Mas se todos fazem…
(Argumento - Francisco Alvim)
Primeiro foi um estalo. Depois, em outro lugar não tão longe, foi uma batida de porta. E então, outro estalo. Um clique na fechadura e o som dos chaveiros batendo contra as chaves. E daí, para finalizar a orquestra, um grande estrondo. Barulho de madeira quebrando, caindo, e três gritos assustados.
Regina deixou as chaves caírem no chão com o susto. Houve um segundo estrondo e, dessa vez, passado o choque inicial, ela percebeu que os barulhos vinham do quarto de Leo. Não deu tempo de juntar as chaves, ela atravessou a sala e abriu a porta. A primeira coisa que chamou sua atenção era que o beliche tinha se desmanchado completamente. Nem reparou, a princípio, que seu filho estava tentando sair debaixo dos escombros.
A primeira preocupação de Leo naquele momento era tirar o beliche de cima do Kaio ou Kaio debaixo do beliche, o que fosse mais fácil. Quando ele finalmente conseguiu levantar o que sobrou da estrutura de madeira e Kaio começou a se levantar, ele enfim se deu conta que, puta que pariu, o beliche da mãe dele tinha quebrado. E, por fim, ele se virou e viu sua mãe parada na porta e pensou, puta merda, a minha mãe.
Kaio, quando viu Regina, quis entrar de novo em baixo do beliche. Para a sorte dele, ela ainda não tinha processado sua presença no quarto. As lascas de madeira arranharam suas pernas enquanto ele se esforçava para ficar de pé, já que Leo estava paralisado com metade de um beliche na mão. Kaio se enredou em lençóis e cobertores e quase caiu, até recuperar o equilíbrio.
— ESSE BELICHE TINHA QUASE TRINTA ANOS! — Regina gritou.
Leo largou os restos do beliche e Regina precisou se sentar na cadeira de rodinhas para entender o que estava acontecendo. Kaio se afastou para um canto, o coração batendo rápido.
— Não fui eu! Caiu sozinho! — Leo começou a tentar se defender.
— Como que ia cair sozinho, Leo? — Ela finalmente tirou os olhos das ruínas do beliche e percebeu Kaio ali, ainda estático. — Quem é essa pessoa? O que vocês tavam fazendo?
Regina arregalou os olhos e Leo também, de uma forma que os deixava ainda mais parecidos fisicamente.
— É o Kaio! — Leo disse, entre uma afirmação e um grito. — A gente tava dormindo! Tô dizendo que caiu sozinho! Foi do nada!
— Alguma coisa tu deve ter feito!
— Só se eu for sonâmbulo e não sei! — disse Leo, indignado. — Mas o Kaio ia ter me visto quebrando o beliche de olho fechado!
Leo e Regina seguiram gritando um com o outro enquanto Kaio ainda estava em pé no canto do quarto. Ele não sabia para onde olhar e nem o que fazer com as próprias mãos, então se aproximou dos restos mortais do beliche para tentar encontrar seus tênis que se perderam embaixo do que foi a cama de Leo. Pegou um dos pedaços que havia se soltado e examinou os pequenos furinhos que cobriam a parte interna da madeira.
— É normal isso estar assim? — Kaio se meteu na discussão.
Ao ouvir a voz de Kaio, os dois pararam. Regina estendeu a mão e pegou o pedaço de madeira que ele estendeu. Leo se inclinou para frente para ver também. Um insetinho minúsculo, da mesma cor da madeira, saiu de um dos buraquinhos, caminhou um pouco e caiu no chão.
— É, acho que é cupim — Regina disse, jogando aquele pedaço de beliche junto com o resto dos pedaços de beliche.
— Viu? Falei que não tinha sido culpa minha!
— Mas se tu tivesse mais cuidado com as coisas talvez não tivesse quebrado!
Leo abriu a boca para retrucar, mas desistiu. Kaio estava olhando os pedaços de madeira e pensando que bicho interessante e paciente era o cupim. E eles ainda tiveram a esperteza de comer só a parte de baixo, bem nos pontos de apoio do beliche.
— E a gente faz o que agora? — Leo perguntou — Faz o enterro do beliche?
Regina olhou longamente para Leo e depois para o beliche.
— Da onde já se viu enterrar um beliche, guri?
— Sei lá! A gente tem que dar um fim pra ele e como é um beliche tão querido pra ti…
— Tu bateu a cabeça quando o beliche caiu?
Leo não tinha batido a cabeça, mas com certeza uma parte do beliche havia batido em sua cabeça, o que devia dar no mesmo. Ele observou aquela cena de crime que tinha virado seu quarto e só então começou a se dar conta que não tinha mais cama.
— A gente podia tacar fogo… — Kaio disse baixinho enquanto encarava o cadáver do beliche.
***
O processo de desmanche do beliche levou mais tempo do que eles tinham imaginado. No pátio dos fundos da casa, Kaio e Leo arrastaram um velho barril de latão que estava atirado e jogaram os pedaços de madeira (com todos os cupins inclusos) dentro, junto com todo o conteúdo de uma garrafa de álcool.
O pátio era um espaço pequeno coberto de grama, meio mal cuidado pelo tempo. Encostado em um dos lados da cerca estava uma bicicleta com a corrente quebrada, fazendo companhia para o fio de estender roupa apoiado por um pedaço de bambu, que atravessava o pátio na diagonal.
Já era tarde da noite. Regina tinha chegado no último ônibus, depois de fechar o trailer. Leo e Kaio tinham passado a tarde em casa, assistindo anime, e pegaram no sono cedo, perdendo a noção da hora. Acontece que, desde que o irmão de Leo se mudou, o beliche simplesmente não estava acostumado com o peso de duas pessoas. Isso e mais os cupins resultou na tragédia que levou o adorado beliche da mãe de Leo.
Leo usou um isqueiro para colocar fogo no álcool e, em questão de segundos, toda a madeira estava em chamas. Kaio, Leo e Regina ficaram longos segundos vendo aquela cena, o laranja das chamas iluminando as sombras do pátio. Leo não sabia no que os outros pensavam, mas em sua cabeça estava se despedindo do beliche. Era só outro tipo de velório.
Regina soltou um longo suspiro.
— Ah, eu vou me deitar! — Regina se virou para voltar para casa, parou, voltou e apontou para Leo. — E tu tá proibido de comprar uma cama nova por uns dois meses!
Kaio e Leo assistiram Regina ir embora. Assim que a porta da cozinha fechou, Leo se virou dramaticamente para o lado de Kaio.
— Eu nem tenho dinheiro pra comprar uma cama mesmo!
***
Kaio queria adiar o máximo possível ter que voltar para casa, então, na manhã seguinte, decidiu levar Leo até a UNIPAMPA. Era cedo ainda, a primeira aula dele começava às oito, e Kaio estava lutando para se manter acordado. Enquanto isso, Leo estava com a energia de duas crianças de cinco anos e um esquilo de Alvin e os esquilos.
— Kaio, vamo embora que daqui a pouco a mãe levanta pra ver o Bom dia, Rio Grande. Vamoooo — Leo sacudia de leve o ombro de Kaio que estava sentado no banco do motorista tentando lembrar como engatar a primeira.
Kaio não disse muita coisa no caminho até a universidade porque se acordado ele já não era bom motorista, com sono então era muito pior. Era uma manhã ensolarada e ele gostava de levar Leo nas aulas. Fazia bem pra ele olhar pro lado e ver Leo com as pernas esticadas e o corpo atirado no banco do passageiro. Leo olhava pela janela e balançava as pernas no ritmo das músicas da playlist que os dois tinham montado.
Quando Kaio parou o carro, Leo deu um beijo rápido nele antes de descer. Kaio assistiu ele entrar na universidade, cumprimentar o porteiro e desaparecer em um corredor. Não tinha a menor de vontade de voltar para casa, queria seguir Leo para dentro daquelas salas que ele não conhecia. Mas não tinha muitas opções e, de qualquer forma, precisava tomar um banho.
O caminho pra casa foi um arrasto, um tormento. Kaio enrolou o máximo que podia, fez curvas que não precisava, deu voltas em quarteirões, deixou que as caminhonetes enormes, que sempre parecem estar com pressa, passassem por ele sem reclamar. Porém, em algum momento, não tinha mais como escapar do seu destino. Bem, na verdade, até tinha. Kaio poderia simplesmente não ir para casa, nada o obrigava. Talvez sua mãe nem notasse que ele voltou, talvez ela sequer tenha notado que ele saiu. Não sabia por que ainda voltava.
Estacionou o carro na frente de casa, não colocou na garagem junto com o carro da mãe, o do padrasto e o Cooper que era “da família”, mas que todos, com exceção do Roger, estavam proibidos de dirigir. Não pretendia ficar muito tempo por ali. Tinha passado a última semana desde o Incidente do Beliche (no caso, o primeiro Incidente do Beliche, não o da noite anterior) quase o tempo inteiro na casa de Leo.
Se sentiu mal logo ao entrar na casa, era tudo branco demais, minimalista demais, vazio demais. O piso de porcelana que uma diarista vinha limpar toda semana estava refletindo as luzes brancas colocadas estrategicamente no teto de gesso. Os armários da cozinha, o tampo dos balcões, o sofá e as cortinas da sala eram todos brancos. A única mancha de cor estava nas plantas de plástico extremamente realistas e no dourado dos utensílios de cozinha.
Encontrou a mãe na cozinha. Notou que as luzes dos cabelos já loiros estavam retocadas. Ela estava sentada em uma das banquetas altas da ilha no meio da cozinha, comia sem prestar atenção no pratinho com pedacinhos cortados de mamão e chia. Já vestia as roupas de academia de marca, logo ela sairia para dar as primeiras aulas de pilates do dia. Apenas levantou o olhar quando percebeu Kaio entrando na cozinha, não disse nada.
— Mãe, vai trabalhar hoje? — perguntou mesmo sabendo a resposta.
— Aham, a Elisângela tem me feito trabalhar de manhã — disse sem tirar os olhos da TV pendurada em um canto da cozinha.
Ele fingiu olhar para a TV também, o corpo inclinado na lateral da ilha, porque não sabia bem como agir ou o que fazer.
— Quem é Elisângela? — Ele perguntou, olhando para a mãe que ainda não tinha olhado em sua direção.
— Aquela que veio jantar aqui na terça. — Continuava não olhando para Kaio.
— Eu não tava aqui na terça.
— Ah.
Sempre que olhava para a mãe, Kaio tentava ver a semelhança entre eles e quase nunca conseguia. O loiro do cabelo dela não se parecia com o dele, o castanho dos olhos dela estava sempre sombreado pela extensão de cílios e o lápis na marca d’água. Era como tentar conversar com um desconhecido. Com certeza ela sentia o mesmo, talvez por isso nunca olhasse na direção dele. Nenhum dos dois disfarçava bem a estranheza.
Kaio se virou para sair da cozinha quando ela o chamou.
— Comprei aqueles energéticos que tu gosta — anunciou.
Ele não respondeu, nem agradeceu. Fazia dois anos que não bebia mais aquele energético, aliás, não bebia mais energético nenhum. Ele costumava colecionar as latas em uma pilha no quarto, até que um dia, inevitavelmente, todas elas despencaram de uma vez. O barulho foi muito alto pra que a mãe ignorasse e a conclusão que ela tirou disso foi de que ele gostava muito de energético e desde então, toda semana, ela abastecia a geladeira com quatro ou seis latas. Em vez de jogar fora, ele esperava juntar latas o bastante, colocava todas na mochila e ia até a praça distribuir elas entre os adolescentes. Como um Papai Noel de emo.
Foi para o próprio quarto e se atirou na cama, precisava estocar um pouco de energia para tomar banho. Kaio gostava do próprio quarto, era o único cômodo da casa que passava pelo menos um pouco de conforto para ele. Também era o único cômodo que as paredes não eram brancas. Aos 15 anos, Kaio comprou um galão de tinta preta e pintou o quarto sozinho. É claro que ele não tinha as habilidades necessárias para essa tarefa e a pintura ficou terrível, mas ninguém notaria além dele, ele não recebia muitas visitas.
As falhas na pintura foram um dos motivos, mas não único, que fizeram com que Kaio enchesse as paredes de posters, prateleiras e outras quinquilharias penduradas. Durante o ápice da pandemia, Kaio até pensou em montar uma daquelas paredes cheia de páginas de mangá, mas acabou desistindo, preferiu dormir.
Ficou encarando o teto de gesso, as fitas de LED coladas ao redor. Queria ser engolido pela própria cama, queria sair correndo, queria voltar logo para Leo.
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