Uma formiga passou bem na frente de Kaio e Leo, carregando um pedacinho de folha, e os dois deram tanta risada que Kaio achou que fosse quebrar uma costela. Kaio nunca tinha se sentindo tão bobo, tão burro, tão pateta. A formiguinha simplesmente caminhando tranquila a centímetros dos tênis deles na grama baixa do pátio da casa de Leo. E ele não conseguia parar de rir. A formiga lá embaixo, sem saber porque estavam rindo dela, que estava só fazendo seu trabalho coletando comida para o inverno, voltou deprimida e insegura para o formigueiro. Bem que sua avó contava a história da cigarra e da formiga. Quando chegasse o inverno e eles pedissem comida, ela não ia dar.
Naquele começo de tarde, Kaio chegou na casa de Leo e encontrou brigadeiros suspeitíssimos sob a mesa de cabeceira. De algum jeito, ele apenas soube do que se tratava. Ele não perguntou de quem ele tinha comprado nem porque, quando Leo perguntou “bora?” ele apenas disse “bora”. Agora estavam os dois rindo da coitada da formiga, eternamente traumatizada (embora essa eternidade seja apenas alguns meses).
Leo não achou que Kaio fosse ficar tão idiota, mas devia ter imaginado.
— Deve ser muito triste ser uma formiga-rainha ou uma abelha rainha né… — disse Kaio, subitamente sério.
— Ué, por quê?
— Porque elas vivem bem mais que as outras… então elas veem várias gerações nascerem e morrerem…
Leo se virou para Kaio, apertando os olhos para enxergá-lo melhor no sol da tarde. Fazia um calor horrível naquele começo de dezembro. Ele não fazia ideia do porquê estavam sentados no pátio.
— Meu Deus, Kaio.
— Não, não, deixa eu terminar meu raciocínio… — Kaio colocou um dedo sobre os lábios de Leo, que obedeceu imediatamente. — A pior parte é que elas são mães de todas essas gerações, elas só tão ali vivas pra reproduzir e nem podem sair do formigueiro ou da colmeia pra ver o mundo.
— Isso aí tá biologicamente correto?
— Sei lá, não faço ideia.
Leo estendeu a mão e encostou o dedo na testa de Kaio.
— Passa cada coisa nessa tua cabecinha.
Kaio não soube dizer ao certo quanto tempo eles ficaram no pátio. Mas em algum momento ele decidiu que não queria mais ficar parado.
— Mas a gente vai onde? — disse Leo, enquanto Kaio puxava ele pela mão.
— Eu quero conhecer o bairro! — declarou Kaio, procurando na sala as chaves da porta da frente e sua carteira, porque segurança em primeiro lugar aparentemente.
— Mas quer ver o que, minha paixão?
Kaio parou por um momento, porque nunca havia escutado Leo dizer “minha paixão” antes, muito menos naquele tom, mas em seguida já estava puxando ele para o portão.
Não é como se do lado de fora tivesse muito o que ver, apenas as casas que Leo cresceu vendo, ruas de chão batido, cachorros dormindo à sombra dos cinamomos e vizinhas que Leo não queria que vissem ele chapado. Porém, a mistura daquele brigadeiro duvidoso com a bobeira natural que ele tinha quando estava com Kaio não deixavam com que ele se importasse. O máximo que conseguiu pensar foi em colocar um casaco com capuz antes de sair. Claro que, naquele calorão, ver Leo de casaco e capuz seria muito mais estranho, mas não é como se ele fosse raciocinar naquele momento.
Leo caminhou com ele pela rua das escolas, mostrou paradas de ônibus e contou histórias de moradores que ele conhecia. Mostrou a Kaio como dava para ver a Unipampa de longe se olhasse da esquina da escolinha e explicou como odiava morar tão perto da universidade e mesmo assim demorar tanto pra chegar lá. Eles deram risadas imaginando Leo atravessando uns cinco quilômetros de mato todos os dias para chegar na aula. Kaio tentou até puxar de novo o assunto das formigas, mas Leo impediu.
Eles ouviram um som estridente que só podia ser um ganso gritando. Na verdade, Leo ouviu, Kaio não estava prestando atenção. Ele lembrou que um vizinho da rua de cima da dele tinha gansos e pensou, por que não? Se juntar as formigas, os cachorros de rua e os gatos nas janelas, eles podiam dizer que foram ao zoológico. Ou, o mais perto de um zoológico que Bagé poderia ter. Então levou Kaio até lá.
Os gansos moravam no pátio da casa, um quadradinho de terra escura menor ainda que o da casa de Leo. Dava pra ver, ao fundo, um galinheiro muito improvisado, mais uma gambiarra de zinco e arame do que um galinheiro de verdade, claramente pequeno pros quatro gansos. Naquela tarde, por um milagre, os quatro estavam dentro do pátio, quando normalmente ficavam andando na frente e em volta da casa, porque o portãozinho baixo estava sempre aberto.
Kaio ficou fascinado com aquelas criaturinhas com pouco mais de um metro e um monte de penugem branca.
— Tititi — ele chamou os gansos, como se fossem cachorrinhos, curvando o corpo na direção dos bichos.
Ele claramente nunca tinha visto um ganso antes.
— Kaio… — Leo começou, dando um passo na direção dele, que deu passo na direção dos gansos. — Não é uma boa ideia chamar eles. A gente tá com sorte que tão todos no pátio.
Mas esse não foi o caso por muito tempo. Um dos gansos se aproximou de Kaio, esticando o pescoço por cima da grade e emitindo um som que era quase fofo.
— São fofinhos. A minha mãe tinha um travesseiro de pena de ganso que ela importou — disse Kaio, jogando a cabeça de um lado para o outro para analisar o ganso de outros ângulos.
Kaio esticou a mão para fazer carinho no ganso, coisa que Leo achou que não era muito segura, mas o ganso parecia mesmo inofensivo e Kaio não ia querer ouvir o aviso. Esse foi o erro de Leo, confiar no Judas das aves, porque quando Kaio estava quase tocando a mão na cabeça do bicho, ele deu um grito, abriu o bico e tentou morder os dedos dele. Os três, Kaio, Leo e o ganso, deram um gritinho, e Leo puxou o braço de Kaio de leve enquanto ele se afastava da grade.
Leo começou a falar alguma coisa sobre como ele tinha avisado, mas os outros três gansos começaram a gritar e ele se virou para ver que enquanto eles estavam ocupados com o ganso que queria jantar os dedos de Kaio, os outros três tinham saído calmamente por um buraco na parte lateral da grade que, imagine só, tinha a altura de um ganso.
Acontece que era tudo um plano maligno friamente calculado pelos gansos e encomendado pela formiga deprimida. A rede de conexões entre os animais da cidade era muito bem articulada. Ao mesmo tempo que a equipe de gansos avançou, Leo puxou Kaio pelo braço, que ainda não tinha processado muito bem nada daquilo, e saiu correndo. Apesar do pavor causado por aquelas criaturas ferozes, Leo corria sem problemas, ainda que um pouco preocupado com seus pulmões asmáticos, ao contrário de Kaio, que poderia falecer de cansaço a qualquer momento. Estava começando a escurecer e o lusco-fusco tornava difícil enxergar, como se alguém tivesse baixado um filtro azulado sobre o mundo. Que filme estranho eles estavam protagonizando.
Leo, que tinha um leve grau de astigmatismo não tratado, estava achando tudo lindo, as luzes dos postes estouradas na sua visão enquanto corria agarrando a mão de Kaio.
A adrenalina da fuga não deixou que eles notassem que os gansos já tinham desistido há pelo menos uns 50 metros. Na tentativa de olhar para trás, Kaio se distraiu e logo sentiu algo um tanto escorregadio embaixo de seus pés, era barro, resquício da chuva do dia anterior. Leo até tentou segurar, mas foi em vão, Kaio foi direto de encontro ao chão. Os gansos, lá longe, até pensaram em aproveitar a situação, mas decidiram que não valia a pena, o trabalho já estava feito. Leo até deu uma risadinha porque, bom, era engraçado, mas coitado, Kaio estava todo atirado parecendo um boneco de posto murcho e ele fez o possível para ajudar ele a se levantar.
***
Eles devem ter ficado muito tempo na rua, porque quando Kaio conseguiu pegar seu celular de novo, estava quase sem bateria. Isso, claro, depois que voltaram para casa e acabaram com as bolachas de maisena do armário. Procurou o carregador na mochila, jogou tudo que tinha lá dentro no sofá, quase desesperado, até a ficha cair e a lembrança voltar. Kaio tinha deixado o carregador pendurado na tomada ao lado de sua cama, em casa. Leo não tinha nenhum carregador de iPhone pra emprestar.
— Tá maluco? — disse Leo, quando Kaio pegou as chaves do carro e começou a se preparar para sair.
— Sim? — respondeu Kaio. — Eu vou e volto, não vai levar meia hora.
Leo sabia que Kaio não tinha condições de dirigir. Não era só que ele estava todo sujo e exausto da perseguição, os olhos dele ainda estavam meio vermelhos, a pupila dilatada demais. Ele já era o terror do Detran em um dia normal, naquelas circunstâncias era ainda mais improvável que ele fosse chegar bem em casa.
— Toma um banho antes, pelo menos — Leo tentou. — Não tem como tu sair daqui assim.
Leo sentiu a hesitação em Kaio, que olhava para a porta e de volta para Leo, ainda segurando firme as chaves em uma mão. Bichinho teimoso, Leo sabia que ele não ia querer dar o braço a torcer.
— Eu tenho que ir antes do Roger chegar.
Porque, se Roger já estivesse em casa, ele ia ficar parado na porta do quarto de Kaio fazendo perguntas. Ele ia querer saber se Kaio ia ficar pra jantar e se não, aonde ele ia. Não porque se importasse, mas porque era curioso e intrometido. Ele ia perguntar quanto deu o jogo de algum time de futebol que, óbvio, Kaio nunca nem ouviu falar. Ou, pior ainda, ele ia contar alguma coisa do trabalho dele. E Kaio ia passar o resto da noite de mau humor. Será que Leo entendia isso sem que Kaio precisasse colocar em detalhes todas as formas que Roger o deixava desconfortável?
Leo não sabia de toda a história, Kaio largava informações sobre a família de forma aleatória e esparsa, mas sabia que eles não eram nenhuma família de comercial de margarina. E ele também sabia que a força de vontade de Kaio não ia vacilar. Ele se aproximou de Kaio e segurou gentilmente a mão que agarrava as chaves.
— Não vai dirigindo então. A gente chama um carro, qualquer coisa assim. — Leo pediu, sentindo que essa era uma possibilidade que Kaio ia considerar. — Eu posso ir junto.
— Não. Quer dizer, sim, tudo bem. Eu não vou dirigindo. Mas não é hora ainda de tu conhecer minha mãe, eu acho.
Kaio não confiava na mãe para se comportar direito. Leo se deu por satisfeito em saber que Kaio estaria seguro e torceu pro motorista não se importar de sujar os tapetes e os bancos do carro com terra.
Eles ficaram parados em frente a casa esperando o motorista que viria buscar Kaio, atentos ao número da placa porque não sabiam reconhecer um Kwid. Leo observou de relance o rosto de Kaio, que havia puxado o capuz da jaqueta sobre a cabeça. Aquilo fez com que ele se lembrasse daquela noite, meses antes, quando tudo dentro dele ficou diferente. Pela primeira vez ele se permitiu pensar sobre o medo que sentiu. Medo de que Kaio estivesse seriamente machucado, medo de que alguma coisa acontecesse com ele se fosse para casa sozinho. E a certeza absoluta de que precisava ficar com ele. Naquele momento, ele soube que precisava ter coragem de encarar o medo. Quando o carro chegou e Kaio apertou a mão de Leo antes de entrar, ele sentiu medo de novo. Mas assistiu Kaio entrar no carro, sorriu para ele e deixou que fosse, recebeu a mensagem dele avisando que tinha chegado, soube que ele devia estar bem
Mas o medo não passou.
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