***
Um galão de 3kg de ketchup, um galão de 3kg de mostarda, um pote de 3kg de maionese e várias bisnagas vazias estavam em cima da mesa da cozinha da casa de Leo. Da janela da cozinha dava pra ver o tímido sol do fim da tarde refletindo na grama do pátio, ainda molhada da chuva que caiu mais cedo. Uma música tocava da caixa de som de Leo em cima da geladeira e os dois estavam sentados junto à mesa, enchendo as bisnagas como dona Regina tinha pedido. Kaio só estava enchendo as de ketchup, por uma questão de princípios.
— Recebi e-mail avisando que consegui a bolsa, esqueci de te contar — Leo informou enquanto lambia um pouco de mostarda que tinha caído no seu dedo.
Leo tinha se esforçado na carta de apresentação do processo seletivo que estava concorrendo na faculdade. Ele precisava do dinheiro da bolsa mais que todos seus concorrentes, provavelmente, mesmo que não fosse muito. E tinha valido a pena. Ele nem estava certo se gostaria do projeto, mas já fazia o curso há algum tempo e precisava decidir o que iria fazer com ele. Ele escolheu aquele curso porque era bem diferente do técnico em enfermagem que ele fazia antes e porque sua mãe queria que ele estudasse. Suas notas eram regulares e ele gostava das aulas, pelo menos da maioria delas. Mas também sentia que ainda não tinha se encontrado ali, e esperava que a bolsa fosse mudar isso.
— Parabéns! — Respondeu Kaio dividido entre uma expressão de alegria pela bolsa e uma expressão de nojo por conta da mostarda. — Vai dar pra comprar tua cama agora?
— Vai sim, mas vou ter que fazer parcelado no cartão. — Leo disse, espirrando mostarda dentro de uma das bisnagas. — Quero comprar um colchão melhorzinho, aí o dinheiro que eu consegui vestido de Homem-Aranha e um mês de bolsa não dá.
— O dinheiro que tu conseguiu quase me matando… — Resmungou.
— Isso aí são águas passadas, o importante é que deu bom.
Eles trabalharam em silêncio por um momento, ouvindo apenas a música e os movimentos um do outro. Leo de vez em quando batia seu joelho contra o joelho de Kaio ou se inclinava para dar um beijinho em seu rosto, na bochecha, no nariz, no cantinho da boca, na têmpora, no pescoço, bem abaixo da orelha, em todos os lugares que podia alcançar de onde estava sentado. Dava pra dizer que eles estavam se demorando para encher aquelas bisnagas.
— O que é aquilo? — perguntou Kaio depois de um tempo, apontando para uma caixa de onde saiam retalhos coloridos de tecido.
— Retalhos de tecido — respondeu Leo com um sorrisinho.
— Isso eu sei, né. — Kaio revirou os olhos. — O que aqueles retalhos de tecido tão fazendo ali?
Leo voltou os olhos para a caixa. Ele pensou nos últimos dias, vendo sua mãe pendurada no celular, uma hora falando com Pietro sobre os preparativos para o casamento, depois conversando com Kamyla sobre o esquema de cores, as flores, qual perfume ela iria usar, como funcionaria a logística do cabelo e maquiagem. Ele estava completamente alheio a todo aquele processo. Não lembrava a última vez que tinha conversado com Pietro.
— A mãe tá vendo tecidos pra mandar fazer um vestido pro casamento do meu irmão. Tudo bancado pela família da Kamyla.
— Teu irmão vai casar?
Leo demorou um pouco para responder, alongando o processo de encher a bisnaga, bater sobre a mesa para tirar as bolhas de ar, completar o espaço que sobrou com mais mostarda.
— Vai. Na metade do ano que vem, eu acho, não sei, mudou a data.
Kaio começou a pensar em uma pergunta, mas então percebeu a expressão séria no rosto de Leo, o modo como ele pareceu ter se fechado e como evitava o olhar de Kaio. Era uma coisa que ele nunca tinha visto antes, aquela sombra nos olhos de Leo que sinalizava algo que eles nunca tinham conversado sobre. Kaio pensou que não sabia muito sobre a família de Leo e que sempre que esse assunto vinha à tona, ele logo tratava de falar sobre qualquer outra coisa.
— Tem alguma coisa com teu irmão? — Kaio perguntou por fim.
— Como assim alguma coisa?
— Sei lá, um rolo, uma história, uma briga.
— Ah. Não queria falar disso agora.
Por mais que ele estivesse morrendo de vontade de fazer mais perguntas, Kaio resolveu ficar quieto. O silêncio ficou pesando entre eles por um tempo, mas logo voltaram a conversar sobre qualquer bobagem. De alguma forma o assunto foi parar em festas e Leo começou a contar da vez que, quando ele estava no ensino médio, mentiu para Regina que ia dormir na casa de um amigo para terminar um seminário e foi com mais vários colegas para uma festa em Candiota. Acordou no domingo de tarde na casa de alguém que não conhecia.
— E aí? Que que deu? Tua mãe descobriu depois? Não falou nada? — Kaio perguntou bastante curioso.
— Ah, ela ficou um pouco puta da cara pela mentira, mas depois deu risada — Leo respondeu — O Pietro fez coisa bem pior e ela não disse nada.
— Acho que eu teria morrido de nervoso antes de fazer qualquer coisa assim com medo da reação da minha mãe — Kaio disse, distraidamente. — Se bem que ela nem teria falado nada, ela nunca fala nada.
— Faz bem um pouquinho de risco na vida, uma adrenalina. A gente só vive uma vez.
Leo sorria, como se estivesse se lembrando. Kaio sentiu de novo aquela sensação estranha das coisas que ele não sabia sobre Leo, acompanhada das coisas que ele não sabia sobre o mundo.
— Sei lá, nunca fui de fazer muita coisa — Kaio admitiu — Não sei se por falta de coragem ou de companhia.
Leo fechou a bisnaga que estava enchendo e voltou-se para Kaio, apoiando a cabeça na curva do ombro dele e passando um braço por sua cintura.
— O que tu teria feito? — disse Leo baixinho, e deixou um beijinho bem onde o pescoço de Kaio encontra o ombro. Kaio se arrepiou todo, mas nem se mexeu.
— Não sei bem, acho que não teria ido pra festas assim, não é muito a minha. — Kaio deu de ombros. — Mas eu teria, sei lá, pintado o cabelo, usado alguma coisa?
Kaio levantou a mão livre e passou a mão pelo próprio cabelo e depois a deixou cair sobre os cabelos de Leo, fazendo carinho nos fios castanhos. Ele gostava quando estavam assim, meio enroscados e conversando. Gostava quando Leo fazia perguntas e dava beijos nele, gostava que Leo o achasse interessante.
— Pintado o cabelo? Tu tem um piercing, por que o medo de pintar o cabelo?
— Porque é mais visível, o piercing eu consigo esconder com o cabelo.
— Mais visível aos olhos da tua mãe?
Kaio demorou um pouco para responder porque estava pensando agora em todas as coisas que deixou de fazer e que, agora ele percebia, tinha afinal a oportunidade de começar a fazer.
— É, demorou pra eu aceitar que nada meu é visível aos olhos dela.
***
Leo estava apavorado com o preço das coisas num geral. Então quando chegou o dia de comprar finalmente a cama, ele achou que precisava de um grupo de apoio moral. Infelizmente ele não conseguiu encontrar ninguém, então chamou seus amigos e Kaio mesmo.
— Olha que lindo esse beliche — disse Carlinhos, apontando para um beliche num tom escuro, parecido com aquele que eles destruíram. — Não quer comprar um, Leo?
— Nunca mais. Eu nunca gostei de beliches. Tenho até trauma.
— Por causa daquilo lá? — Lívia perguntou dando uma risadinha.
Eles estavam caminhando pelas camas e colchões da loja, de vez em quando recebendo olhares curiosos dos vendedores que tinham ignorado. Leo só queria achar uma cama bonita e barata e um colchão bom e que não acabasse ainda mais com as costas dele.
— Bah, nem me lembra…
— Aquilo o quê? — Kaio perguntou curioso.
— O dia que eu conheci a Kamila. Já faz quase cinco anos isso. Eu cheguei em casa tarde, tava um frio do caralho, e o meu irmão tava tapado na parte de cima do beliche. Ele tava dormindo, ou pelo menos eu achei que ele tava dormindo e aí eu fiz silêncio, né, fui trocando de roupa, não acendi luz. Aí, do nada, eu começo a ouvir uns gemidos…
Leo parou um pouco de contar a história para dar risada com os outros. Kaio não conhecia nem Kamila e nem Pietro, mas conseguia imaginar Leo, com aquela carinha de adolescente que Kaio tinha visto nas fotos antigas, passando mais um constrangimento por causa daquele beliche.
— Daí eu comecei a gritar lalalalalala pra ver se eles se ligavam que eu tava ali e aí eles começaram a gritar também pelo susto e aí minha mãe acordou e foi assim que o Pietro nos apresentou a Kamila com a coitada só de sutiã e shorts.
— Que lindo isso, nunca canso dessa história, sempre me emociono. — disse Carlinhos limpando lágrimas invisíveis.
Eles ficaram mais um tempo olhando os móveis até que Leo achou o que procurava. Uma cama, uma cama mesmo, com toda a estrutura e a cabeceira junto (e não um box e uma cabeceira separada), da altura que ele queria e um colchão que cabia certinho. E se levasse os dois ainda tinha desconto. Era um pouco mais caro do que ele tinha imaginado gastar, mas sabia que valia a pena. Ele mal esperava para deitar com Kaio na cama nova, os dois bem espalhados nos cobertores, com espaço suficiente para fazer o que eles quisessem, e estava disposto a trabalhar o quanto fosse preciso por aquilo. Ele estava pronto para cometer aquela loucura financeira.
— É essa, galera — ele declarou e apertou a mão de Kaio que segurava a sua.
— Não, não, não, pera aí — Maurício disse, antes que Leo chamasse um vendedor. — A gente tem que testar se é boa mesmo.
Maurício e Carlinhos se atiraram em cima da cama e começaram a rolar, testando as molas do colchão.
— Nossa, é boa pra quicar — Maurício comentou, de joelhos sobre a cama.
— Não, não. — Leo começou a protestar. — Desce, Maurício. Chega, Carlos Bernardo. Se alguém vai fazer esse tipo de coisa na minha cama, vai ser eu.
Lívia começou a rir desesperadamente tapando a boca com as mãos. Ela ficava tão vermelha quanto um morango enquanto ria. Kaio também ficou vermelho, mas por outros motivos.
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