No começo de outubro, Leo já não aguentava mais. Aquele colchão fino no chão ia acabar matando ele de dor nas costas antes que ele pudesse fazer 21 anos. Ele precisava muito comprar uma cama nova, só que para isso precisava daquela coisa inventada, besta e indispensável: dinheiro.
O único momento em que sua coluna não doía era quando Kaio estava com ele. Se estavam os dois juntos no colchão, por mais fino e desconfortável que fosse, ele se sentia bem, conseguia ignorar a sensação de estar praticamente no azulejo. Leo percebeu que Kaio parecia meio longe, será que não queria estar ali?
Kaio levantou o rosto para olhar Leo, que parecia prestes a perguntar alguma coisa, mas logo desviou o olhar. Ele sabia que estava um pouco estranho e Leo tinha percebido. Não queria estar daquele jeito, mas não tinha como evitar. Tinha dias que as coisas com Leo eram simples e fáceis e ele não se preocupava se dizia a coisa certa ou agia da forma como era esperado. Mas na maior parte do tempo, e com cada vez mais frequência, ele não conseguia evitar aquela sensação estranha que ele não sabia explicar como era, mas que dava medo.
Toda vez que Leo tocava nele, toda vez que Leo beijava ele, Kaio sentia vontade de sair correndo. Não porque ele não gostava, não porque ele não queria, na verdade, ele queria ser tocado, queria como nunca antes pensou que fosse querer, queria que suas peles se misturassem como se os dois fossem bonecos de massinha de modelar que uma criança começou a juntar na ideia de transformar em uma bolinha cinza estranha, mas acabou desistindo para brincar de outra coisa. Acontece que ele nunca tinha feito nada disso. E não sabia se conseguia expressar esses pensamentos em voz alta para Leo.
Não era como se Kaio nunca tivesse tido uma paixonite ou algo assim antes, mas era só isso, só um sentimento que ele tinha, mas que ele nunca fez nada sobre. Era assim com a maioria das coisas, aliás. Não entendia muito bem porque era assim, alguma coisa sempre impedia que ele fizesse coisas novas, mesmo que ele não ligasse muito para os riscos ou consequências, ainda existia esse medo. Talvez faltasse um impulso, talvez faltasse incentivo, ou quem sabe, companhia?
E Leo… as coisas pareciam tão mais fáceis para ele. Kaio observava aquela leveza e aquela vontade de viver e pensava, como pode uma pessoa que parecia não ter medo de fazer nada? Nem quando viu Regina no quarto no dia da Queda do Beliche ele parecia com medo. Confuso e indignado sim, mas não com medo. Se por um lado ele queria aquela confiança, por outro era bom ter a chance de ver Leo existindo, sendo ele mesmo.
— Preciso arrumar um emprego — Leo resmungou tirando Kaio do seu monologo interno.
— Tu já não trabalha no trailer de pancho? — Kaio perguntou.
— Não, não — disse Leo, virando o rosto para ver Kaio. — Só ajudo a minha mãe quando ela precisa, aí eu só recebo o lucro do dia, o que não é suficiente pra comprar uma cama e um colchão novo.
Mesmo depois que Regina terminou o curso que estava fazendo e que obrigava Leo a trabalhar nas noites de quarta, ele continuou fixo naquele dia. Tanto ele quanto a mãe já tinham se acostumado com aquele esquema e, afinal de contas, Leo precisava do dinheiro. Aliás, dinheiro era o que ele mais precisava naquele momento. Já estava procurando por oportunidades de bolsa na universidade, mas sabia que todos os processos seletivos demoravam, e ele tinha que dar jeito naquilo logo.
— Uma cama?
— Sim, não aguento mais essa merda — Leo bateu a mão sobre o colchão, que tinha a espessura aproximada de uma folha de ofício do Seninha. — Dá pra sentir o chão!
— Mas a tua mãe não te proibiu de comprar uma cama aquele dia? — Kaio parecia confuso.
— Não era sério, ela não ia me proibir de comprar uma cama, né? — riu — Só não comprei ainda porque não tenho dinheiro mesmo.
Kaio observou o rosto de Leo e viu que ele não estava sendo irônico, e achou aquilo muito estranho. E depois se sentiu meio bobo. Agora parecia óbvio que ela não faria mesmo isso.
Quando se tratava de mães, Kaio não sabia muita coisa. Quando a mãe dele fazia algum tipo de ameaça, geralmente era isso mesmo. Não que ela fizesse muitas ameaças ou se importasse muito com alguma coisa que ele tinha feito ou deixado de fazer a ponto de achar que valia a pena ameaçar.
Leo não percebeu a confusão de Kaio. Ele estava ocupado procurando mais informações sobre um post que tinha acabado de ver no Instagram. Estavam chamando pessoas para trabalhar em uma festa de dia das crianças, usando fantasias de princesa, ou de super-herói, ou de Patati e Patata, mesmo que as crianças de hoje nem saibam mais quem é Patati e Patata. Ele deu uma olhada na página da escolinha particular e pensou, bom, ninguém vai tentar me matar, né? Não dizia quanto pagava, mas na situação em que ele estava qualquer coisa tava valendo. Ele tirou um print da publicação e mandou no grupo dos Chapeiros com a legenda “e se eu…”, e ficou esperando Carlinhos, Lívia e Mauricio responderem.
Enquanto ele esperava os amigos responderem, uma ideia passou pela cabeça dele e ele torceu para tudo dar certo.
***
Leo colocou a bandeja de plástico sobre a mesa do RU e sentou de frente para Carlinhos enquanto terminava de contar sua ideia mirabolante para o grupo. Algum aluno de engenharia estava com a caixa de som torando lá fora. O sol entrava pelas grandes janelas quadradas ajudando a aquecer a comida.
— Que ideia de merda — disse Lívia — Isso aí vai dar ruim.
— Muito pelo contrário! Vai dar bom pra caralho! — Maurício quase gritou — Se fosse comigo, eu ia amar!
Carlinhos só fez um barulho e apontou para Mauricio concordando enquanto se dividia entre comer o almoço e ler um artigo no tablet rosa da Lívia.
— Ô, não vai virar feijão no meu tablet! — disse, gesticulando com o garfo na direção de Carlinhos.
Carlinhos revirou os olhos, mas afastou um pouco o tablet da bandeja. O cardápio do RU, além do arroz e feijão, era porco com barbecue e um purê de batata esquisito. Sendo o prato favorito de Carlinhos, ele estava adorando.
— Lívia, eu acho que tu não tá entendo a genialidade da ideia — Leo argumentou. — O Maurício, sim, consegue ver porque que vai dar bom.
— Mas é que o Mauricio divide o mesmo último neurônio que tu! — com o mesmo garfo, ela apontou de um para o outro. — Vocês são completamente fora da casinha e boiolas! O coitado do Kaio vai fugir!
Mauricio não tinha nada a comentar, mas deu uma ajeitadinha no óculos, o que significava muito. Leo podia admitir que era uma ideia arriscada, que ele nunca tinha feito nada como aquilo antes, e que ele não podia mesmo prever como Kaio ia reagir.
— Eu, que não sou nem louco, nem gay, acho que tu tá errada. — disse Carlinhos interrompendo a discussão.
Leo balançou o ombro de Carlinhos amigavelmente, feliz por receber apoio.
— Carlinhos, tu não vê que tá silenciando uma mulher lésbica? — falou indignada.
— E tu nem conhece o Kaio! — Leo completou.
— Mas eu já entendo a alma dele, nós temos uma conexão!
Leo não calava mais a boca sobre Kaio, era verdade. E os amigos viviam pedindo para conhecer ele. Leo tinha a sensação de que Kaio era agora uma parte permanente, importante de sua vida. Ele queria, claro, que seus amigos aprovassem o que ele ia fazer (e como), mas iria fazer de qualquer jeito.
— A conexão é o dinheiro? — Mauricio levantou os olhos do celular por um segundo.
— Ah, vai tomar no olho do teu cu, Mauricio!
A essa altura, eles já estavam rindo alto e até Lívia estava com dificuldade de manter o rosto sério. Leo estava feliz de estar dividindo isso com eles, mesmo que eles não estivessem dando crédito merecido a sua ideia mirabolante. Mas só de ter expressado em voz alta o que vinha se passando na sua cabeça ele já se sentia mais animado. Não via a hora de que Kaio conhecesse todos eles.
— Galerinha, vamo calmá? — Leo interrompeu a discussão — O importante é que vai dar tudo certo e vai ser lindo!
— Veremos, Leo, veremos!
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