Kaio não parava de reclamar. Já fazia dez minutos que ele tinha começado a praguejar a existência da vizinha que sempre o obrigava a parar para ouvir sobre todos os acontecimentos banais do bairro toda vez que Kaio colocava os pés para fora de casa, não importava o quanto ele tentasse fugir ou falasse que não dava a mínima, ela não desistia. Intercalava esse assunto com relatos irritados sobre a convivência com Roger, que aparentemente fazia os piores takes possíveis sobre cultura pop quando tentava puxar papo com Kaio.
Leo não achava aquilo ruim, inclusive queria que Kaio reclamasse mais ainda. Até mesmo porque, por mais que ele estivesse ouvindo tudo que Kaio dizia, ele estava prestando atenção mesmo era em como ele ficava bonito naquela jaqueta preta. A jaqueta tinha vários rasgos, bottons, pins e patches, todos faziam muito sentido com quem era Kaio, como se contassem quem ele era. Perto dos botões de cima, um pin com a bandeira não binária e a borda dourada se destacava, ele colocava ali de propósito para que chamasse a atenção, Leo sabia disso.
Eles estavam dentro do carro de Kaio, estacionados em frente a galeria 7, esperando os amigos de Leo. Por um milagre, nem Kaio, nem Leo tinham se atrasado naquela noite, então enquanto Kaio reclamava que Roger ficava perguntando pra ele quem tinha ganhado o último Masterchef, Leo ficava brincando de ligar e desligar a luzinha do teto do carro (até Kaio mandar ele parar). Leo estava animado para ver os amigos. Queria muito que conhecessem Kaio e sabia que eles se dariam bem. Ele não era o estudante mais dedicado nem o mais envolvido, mas tinha um carinho especial pela Unipampa porque ela tinha dado a ele seus amigos. Queria dividir mais isso com Kaio.
Kaio parou de reclamar quando viu três pessoas subindo a rua. Um trio composto por uma menina branca, ruiva, baixinha e vestida quase inteiramente de rosa, um rapaz negro bastante alto e um gay branco baixinho. Kaio não sabia como ele sabia que aquele guri calvo e de óculos era gay, mas ele sabia. Suspeitou serem Lívia, Carlinhos e Maurício. Descobriu que estava certo quando o trio se aproximou do carro e bateu na janela ao lado de Leo, que baixou o vidro. Leo tinha avisado que eles vinham e Kaio já tinha visto fotos deles no Instagram várias vezes, mas ainda assim ficou nervoso quando os viu pessoalmente. Já tinham adiado aquele encontro várias vezes e Kaio se perguntou se podia adiar mais uma vez.
— E aí, gays? Vamo? — Lívia sorriu e acenou para Kaio que não acenou de volta porque não conseguiu processar a tempo. — Já tá na hora!
Os cinco tinham combinado de assistir Pantera Negra 2, o que Kaio gostou porque não era um programa em que ele teria que fazer muito além de sentar quietinho em seu lugar e segurar a mão de Leo. E ele tinha gostado do primeiro.
Eles desceram do carro e Leo deu a volta para ficar do lado de Kaio, passando um braço sobre os ombros dele, meio adivinhando que Kaio precisava de um apoio.
— Gente, esse é o Kaio, Kaio esses são a Lívia, o Carlinhos e uma puta — disse Leo, apontando cada um dos amigos.
— Puta é a tua tia, Leo — respondeu a puta, que devia ser Maurício. Mas eles estavam rindo e Kaio riu também, apesar do nervosismo.
Enquanto esperavam na fila, Lívia contou que Leo não conhecia uma das tias, irmã de dona Regina, e, por isso, eles, totalmente racionais que eram, haviam decidido que ela só podia ser puta.
— Na minha família só tem gente do bem — defendeu Leo.
— Ué, e puta não é do bem?
Com certeza, existe no mundo alguma puta maligna planejando a dominação mundial, no entanto, não era possível saber se era o caso da tia de Leo. Eles ficaram em silêncio processando aquela reflexão, até que Carlinhos disse:
— Tu não tem um primo que tá preso?
— Ele desviou dinheiro do chefe dele pra pagar a cirurgia da nossa outra vó, então tá tudo bem.
Kaio ficou morrendo de vontade de perguntar que história era essa, mas ficou quieto. O resto do tempo no cinema foi tranquilo. Sentado na ponta da fileira, de vez em quando Kaio ouvia Leo cochichando alguma coisa com um dos guris, mas, considerando todos os cenários de desastre que ele havia montado na cabeça, que não aconteceram, ele achou que estava tudo bem.
***
Leo era esperto o suficiente para saber que Kaio tinha anos de experiência em fugir dos lugares, então ficou perto dele quase o tempo todo. Depois do cinema, Lívia perguntou se eles queriam ir até a casa dela comer lanche e Carlinhos reclamou que o plano permanência ainda não tinha caído até ela prometer que compraria um xis pra ele.
Ela morava em um prédio que Kaio nunca tinha reparado, perto da Sete de Setembro. Com certeza não estava nos planos de Kaio ir parar no apartamento de alguém que ele não conhecia direito, mas ele estava tentando seu melhor pra ser simpático e os amigos de Leo tinham sido legais com ele até ali. Por mais que ele ainda quisesse fugir, calculando a rota de saída mais rápida do prédio, ele se sentia menos desconfortável do que imaginava.
Lívia tinha um PS5 na sala, que Carlinhos e Leo ligaram assim que ela disse que podia e enquanto eles brigavam com Maurício sobre jogar FIFA ou The Last of Us II, Lívia tentava fazer o pedido e Kaio assistia à gritaria.
Ela tinha um desses apartamentos que as pessoas colocavam fotos no Pinterest para inspiração maximalista. Kaio parou em frente a estante, meio se escondendo ao lado de uma samambaia enorme, observando os porta-retratos, as velas aromáticas, os baralhos de tarot, a enorme bandeira lésbica pendurada acima da estante, os vários livros e uma coleção de Funko Pops que nem Kaio teria tido coragem de gastar tanto dinheiro comprando. Na luz baixa, ela parou ao lado dele com o rosto colado na tela do celular.
— Esse PS5 foi uma das melhores tranqueiras que eu comprei com o cartão do meu pai… — Ela começou a dizer, mas interrompeu a frase para olhar os três que disputavam um controle. — Carlinhos, quer batata frita?
— Sim, com maionese — gritou Carlinhos, derrubando Maurício no tapete felpudo para impedir que ele pegasse o controle das mãos de Leo.
Kaio estava meio fascinado com aquela demonstração de amizade. Ele nunca disputou um controle com ninguém.
— Enfim, — disse Lívia, voltando a falar com Kaio — eu só ligo quando eles vêm.
Ela colocou o celular nas mãos de Kaio pra que ele escolhesse o que queria. Ele ficou meio perdido, sem saber direito o que fazer com aquela guria que mal o conhecia, mas o tratava igual seus outros amigos. Ele selecionou o lanche e devolveu o celular pra ela.
— Vem, vamo ali na cozinha — ela disse, mexendo no celular e gesticulando e falando alguma coisa para Maurício, tudo meio ao mesmo tempo. Kaio só aceitou e a seguiu para a cozinha.
Ela largou o celular sobre a mesa e abriu a geladeira enquanto dizia pra ele ficar a vontade. Kaio ficou admirado com a quantidade de eletrodomésticos cor de rosa presentes naquela cozinha, nenhum deles parecia ser usado com frequência. Ele sentou em uma cadeira encostada à parede. A toalha de mesa tinha estampa de sapinho, as paredes tinham uma cor verde-menta e a porta da geladeira estava quase completamente coberta de ímãs de todos os tipos.
Lívia puxou do fundo da geladeira três latas de cerveja e uma garrafa de vodka pela metade. Mais rápido do que Kaio podia processar, ela pegou três copos no armário e levou para Carlinhos, Leo e Maurício.
— Kaio, tu não bebe cerveja também, né? Toma uma caipirinha comigo?
Meu Deus, será que Kaio tinha tanta cara de nenê que ela simplesmente adivinhou que ele não gostava de cerveja?
— Tomo sim — ele disse.
Enquanto ela espremia limão e enchia um copo grande com açúcar, Kaio começou a pensar que ela só tinha cerveja para quando os amigos vinham. Só tinha um PS5 para quando eles vinham. Leo tinha comentado que o pai dela tinha muito dinheiro. Quando entrou no apartamento, Kaio pensou que ela gastava tudo comprando Funko Pop sem função e quadros pras paredes, mas agora estava percebendo que ela gastava bem mais tentando fazer três homens bobos felizes.
Ela terminou a caipirinha, colocou o copo na mão de Kaio e o puxou de volta para a sala. Em menos de um minuto, ele estava sentado no sofá, sem os tênis, com os pés pra cima e dividindo o copo com ela.
A caipirinha foi uma boa ideia. Ou uma ideia ruim. Ele não tinha certeza, mas, de qualquer forma, quando a vodka bateu, ele ficou bem mais falante, pra compensar um pouco o tanto que Lívia falava.
— Tu realmente gastou quatro mil só pra fazer a alegria da molecada? — Assim que Kaio terminou de falar, percebeu que estava falando igual Leo.
— Aham — Lívia afirmou — Gosto de ver esses palhaços felizes.
Kaio ergueu as sobrancelhas e fez uma careta, torcendo que Lívia não percebesse. Leo, Carlinhos e Mauricio ainda estavam concentrados na tela da TV, os copos meio cheios a frente deles.
— E também, o dinheiro é do meu pai, então foda-se.
— Tu não te sente culpada de usar o dinheiro dele?
— Eu não — Lívia deu de ombros. — Não me deu atenção a vida inteira, então eu cobro no cartão dele.
Kaio nunca tinha pensado por aquele ângulo. Nem sequer parecia haver raiva na voz dela, era como se ela estivesse apenas cobrando a parte dela em um acordo. E, a julgar pelo que ele via, o pai dela parecia feliz em cumprir esse acordo. Ele nunca imaginou que as coisas podiam ser assim. Ele se perguntou se ela não sentia falta de nada, como ele mesmo achava que faltava alguma coisa.
Então observou Lívia, o copo na mão, a luz verde do videogame batendo no rosto dela, as pernas encolhidas junto ao corpo com as meias coloridas, viu ela balançando as mãos enquanto reclamava da colega de aula que discordava de tudo que ela dizia, falando mais alto que o som da risada dos guris e pensou que não, não faltava nada pra ela.
Kaio e Leo foram embora de madrugada. Eles ficaram na calçada enquanto Kaio chamava um carro, porque não era uma boa ideia dirigir, Leo apoiando todo seu peso no ombro de Kaio e cantando e ficou feliz por não ter fugido.
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