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Entre o som do CD da Xuxa e o grito estridente das crianças, na cabeça de Leo só tocava a música tema de Homem-Aranha num permanente tanananan tanan que fazia com que ele se mantivesse no personagem, apesar de uma criança já ter mordido ele e outra virado refri no seu tênis. Ele tinha acordado com a diretora da escolinha que ficaria por duas horas e meia e parecia que elas não iam acabar.
Não longe dali, Kaio se arrumava para sair de casa. Leo tinha mandado uma mensagem sem muitos detalhes pedindo uma carona. Num lugar que ele nunca tinha ido que se chamava Cavalinhos Mágicos do Saber e que, quando ele leu a mensagem, achou que fosse Caralinhos Mágicos do Saber. Era suspeito, mas Leo tinha pedido, e Kaio resolveu não discutir.
Kaio dirigiu até a escolinha com a playlist dos dois tocando no rádio do carro. Já fazia dias que o tempo estava nublado, parecendo que ia chover a qualquer momento, mas não chovia nunca e o dia estava um mormaço, um calor quente e úmido. Ele dirigiu sem pressa, observando aos poucos as nuvens se dissiparem e o tempo começar a abrir e se surpreendeu quando viu que Cavalinhos Mágicos do Saber era uma escolinha de educação infantil. Kaio tinha levantado muitas hipóteses, até a de que fosse uma sex shop com um nome de duplo sentido, mas uma escola não estava na lista.
Ele mandou uma mensagem para Leo avisando que estava ali, mas a mensagem não chegou. Kaio esperou dez, quinze minutos e resolveu descer. A fachada da escolinha tinha vários cavalos coloridos. Havia plantas morrendo nos canteiros. Era horrível. Ele pretendia nunca ter filhos, mas se ele fosse ter, ia colocar eles pra estudar ali.
Kaio conseguia ouvir música tocando nos fundos do pátio da escola e viu quando uma criança veio correndo com um pirulito na mão, seguido por uma mulher usando um avental. Ele ficou encostado no carro observando o prédio sem saber se devia entrar ou não, se perguntando se Leo não tinha mandado a localização errada.
Ele se virou para ver se Leo não estava do outro lado da rua ou coisa assim. Kaio começava a ficar nervoso, Leo não estava em lugar nenhum e as mensagens não chegavam nunca. Não iria demorar muito para Kaio ser invadido por todo tipo de pensamento terrível, horroroso e absurdo. E o tempo estava muito estranho, depois de horas de céu cinza, o sol do fim de tarde começava a aparecer, transformava o nervosismo em estresse, o calor atravessando as nuvens cinzentas atingia diretamente o seu emocional.
Leo podia ter sido assaltado ou sequestrado… e logo iam ligar pedindo resgate por ele. Será que a senha do cofre no guarda-roupa da mãe de Kaio ainda era a mesma? Ou ele podia ter tropeçado, caído, batido a cabeça no meio-fio e agora estava desacordado numa vala. Aquelas possibilidades o deixavam agitado. Se Leo estivesse bem mesmo, Kaio ia dar um sacode nele pra nunca mais o deixar sem notícias.
Ouviu passos atrás de si, mas nada que chamasse a sua atenção, afinal além de ter uma festa de dia das crianças acontecendo por ali, aquela também era uma rua movimentada.
Kaio sentiu dois braços envolvendo sua cintura e o puxando para trás. Ele olhou rápido para baixo e viu um par de mãos vermelhas com listras pretas e seu cérebro já assustado começou a entrar em pânico.
— Tu quer… — o ser misterioso começou a falar, mas foi interrompido por uma cotovelada na costela.
O ser misterioso, que por acaso era um Homem-Aranha, soltou Kaio e levou as duas mãos até onde tinha sido atingido. Um tipo de tentativa de fala escapou do Homem-Aranha, mas foi novamente interrompido, dessa vez por um soco.
Ele começou a gritar e a segurar o rosto e a costela ao mesmo tempo, e Kaio, tremendo de medo, destravou as portas e entrou no carro o mais rápido que conseguiu, mas antes que ele conseguisse pensar em como ligar o carro, o Homem-Aranha estava se atirando em cima do para-brisa, impedindo ele de sair e puxando a máscara ao mesmo tempo.
Foi quando Kaio descobriu, em absoluto choque, que o Homem-Aranha era Leo.
— QUE BOSTA É ESSA, LEO? — Kaio gritou enquanto saía do carro.
— EU TAVA TENTANDO TE PEDIR EM NAMORO!
— DESSE JEITO? QUE IDEIA DE MERDA!
Leo estava com dor e um pouco de falta de ar, então sentou no meio-fio. Àquela altura, as crianças que estavam brincando no pátio tinham todas vindo assistir à gritaria e se amontoavam num canto.
— Foi o que a Lívia disse…
— Tu devia ter ouvido ela! — Kaio disse, balançando os braços. — Que que tu tinha na cabeça?
— Amor? — disse Leo, dando de ombros, o que fez sua costela e ombros doerem mais. — Sei lá, achei que ia ser criativo.
Leo estava se sentindo o pior dos românticos, o anti-Don Juan, o oposto de um galã de novela, qualquer coisa assim. Além disso, estava sentindo seu olho começar a inchar.
— E eu achei que tu era um assediador, um assaltante, um assassino! — Kaio sentou no meio-fio ao lado de Leo.
Agora sem a máscara, Kaio conseguia ver o rosto de Leo. O olho que havia tomado o soco estava um pouco vermelho, e por mais que ele não sentisse culpa, já que só estava se defendendo, não tinha como não sentir pena daquela carinha de cachorro abandonado.
— Se tu tivesse reagido a um ataque assim, sei lá o que poderia ter te acontecido! — Leo retrucou.
— Ah, foda-se também, agora já era — Kaio declarou, dando de mãos — Só não me dá um susto desses de novo, tá?
— Tá… — disse com a cara emburrada.
Kaio olhou em volta. Começava a escurecer e uma luz azul-roxa caia sobre eles. A voz das crianças ficava mais alta conforme apareciam pessoas para buscar elas, e ele conseguia ouvir fragmentos de conversas. Uma pessoa vestida de Batman veio lá do fundo do pátio arrastando a capa no chão. Kaio colocou a mão sobre o joelho de Leo e fez um carinho. Os dois ficaram em silêncio por um momento.
Eles olharam para cima e, na confusão de cores do pôr-do-sol, um bando de passarinhos voavam, todos juntos, em linhas que cruzavam o céu.
— Tá vendo os passarinhos? Eles tão indo pra um casamento — disse Leo, repetindo algo que sempre ouvia da mãe.
— Tomara que tenha docinho.
Eles se olharam e Leo sorriu. Estava feliz que Kaio não tinha acelerado o carro e ido embora, fugindo das suas ideias malucas. Tinha ficado e sentado com ele.
— Bom, pelo menos tu não tava vestido de Peppa Pig — disse Kaio, sorrindo de leve e encostando a cabeça no ombro de Leo — Isso seria bem pior.
— Acho que um ser de pelúcia rosa te agarrando deve ser apavorante mesmo.
Isso fez com que eles rissem um pouco. A dor na costela de Leo estava melhorando, embora o olho ainda doesse.
— Desculpa pela cotovelada… — começou Kaio — e pelo soco na cara.
— Acho que foi um “não”, né? — disse desanimado.
Agora ele ia ter que voltar para casa e contar para Lívia, Maurício e Carlinhos o desastre que foi o seu plano infalível. E a Lívia nunca mais ia parar de chamar ele de “Cebolinha” e lembrar que ela tinha avisado. E o pior é que ela tinha razão.
— Quê?
— O pedido de namoro — explicou Leo — Acho que recebi um “não”.
— Eu achava que a gente já tava namorado, cacete!
Meu Deus, será que ele era tão burrinho assim? Leo se perguntou. Será que eles tinham falado sobre isso em algum momento, e ele não se deu conta?
— Ué, como assim?
— Não sei! Eu passo o tempo todo na tua casa, durmo na tua cama — Kaio explicou, se afastando um pouco de Leo e colocando as mãos na cabeça. Ele estava a ponto de surtar de novo. — Não é isso um namoro? Eu não sei, nunca namorei antes.
Leo passou um braço sobre os ombros de Kaio, bem devagar, fazendo carinho em seu braço. Como ele não se mexeu, Leo continuou naquela posição.
— Não tem uma regra, Kaio — ele disse, e fez uma pausa, pensando no que ia dizer. — Só achei que… sei lá, que seria legal se a gente oficializasse. Achou muito brega?
— Eu achei assustador. — falou baixinho. — Mas, por conta disso, eu nunca vou esquecer, então dá pra chamar de “marcante”, eu acho.
Kaio tirou as mãos do rosto e se virou para olhar Leo. Apesar do momento fofinho que estavam tendo, ele estava começando a ficar genuinamente preocupado com o olho de Leo.
— Então… — Leo respirou fundo e observou os olhos de Kaio. — Sim ou não?
— O que que tu acha? Sim, né, caralho.
— Ai, graças a Deus. — Nunca em toda vida de Leo ele tinha ficado tão feliz que um emo tinha dado uma resposta atravessada para ele.
***
— Tu sabe o Kaio? — Leo perguntou sem tirar os olhos do pote que estava lavando.
Regina olhou na direção de Leo por um momento, desviando os olhos da TV, onde o jornal transmitia uma matéria sobre o trânsito em São Paulo. Ela estava terminando de almoçar enquanto Leo guardava a louça, a tarde de sábado preguiçosa se arrastando.
— Aquele alto de cabelo raspado? — perguntou.
— Não, esse é o Carlinhos — Leo corrigiu — O Kaio é o baixinho loiro.
— Ah, tá — disse Regina, erguendo as sobrancelhas. — Que que tem ele?
Leo não respondeu de imediato, cuidadosamente empilhando os potes de plástico ao lado dos copos enfileirados e dos pratos Duralex marrons. Por meio segundo, ele cogitou falar alguma outra coisa. Alguma besteira sobre Kaio, ou contar alguma coisa que eles tinham feito. Ele já vinha se ensaiando há dias. Enquanto estendiam roupa na corda, ele quase contou. Quando estavam no mercado comprando garrafas de ketchup e mostarda, ele também quase contou. Sabia que tinha que ser assim, que tinha que falar sem criar muito caso, sem fazer cena.
Era igual quando ele quebrava um copo. Quanto mais ele hesitasse em contar, mais ela daria escândalo. Se agisse calmamente, se só juntasse os cacos de vidro e fizesse uma piadinha, ela não ia dizer nada. Ele não sabia porque era assim, mas era.
Até porque quando tentava pensar demais sobre o assunto, era como se o seu cérebro não quisesse discutir esse tema. Ele pensaria em qualquer outra coisa, antes de pensar em discutir esse assunto com sua mãe. Então precisava ser uma surpresa, tanto pra Leo quanto pra Regina.
— Pedi ele em namoro — Leo contou — e ele aceitou.
— Ah! Parabéns.
Ele chegou a sentir aquela sensação de alívio, de dever cumprido. Pronto, ele tinha contado e nada ruim tinha acontecido e agora eles podiam seguir adiante. Mas ele conhecia sua mãe. Ele sabia o que ela não estava dizendo quando dizia parabéns, quando seu rosto ficava sério e reto. Ele já tinha passado por isso antes e podia passar de novo. Depois de todos esses anos, ele não queria mais saber a opinião dela. Não precisava mais que ela achasse bom ou ruim. Então, sim, estava tudo bem.
E ainda assim, saber que aquilo era tudo que eles podiam ter, que aquela era a reação que ela tinha para oferecer e que ela nunca ficaria genuinamente feliz por ele fazia alguma coisa em seu peito doer. Ele disse a si mesmo que não se importava com isso.
— Achei que tu tinha decidido ficar com guria.
— Quê? Por quê?
— Tu não tava de agarramento com aquela guria ruiva?
— A Lívia? — perguntou quase incrédulo — Ela nem gosta de homem. E, de qualquer jeito, eu não tenho que me decidir nada.
— Ah, sei lá, Leo — ela fez um gesto com as mãos de quem não ligava — Quem entendia essas coisas era teu pai.
Leo não queria pensar sobre o pai. Às vezes, pensava que a mãe e Pietro tinham superado tudo rápido demais, mencionavam ele tão casualmente, como se não sentissem nada, como se não tivesse acontecido nada, como se ele só tivesse ido embora. Mas não queria pensar sobre isso também, evitava tudo que lembrasse o pai, o que era bem difícil toda vez que via Pietro. Já estava indo longe demais, obrigou a mente a mudar de canal, sintonizou num programa de viagens, era melhor assim.
E continuou a lavar a louça, em silêncio dessa vez. Um silêncio cheio do lado verde da esponja contra o alumínio das panelas, de talheres caindo no escorredor, de água da torneira levando o sabão embora, de alguma outra notícia na TV.
***
Leo estava determinado a superar o desastre que foi sua tentativa de declaração romântica. Ele sabia que podia fazer melhor. Primeiro ele pensou em mandar uma tele mensagem na casa de Kaio, mas não sabia o endereço e achou que seria escandaloso demais. Talvez outro susto não fosse a melhor ideia.
Mas ele queria uma coisa bonita, uma coisa clássica, uma coisa elegante. E uma coisa com música, claro.
Era nove e meia da manhã e Kaio estava dormindo. Ele tinha ficado acordado até tarde maratonando o anime que era a obsessão do mês, e não ouviu o celular tocar da primeira vez, nem da segunda. Principalmente porque o celular dele estava no modo vibrar desde 2012. Mas Leo era insistente e, por volta da quarta ligação, Kaio sentiu o celular vibrar e acordou, devagar, mas acordou.
Quando conseguiu deslizar a tela e atender a ligação, foi logo ouvindo a voz de Leo e um som alto de fundo. Ele não fazia ideia do que Leo estava dizendo.
— Tu tá numa rave ou coisa assim? — Foi o que conseguiu perguntar.
— O quê? Não! Eu disse liga na Pop Rock! — disse Leo, finalmente abaixando o som da música.
— Tu tá de cinta-liga na Tok Stok?
Leo ficou em um longo silêncio tentando decidir se valia a pena dedicar uma música para aquele loiro insuportável e respirou fundo.
— Kaio, escuta. Liga na rádio. Na Pop Rock. E fica escutando.
Quando lembrou o conceito de rádio, Kaio juntou seu notebook que estava atirado no chão do quarto se perguntando porque ele fazia tudo que Leo pedia e sabendo bem da resposta, e conseguiu acessar o site. Estava tocando uma música que ele não conhecia.
— Leo…
— Fica escutando um pouquinho — ele reforçou o pedido.
Kaio fechou os olhos e tentou não dormir de novo, o notebook apoiado sobre o peito, o celular entre a cabeça e o ombro. Mais duas músicas tocaram, uma que ele não conhecia e a outra era aquela da Ivete Sangalo que diz abre a janela e veja eu sou o sol ou alguma coisa assim. Nossa, era uma música meio egocêntrica, ele pensou.
Quando a música terminou, Kaio ouviu a voz da radialista. Pop Rock, o melhor mix do rádio, eu sou Sharon Maia e esse é o Conexão. Vamo pro próximo bloco? A seguir a gente tem o pedido Leo que vai dedicar essa próxima música pro Kaio “desculpa pelo susto e não desiste de mim”. Fica aí então o recado e vamo de música. Assim que ela terminou de falar, Kaio ouviu “Não espero mais”, d’O Terno.
— Tu é muito boiola — disse ele para Leo, com a voz mais séria que pode.
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