O resto do almoço fluiu naturalmente e nós saboreamos a nossa refeição, enquanto continuávamos a colocar a conversa em dia. Erina fez questão de falar mais com o John, então ela falou sobre a sua evolução com a espada, sobre as novidades da alta sociedade e sobre suas músicas, peças teatrais e livros favoritos – omitindo os mais pesados.
Quando terminamos de almoçar, John havia nos mencionado que iria para a estação de trem, pois uma amiga dele iria viajar a trabalho e ele queria se despedir junto ao irmão dela. Ele perguntou se queríamos ir com ele ou ir ao dormitório. Tanto eu quanto Erina escolhemos ir com ele a estação de trem.
Chegando na estação, John nos levou até o ponto de embarque, onde já haviam pessoas esperando pela chegada do trem. Com extrema facilidade, ele encontrou sua amiga e gritou enquanto acenava:
- Noru!
Ela olhou para John e sorriu, acenando de volta e depois gesticulando para ele se aproximar. Meu irmão caminhou até ela com passos largos e rápidos, enquanto eu o seguia logo atrás. Erina, entretanto, não se agradou com o entusiasmo dele para ver a amiga, porém também nos seguiu.
A amiga de John era uma mulher alta e com o porte atlético de uma acrobata da mesma idade que ele. Seus cabelos eram pretos e haviam sido cortados na altura de seu queixo e seus olhos eram da cor do ouro. Ela estava vestido uma camiseta branca cujo os dois primeiros botões estavam desabotoados, calças pretas e botas marrons. Ao lado dela, estava um homem tão alto quanto ela, porém um pouco mais velho e um pouco mais musculoso. Esse homem, ao contrário da mulher, tinha cabelos prateados, porém seus olhos eram da mesma cor que os dela. Suas vestimentas eram mais formais do que a da mulher. Aqueles eram Noru Reignia e o seu irmão Hugo Reignia, mais conhecido como Dragão Imperial Moderno.
- Fala, John! – Noru cumprimentou – Que bom que você veio! Achei que estaria ocupado demais para vir.
- Nem um pouco – John respondeu – Eu só estava almoçando com minha irmã e com a Senhorita Erina.
Noru olhou para mais atrás de John e me notou, formando um sorriso radiante em seu rosto.
- Ah, Amaris! Quanto tempo! – Noru exclamou, aproximando-se de mim e puxando-me para um abraço – Como você cresceu! E está mais linda também!
- Obrigada! – Abracei-a de volta – É bom te ver novamente! Você continua maravilhosa como sempre!
- Ai! Assim você vai me deixar sem jeito! – Noru me soltou e olhou para o lado – Oh? Nós conhecemos?
Noru estava se dirigindo a Erina que, por mais que estivesse com uma postura refinada, sua testa estava franzida e seu sorriso era fingido. Erina só conhecia a Noru pelo nome, então aquela era a primeira vez que as duas se conheceram, mas Erina já não tinha uma opinião positiva sobre a mulher. O motivo era que, há 5 anos atrás, quando eu falei para a Erina que o John parecia ser um protagonista de um livro maduro e ela havia declarado que ele seria um membro de seu harém, eu acabei mencionando a Noru para ela e disse-lhe para ela desistir de John, pois Noru parecia ser o futuro interessante romântico dele. Isso também é uma coisa que me arrependo de ter dito.
Entretanto, parece que Noru não se deu conta da hospitalidade disfarçada de Erina, pois se apresentou a ela com muita cordialidade:
- Ah, essa é primeira vez que nós nos conhecemos! Eu me chamo Noru! A Amaris me falou tanto sobre você!
Erina retribuiu com uma reverência formal e respondeu com uma voz um tanto quieta, mas que cuspia veneno nos desavisados:
- Chamo-me Erina Banloros. Prazer em conhecê-la, Senhorita No-ru!
Infelizmente, seu veneno não atingiu nem um fio de cabelo da Noru.
- Oras, não precisa ser tão formal comigo! Qualquer amiga de Amaris é minha amiga também! – Ela exclamou, pegando a mão de Erina e balançando-a em um cumprimento. Erina fez um cara de “Argh, essa mulher!”, mas Noru nem nem percebeu.
Após soltar a mão de Erina, Noru olhou para o homem de cabelos prateados, que havia ficado parado sem dizer uma palavra sequer, e gesticulou para que ele se aproximasse.
- Ei, irmão! Venha aqui, você também deve se apresentar!
O irmão de Noru finalmente se mexeu e caminhou até Erina e eu. Em seguida ele fez uma breve reverência e se apresentou.
- É um prazer conhecê-las. Chamo-me Hugo Reignia.
Ao ouvir o sobrenome do Hugo, o rosto franzido de Erina foi tomado por um de surpresa e, por fim, por um de deslumbre. Provavelmente ela deve estar pensando algo como “Não creio… Esse homão é o Dragão Imperial Moderno?! Eu estou na presença do Dragão Imperial Moderno!!!”
- Entretanto… – Hugo continuou, olhando para mim – Creio que já esteja familiarizado com a Amaris.
Erina virou seu rosto para minha direção em um reflexo sagaz, com uma expressão de “Você conhece esse homem?!!!”. A resposta é sim, eu o conheço, mas não somos próximos. Durante as férias de três anos atrás, John voltou para casa para descansar e, um dia, Noru, acompanhada do recém graduado Hugo, veio vê-lo, porém eles só estavam de passagem, então a visita foi breve. Enquanto a Noru tentou puxar assunto com todos, Hugo apenas se apresentou para mim e meus pais, teve uma pequena conversa a sós com meu irmão e depois foi embora com sua irmã. Um detalhe sobre a introdução dele naquele dia foi que, após se apresentar, ele ficou me encarando por alguns segundos. Ele parecia estar me analisando. Não faço a mínima ideia do que se passou pela cabeça dele naquele momento. Acho que entendi como o John se sentia a respeito do Hugo no primeiro ano da Academia.
Já fazia um bom tempo que eu não o via que foi até estranho ouvir sua voz novamente.
- É, você está… – Respondi a Hugo, sem saber o que realmente eu deveria dizer. Ele parece tão distante, apesar de estar bem em minha frente, que eu não faço a menor ideia de como meu irmão conseguiu ser amigo dele.
- À propósito, Senhorita Amaris, – Hugo continuou falando comigo – John já te avisou sobre as condições de sua matrícula?
- Sim, sim! – Respondi ansiosa, acenando a cabeça freneticamente. A forma séria e praticamente inexpressiva que ele me olha enquanto pergunta faz parecer que eu estou em um interrogatório e que é uma questão de tempo até ele me pegar no flagra.
- Certo… – ele continuou – então você deve estar ciente de que, para evitar falsas acusações de nepotismo, você e John devem ocultar seu parentesco e fingir que não se conhecem. Você deve se dirigir a ele como “Instrutor John” ou “Instrutor Phenis”, se quiser ser mais formal.
Acenei freneticamente mais uma vez, enquanto tentava resistir à vontade de correr até meu irmão e me esconder atrás dele.
Eu pude notar uma leve ruga se formando em sua testa. Fiquei receosa. Teria eu o irritado de alguma forma? Se sim, como?
Entretanto, o que ele fez contrariou minhas expectativas: ele se curvou em minha frente, como um servo que cometeu um erro se curva perante seu mestre, e disse-me:
- Desculpe-me pelo transtorno!
Aquilo era uma cena deverás surpreendente, especialmente para mim, que tinha uma imagem de autoridade vinculada a ele. Erina também compartilhava da mesma imagem que eu, já que estava com uma mão cobrindo a boca. Provavelmente ela queria dizer “Amaris! Você fez esse homem se curvar em sua presença!” Ver um homem de tanto poder curvado me deixou envergonhada, como se eu tivesse recebendo a regalia de outra pessoa. Tudo que eu queria naquele momento era que ele parasse de se curvar.
- E-está tudo bem, tudo bem! Se endireite, por favor!
Aparentemente, Noru foi capaz de compreender o que eu estava sentindo, pois, no momento em que Hugo endireitou sua postura, ela pôs o braço ao redor do pescoço dele, de uma forma que lembrava a uma chave de braço.
- Pô, irmão! Você tá assustando a menina! Olha, até a amiga dela tá assustada! Cê sabe que não precisa ser tão formal, né? – ela o repreendeu, que até abriu a boca para tentar se justificar, mas, antes que ele pudesse falar, sua irmã o interrompeu – Ah, não importa! Esse é o seu jeito, não é? – e ela finalmente soltou seu irmão, dando-lhe tapinhas nas costas – Rapaz, será que o trem chega logo? Tô muito ansiosa!
Com a menção do trem, eu me dei conta de algo: eu não sabia para onde Noru iria. Quando John nos trouxe até a estação, ele só mencionou que iria se despedir dela e nada mais. Infelizmente não dava para eu deduzir baseado na vestimenta dela e nas malas que ela levava, então o melhor a se fazer era perguntar.
- Noru, para onde você vai?
- Aaah, eu vou para fazer o que eu sei de melhor, é claro! – ela respondeu, com o queixo erguido e um sorriso vitorioso – Graças às minhas incríveis habilidades de dança e aos meus esforços, consegui entrar numa trupe de teatro de categoria. Agora, eu tenho que ir até eles. Eles querem me refinar, então eu não tenho tempo a perder.
- O teatro… Que interessante… – Erina acenou em concordância com a cabeça, com o indicador e polegar de uma mão no queixo. Ela exibia um satisfeito, porém discreto, sorriso no rosto. Aquele era rosto de alguém secretamente feliz por saber que não terá “obstáculos” em seu caminho.
Eu, todavia, não podia estar mais feliz por ela. Não foram muitas as vezes que eu tive a oportunidade de interagir com a Noru, mas, mesmo com o pouco tempo, era evidente que ela amava dançar. O John já chegou a descrever a sua dança em uma carta para mim certa vez e ele a descreveu da mesma forma que um fã enfeitiçado descreveria.
- Isso é incrível, Noru! – bati palmas, mostrando o meu apoio – Boa sorte! Deixe-os de queixo caído!
Eu não sei explicar o que aconteceu depois. Em um instante, Noru estava bem na minha frente, no outro, seus braços estavam envoltos em meu corpo, imobilizando-me contra seu dorso. E tudo isso aconteceu antes que eu pudesse piscar! Se John é rápido, Noru é mais rápida ainda!
- Awn, obrigada! Você é uma fofa! – Por mais que Noru estivesse me segurando com a força de um predador, sua voz era amorosa e sincera – Se eu tivesse um irmãozinho, eu com certeza lhe daria como esposo!
- E é por isso que papai e mamãe não tiveram mais filhos depois de você… – Hugo comentou de maneira debochada e John cobriu a boca para disfarçar a risada. Era a primeira vez nesse dia que ele não falou formalmente.
Com o comentário do irmão, Noru me soltou e arfou, ofendida, enquanto levava a mão o centro de seu peito.
- Que audácia! Pra sua informação, eu tenho um ótimo olho para casais!
- Falou a moça que já é mulher feita e nem noivo tem! – John retrucou, o que, para minha surpresa, fez Hugo rir. Erina e eu olhamos-o com deslumbre aquele jovem homem pouco a pouco mostrando sua face perante ao conforto.
Noru, por sua vez, não se deixaria nem John nem seu irmão terem a última palavra. Com o peito estufado, ela declarou:
- Meu coração já está completamente preenchido pela demonologia e pela dança! Não há espaço para mais ninguém, uma pena, então não preciso e nem quero procurar um noivo!
Hugo, entretido pela declaração defensiva de Noru, riu suavemente e foi até sua irmã, colocando a mão em seu ombro:
- Claro, irmã. Como você quiser.
O clima rapidamente ficou mais leve. Agora, Noru, John e Hugo estavam trocando palavras de despedida. Por mais que Hugo tivesse esse ar de poder e autoridade, quando ele estava com sua irmã e com John, ele estava entre seus semelhantes e, por causa disso, seu semblante parecia mais suave. Foi nesse momento que ficou evidente para mim que os três eram amigos. Até mesmo Erina se uniu à despedida e foi até Noru para desejá-la boa sorte. É claro que Erina só fez isso por estar feliz por não ter que “se preocupar com ela”, porém Noru não percebeu – ou nem deu importância – e a agradeceu, apertando suas bochechas e chamando-a de fofa.
Logo, o trem chegou e parou na estação, abrindo suas portas e permitindo que os passageiros desembarcassem. A hora de ir embora havia chegado, então Noru foi e abraçou Hugo e John ao mesmo tempo.
- Se cuidem, vocês dois!
Depois de abraça-lós, ela veio até mim e Erina e repetiu a mesma ação.
- Boa sorte na Academia!
Tendo se despedido de todos, Noru pegou suas malas e foi até o vagão do trem e embarcou, sentando-se em um assento perto da janela. Quando o trem começou a andar, Noru abriu a janela e colocou sua cabeça, parte de seu dorso e um braço para o lado de fora e acenou para nós. Em resposta, acenamos de volta, sem parar, até que a distância tornasse-a incapaz de nos ver.
Vendo ela partir, comecei a recordar da primeira vez que a vi: os seus cabelos eram longos, indo até sua cintura; sua postura reta, com os braços a frente; seus olhos, dourados e quietos, analisando o cenário a sua frente. A impressão que eu tinha dela era diferente. Parecia que eu havia sido transportada para a ilustração de um livro. Ela parecia tão sublime, tão importante que, quando ela se dirigiu até mim pela primeira vez, senti-me tímida. Eu juro que senti um ar destacante nela naquele dia. Um ar semelhante ao de John. Se ele me lembrava a um protagonista, ela me lembrava a garota principal da história, o interesse romântico do protagonista. A eu do passado declarou em seu pensamento com confiança “Essa será minha futura cunhada!”.
Mas, vendo-a agora, vejo que me enganei em meu julgamento inicial. Ela não era a garota quieta e misteriosa que eu havia imaginado. Ela era energética e expressiva. Talvez ela só se mostrou mais quieta no começo porque estava desabituada com o ambiente. Além disso, ela e o John não se tornaram um casal, na verdade, olhando bem, eles funcionam melhor como amigos.
…Uma garota de aparência elegante, mas que na verdade a personalidade é o oposto do que se espera… Neste quesito, eu acho que a Noru e a Erina são muito parecidas. Quem olha pra Erina vê uma jovem rica de porte elegante, não uma garota impulsiva, gastadora e tarada! Por mais que Erina visse a Noru como uma rival no amor – apesar da última não mostrar nenhuma atração por John – ela precisa admitir que ambas são mais parecidas do que pensam. A diferença é que, quando eu conheci Erina, ela não parecia uma dama que saiu de um livro de fantasia. Ela estava usando uma roupa de treinamento e estava suja de suor, terra e sangue de bicho, ou seja, parecia uma criança louca!
De qualquer forma, a expressiva e energética Noru – que antes parecia ser enigmática e misteriosa – havia partido. O que é uma pena, pois eu gostaria de passar mais tempo com ela.
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