se demorou olhando os móveis. E entrou no carro que o esperava.
***
Sentado em sua cama, Leo esperava Kaio sair do banho, dividindo o espaço com a mala de viagem de Kaio, aberta ao seu lado. Tentava se distrair da presença da mala, mas ela parecia ocupar o quarto todo. Ele mesmo ainda tinha os cabelos molhados da água do chuveiro, e estava lentamente tentando processar o que tinha acontecido nos últimos minutos. Kaio tinha chegado tão assustado que Leo apenas ouviu o que ele tinha dito, deu um abraço nele e mandou ele fosse tomar banho. Agora, aquela mala que ocupava metade da cama praticamente gritava com ele.
Kaio voltou com a toalha nas mãos e vestindo roupas limpas, sem olhar direito para Leo. Ele ficou ali, parado, sem saber bem o que fazer a seguir, e Leo levantou, pegou a toalha da mão dele e a apoiou sobre a guarda da cadeira, pensando que podia pendurar depois.
— O que tu pretende fazer agora? — Leo perguntou.
— Não cheguei a pensar nisso, só queria sair de lá — admitiu. — Ficar aqui, talvez?
— Ficar aqui no sentido de morar aqui?
Leo estava tentando entender o que Kaio estava propondo enquanto ainda tentava entender o que ele tinha feito. Ele não queria ser insensível e nem dizer que achava que Kaio tinha cometido um erro, porque isso não era verdade, mas também achava que ele não tinha noção do que estava deixando para trás em termos materiais.
— Sim? Não tenho parentes em Bagé e nem amigos próximos.
— Não sei se minha mãe vai gostar dessa ideia — Leo passou as mãos pelos cabelos. Agitado, ele dava passadas pelo quarto. — Tu teria dinheiro pra ajudar a pagar as contas? Aliás, tu tem dinheiro pra pagar as tuas próprias contas?
— Eu tenho um dinheiro que eu juntei na conta, uns 10 mil.
Kaio ainda estava parado no meio do quarto e, cansado daquilo, caminhou até a cama, fechou a tampa da mala e sentou na beirada. Leo pensou sobre aquilo.
— Ok, é um bom dinheiro, mas e depois que acabar?
— Não sei, eu vejo isso depois.
Leo se sentou ao lado de Kaio, virando o corpo em sua direção. Eles se apoiaram um no outro, e Leo descansou a cabeça no ombro de Kaio. Eles se contrabalanceavam, sem se mexer muito para não derrubar o outro. Ele não sabia o que dizer. Estava orgulhoso de Kaio por ter tomado aquela decisão por ele mesmo, mas a verdade é que Kaio poderia ter feito aquilo com muito mais calma e com muito mais certeza, porque ele tinha essa possibilidade. Ele não precisava sair com uma mão na frente da outra atrás, mas esse foi o modo como fez as coisas. Leo não sabia como ajudá-lo.
— Eu não tenho como te bancar, Kaio — Leo admitiu, sussurrando. — Mal consigo pagar minhas coisas.
— Não precisa me bancar, eu dou um jeito — Kaio tinha o tom de voz suave, mas Leo sentiu quando ele se afastou, inclinando seu corpo para frente. — Só preciso ver onde eu vou ficar.
— É, só não sei se vai dar pra ser aqui — Leo esticou a coluna e olhou para figura de Kaio, ainda de costas para ele, encurvado. — Por uns dias até dá, mas morar aqui é foda. Fora a questão do dinheiro, a mãe não gostava nem que a Kamyla ficasse muito tempo aqui e ela AMA a Kamyla.
O peso do que Leo estava dizendo e, mais ainda, do que não estava dizendo, caiu sobre eles. Kaio não era tão amado quanto Kamyla, e ele nunca seria tão amado quanto ela. Até aquele momento ele não havia parado para pensar nas mecânicas daquilo. Ele percebeu que a indecisão de Leo, muito mais do que pelo dinheiro, era também para não descobrir até onde ia a boa vontade da mãe. Ele apoiou o rosto entre as mãos e tentou não se sentir rejeitado pela segunda vez, porque sabia que não era justo, mas nada parecia justo naquele momento.
— Leo, eu não sei, tá bom? Eu não… eu não tenho outro lugar pra ir. Se eu não puder ficar aqui, a única opção é voltar, mas eu não quero voltar.
— Calma, não tô te dizendo pra voltar — Leo colocou suavemente uma mão no ombro de Kaio. — O que eu tô querendo dizer é que foi uma decisão muito abrupta. A gente poderia ter pensado nisso juntos antes.
— Eu sei, eu sei — Kaio finalmente se virou, apoiando sua mão na mão de Leo sobre seu ombro. — Mas o que eu faço, então?
Kaio podia admitir que devia ter falado com Leo antes. Quer dizer, era uma situação nova para eles. Talvez se Leo tivesse chegado na casa dele com uma mala enorme dizendo que ia ficar, Kaio também teria se assustado um pouco.
— Primeiro, seria bom não tomar mais decisões inconsequentes, mas eu sei que é difícil — Leo sorriu, porque sabia que precisava tranquilizar Kaio. — Segundo, vamos comer alguma coisinha que eu tô morrendo de fome. Aí, depois a gente para pra ver como se resolve isso.
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