Era uma das últimas tardes do inverno, um ventinho gelado ainda rodopiava nas ruas. Kaio gostava da sensação daquele vento tão específico batendo no rosto, fazia com que ele se sentisse um pouco mais vivo, um pouco mais presente. Infelizmente, ele sabia que logo, logo aquilo seria substituído pelo calor e o abafamento. Não queria pensar nisso. Por enquanto, iria aproveitar o clima, a luz do sol ainda aconchegante, antes de tudo se tornar um inferno. Na verdade, mesmo, ele nem pretendia ter saído do quarto hoje, se abrisse a cortina, aquela luz bateria na sua cama, não precisaria se mover. Mas não conseguia ficar em casa, a falação das amigas da sua mãe não deixava ele ouvir os próprios pensamentos. Saiu pela porta dos fundos, não queria ser visto.
Leo não gostava do cheiro de tempero e chocolate em pó da Casa das Embalagens, mas quando Regina mandava ele comprar alguma coisa em uma loja especifica, ele apenas ia. Um pacote com cinquenta caixinhas de papelão e embalagens de lanche feitas de plástico que, felizmente, vinham desmontadas e envoltas em plástico filme. Pagou e guardou a sacola na mochila. Se questionou se pegava o ônibus e voltava para casa ou se andava mais um pouco pelo centro, fazia uma tarde tão bonita. Resolveu andar até a Praça da Estação, dar uma volta e pegar um sol, já que, quando quisesse, podia pegar o ônibus na parada da esquina da farmácia.
Leo viu Kaio de longe, sentado em um dos bancos verdes, com os braços estirados para trás, o sol batendo em seu rosto e fazendo os cabelos dele brilharem, dourados, como um anjo usando moletom preto e coturnos. Leo se aproveitou por um minuto que Kaio não podia vê-lo, afinal, tinha os olhos fechados, e ficou pensando no que diria para ele, porque com certeza não podia deixar a oportunidade passar. Mas ficar olhando para ele era tão bom também. Kaio era diferente. Leo não sabia bem explicar porque, o que tinha nele e o que tinha em Kaio que fazia com que as interações deles provocassem uma sensação que ele nunca tinha sentido antes, mas o fato era esse. E todo mundo via. Seus amigos estavam cansados já de pedir mais detalhes sobre o que estava acontecendo com Leo, sendo que nem ele sabia dizer o que era. Mas tinha a ver com Kaio.
Kaio não pareceu notar quando Leo se aproximou, o que fez com que ele se perguntasse se era possível que ele estava mesmo dormindo, assim, em praça pública, como se nada fosse nada. Leo se sentou na beira do banco (Kaio estava sentado bem no centro, talvez justamente pra que ninguém sentasse do seu lado) e nem assim Kaio pareceu notar que alguma coisa estava acontecendo.
— Meio perigoso, tu não acha? — disse Leo, com a voz alta o suficiente que acordaria Kaio.
Como esperado, Kaio tomou um susto que quase derrubou ele do banco. Ele também quase gritou, mas, felizmente, antes disso ele reconheceu a pessoa sentada do lado dele. O que substituiu o grito preso na garganta por uma quase parada cardíaca. Vinha pensando demais em Leo desde a carona. Isso era algo bom ou algo ruim? Ele ainda não sabia. O que ele sabia é que gostava da presença de Leo, gostava de ouvir ele falando sem parar enquanto fazia panchos, de alguma forma tudo aquilo fazia ele se sentir confortável, o que era uma sensação bem rara para Kaio.
— Tu realmente tava dormindo? — Leo riu, o que Kaio achou um absurdo.
— Não! Eu só tava pensando longe. — disse enquanto se sentava direito no banco. — Não se chega assim nas pessoas, sabia? Eu podia ter te dado um socão.
— Tu não teria se assustado se não tivesse dormindo! — Leo argumentou, passando um braço sobre o encosto do banco, virando o corpo na direção de Kaio. — Além disso, quem dá um socão em uma pessoa por se sentar em um local público?
Leo fez um gesto que abrangia a praça toda. Ele talvez estivesse razão, era um local bem democrático e não era possível impedir as pessoas de se sentarem nos bancos. A praça da estação era para todos os públicos, das pessoas que faziam exercícios aos adolescentes que se sentavam na grama. Era, ao mesmo tempo, o local com a maior concentração de idosos praticando ioga coletiva e de emos da praça tomando vodka com suco de saquinho. Kaio, que era emo e que às vezes ia na praça, mas que não era emo da praça, gostava do lugar.
— Ah, sei lá, podia ser uma reação automática!
— Que tipo de reação automática é um soco? — Leo perguntou rindo.
Kaio fez uma expressão bastante emburrada e não respondeu.
— Mas então, o que tu faz aqui atirado? — Leo mudou de assunto, torcendo que Kaio falasse mais.
— Tô aqui e atirado.
— E?
Leo achava muito interessante a ideia de que uma pessoa poderia simplesmente não fazer nada. O cérebro dele não tinha essa configuração.
— E é isso. — respondeu sinceramente — Não queria ficar em casa.
— Então, isso significa que tu estaria totalmente disponível pra me aturar o resto da tarde? — Leo lançou a proposta.
Kaio fez uma expressão bastante confusa.
— Acho que sim, não sei, depende. — Kaio respondeu.
— Que tal a gente ir comer um pastel do Calçadão? Acho que combinaria com essa bela tarde — Leo fez muitos gestos com os braços, gesticulando para a bela tarde, para eles dois e apontando na direção do Calçadão. Ele tinha que saber vender a ideia.
— Que pastel do Calçadão?
— Tu não conhece o pastel do Calçadão? — Leo perguntou indignado, como se tivesse ouvido o maior absurdo do mundo.
— Não?
— Então, eu vou ser obrigado a te levar lá, tu não tem escolha! — Levantou do banco já colocando a mochila no ombro e pronto para ir.
— Eu não vou não, vai que tu tá tentando me levar pra um cativeiro ou qualquer coisa assim…
— Kaio, por que caralhos eu te levaria pra um cativeiro? Ainda mais um cativeiro no Calçadão! — Leo fez uma careta. — Se alguém poderia ter sido sequestrado era eu quando tu me deu carona.
Kaio estava se divertindo. Ele gostava do jeito como eles conversavam. Parecia que tudo que ele dizia provocava uma reação em Leo. Ele sorria, ou revirava os olhos, ou dava risada, ou fazia um gesto. Nunca ninguém tinha dado a ele aquele tipo de atenção.
— Tá, tá! Eu deixo tu me levar pra comer pastel.
Devagar, como se para brincar ainda mais com o nervosismo de Leo, Kaio se levantou e eles caminharam em direção ao Calçadão. Leo falou quase o tempo todo. Comentou sobre o motivo de estar no centro, sobre o preço das coisas, sobre o tempo frio, sobre o trânsito da cidade. Kaio só ouvia, quase não falava nada, de vez em quando fazia um comentário pontual. Até tinha vontade de falar mais, mas alguma coisa dentro dele não deixava.
No Calçadão, Leo guiou ele até um quiosque perto do Banco do Brasil. Pediu um pastel de calabresa com queijo para si e Kaio escolheu um de frango. Eles se sentaram numa das mesas de plástico em frente ao quiosque e, por uns segundos, Leo finalmente ficou quieto.
— É, vou admitir que é bom pastel. — Kaio disse de boca cheia.
— Todas as minhas indicações são ótimas, um dia tu se acostuma e nem questiona mais. — Leo falou se vangloriando um pouco.
— Um dia?
— Sim, ué. — disse Leo, ainda com a boca cheia de pastel. — Ou tu tá achando que nunca mais vai me ver ou coisa assim?
— Não, não — respondeu Kaio de imediato. — Só não sabia que tu pretendia me fazer mais indicações, sei lá.
A verdade é que Kaio nunca tinha muita certeza. Toda vez que ele via Leo, podia ser a última. Ou talvez na próxima ele não iria querer conversar com Kaio. As pessoas eram meio incertas assim.
— Tu nunca vai conseguir se escapar das minhas indicações.
— Isso é algum tipo de ameaça? Eu deveria ter medo?
— Sim.
Começava a ficar escuro. Leo não tinha muita coisa pra dizer agora, e experimentou por uns momentos ficar simplesmente ali, sem fazer nada, cuidando as pessoas passarem. Até que não era a pior coisa.
Eventualmente, Kaio achou que era melhor ele ir embora. Não que ele quisesse, apenas sentiu uma vontade de se levantar, fazer outra coisa. Começou a achar que podia estar incomodando Leo, sabe-se lá por que motivo.
Leo se ofereceu para andar com ele de volta para a praça da estação, e seguir seu plano original de pegar o ônibus na esquina da farmácia. No caminho de volta eles ainda estavam em silêncio, mas não parecia ruim.
— Tem ônibus só daqui a uma hora — disse Leo, encostado no HB20, assistindo seu ônibus ir embora sem ele. O carro estava parado em frente ao Centro Administrativo da cidade, de frente para a praça. Para as poucas habilidades de motorista de Kaio, até que ele não era ruim em estacionamento oblíquo.
— Entra aí um pouco — disse Kaio num impulso, destravando o alarme do carro. — Tá frio aqui fora.
Eles ligaram o rádio e o aquecedor do carro. Kaio tinha uma vaga noção que isso podia acabar com a bateria, mas não se importou muito. Se ele tivesse que chamar o guincho, ótimo, pagaria a conta no cartão de seu padrasto. Roger nem olhava a fatura antes de pagar, ia direto no débito automático. De vez em quando, Kaio comprava alguma coisa pra ver se ele ia notar, até agora não foi pego.
No carro, bem mais a vontade, Leo voltou a falar, contando para Kaio tudo sobre seus amigos que, aliás, não paravam de mandar mensagens no grupo, que Leo estava ignorando. Kaio até se sentiu a vontade para falar, não sobre seus amigos porque não tinha muitos e os que tinha não moravam ali, mas sobre qualquer outra coisa que passasse em sua cabeça naquele momento.
Obviamente, eles perderam a noção da hora. Leo perdeu o ônibus e só foi se dar conta de que deveria ter ido pra casa quando sua mãe ligou, preocupada.
— Acho que é melhor tu ir — disse Kaio, quando ele desligou. — Senão a gente vai se perder de novo.
— Eu acho que sim — Leo olhou o celular. — Vai passar um ônibus daqui a pouco mesmo.
Por ele, não teria ido. Na verdade, se pudesse, ele teria ficado o resto da noite toda ali. Mas estava tarde e ele já estava alugando Kaio tempo demais.
— Deixa que eu te levo. — Kaio disse novamente num impulso, hoje parecia que sua boca falava antes que ele pudesse pensar. Se fosse levar Leo, ficaria mais tempo com ele e menos tempo em casa.
— Eu aceitaria, mas é muito longe, tu vai te perder voltando sozinho. Outro dia, pode ser?
Kaio gostaria de ter essa certeza de Leo de que sempre haveria um outro dia.
— Outro dia.
— Tchau — disse Leo, já com uma mão na maçaneta do carro.
— Tchau — Kaio estendeu o corpo e deu um abraço desajeitado em Leo, que não durou mais do que uns segundos, todo torto e sem preparação.
Leo saiu do carro com a sensação de que alguém tinha atingido ele com um raio. Confuso e animado, ele abriu o grupo de mensagens com os amigos, ignorou tudo que tinham mandado até aquela hora e digitou “ah mas vocês não sabem o que me aconteceu”.
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