Eu abri os olhos.
O cenário é de uma cidade tomada pela batalha. Demônios haviam invadido aquela cidade e iriam tomá-la para si a força. Os civis eram evacuados enquanto os guerreiros enfrentavam os demônios, com espadas, flechas, lanças, pistolas e feitiços poderosos.
E eu estava lá. Por algum motivo, eu estava lá. Eu podia sentir o calor das chamas, o frio do vento gélido dos feitiços de congelamento e o cheiro da pólvora misturada com sangue adentrava meu nariz. Eu também estava lutando contra os demônios e eu estava indo bem. Mesmo cansada, eu ainda tinha forças para continuar. Entretanto, a minha sorte virou de cabeça para baixo quando ela apareceu.
Uma mulher demoníaca. Seus cabelos eram vermelhos como se fossem tingidos pelo vinho tinto e seus olhos, tão vermelhos como uma joia, brilhavam com a ferocidade de uma criatura sanguinária. Eu me lembro da luz refletida da lua batendo contra as costas dela, deixando o seu rosto mais sombrio e destacando o brilho feroz de seus olhos.
Apesar do meu medo, não era a mim que ela estava caçando. Era outra pessoa, mas eu não queria permitir que ela o atacasse. Felizmente, eu fui rápida o bastante para empurrar o alvo para longe de suas garras, porém não fui rápida o suficiente para desviar de seu alcance.
O que veio seguinte foi a sensação de ter as costas perfuradas e rasgadas. Meu corpo começou a exalar o cheiro de sangue. A ferida havia sido grave o suficiente para que eu me rendesse ao cansaço. Caí no chão, sem forças para levantar.
Alguém havia se aproximado de mim e me colocado em seus braços, gritando o meu nome, porém a sua voz soava tão distante. Acho que ele havia falado algo sobre “aguentar firme”, mas eu não tenho confirmar, eu estava perdendo os sentidos. A última coisa que eu me lembro ter ouvido foi o som de uma espada atravessando um corpo e um grito de dor estridente e enfim, apaguei.
………
Abri os olhos mais um vez. Dessa vez, eu estava deitada em uma cama em um vagão de trem. Não havia sangue, nem pólvora, nem fogo, nem mulher demoníaca. Dessa vez, eu estava acordada. Aqui era a realidade.
Suspirando aliviada, eu me levantei, sentando-me na cama. A cabine particular estava da mesma forma que eu lembrava quando eu fui dormir. A diferença era que os raios de sol passavam pelos vidros da janela cuja as cortinas haviam sido abertas. Eu olhei para a outra cama ao meu lado, ela estava vazia e desarrumada. Ou seja, Erina havia acordado antes de mim.
Falando nela, eu escutei o barulho de uma maçaneta se abrindo. Esse barulho vinha de mais à frente, na porta do banheiro do vagão. De lá, saiu uma jovem garota de cabelos loiros e olhos verdes vestida em um roupão branco e enxugando seus cabelos molhados com uma toalha da mesma cor. Essa garota era ninguém mais ninguém menos que Erina Banloros, minha colega de viagem nesse trem e amiga de longa data.
- Eita, bainho bom! – Ela suspirou para si mesma, expressando o quão aquele banho havia revigorado ela – Ah, bom dia, Amaris! – Quando ela notou que eu já estava acordada, me cumprimentou animadamente. Porém sua animação se tornou preocupação no momento em que ela viu minha cara abatida – Que cara é essa?
- Eu tô bem. Foi só um pesadelo.
- E parece que foi dos brabos… – Erina comentou e ficou quieta por alguns segundos, pensando no que fazer agora – Olha, que tal você tomar um banho para esfriar a cabeça? Aí depois você me conta tudo.
Eu acenei a cabeça em concordância e me levantei da cama. Após ter ido pegar uma muda de roupas na minha mala, fui até o banheiro e fechei a porta. Por ser um vagão, o banheiro era pequeno, mas foi estruturado para não parecer claustrofóbico. Ainda dava para sentir o cheiro dos produtos que Erina usou no banho, deixando o cômodo com um fresco de flores refinadas. Eu fui até a pia e lavei meu rosto, levantando minha cabeça para olhar para o espelho logo em seguida. Vendo a névoa que havia se acumulado no vidro, eu instintivamente o limpei com o antebraço, revelando o reflexo de meu rosto um pouco sonolento.
Olhando para o espelho, senti a necessidade de averiguar algo, então tirei a minha camisola e virei um pouco para o lado para poder ver o reflexo das minhas costas. No meu sonho, a mulher demoníaca me atacou por trás, rasgando minhas costas, portanto procurei pela presença de uma grande cicatriz. Como já se podia esperar, não havia ferimento algum em minhas costas, o que significa que há a possibilidade daquele ataque de demônios acontecer em um futuro próximo. Às vezes, confesso que eu sinto tristeza por não ver uma cicatriz nas minhas costas já que isso significaria que o ataque que eu tanto temia já havia acontecido e eu havia sobrevivido.
Tendo que deixar minhas lamentações de lado, eu entrei na banheira e liguei o chuveiro. Apesar de um banho de banheira ser ótimo para relaxar, Erina e eu chegaríamos ao nosso destinatário ainda esta manhã, então uma ducha teria que servir. A água que batia contra meu corpo parecia ter o poder de colocar meus pensamentos em ordem, como se fosse uma poção. Combinado com o cheiro delicioso do sabonete, foi criado uma sensação tão maravilhosa que me dava vontade de ficar tomando banho para sempre.
É claro que eu não podia ficar no chuveiro para sempre, então logo chegou o momento em que eu tirei toda a espuma em meu corpo. Pisando para fora do chuveiro, peguei uma toalha e me enxuguei. Com o corpo seco, peguei o vestido lilás que eu havia trazido e o coloquei. Meu cabelo ainda estava desarrumado, então eu saí do banheiro para ir até a penteadeira.
Sentada a penteadeira, estava Erina, que arrumava seus cabelos em um rabo de cavalo com um laço vermelho feito de um material de alta qualidade cujo o nome não me vem a memória. Ela estava usando um vestido vermelho com rendas brancas e uma fita azul amarrada na cintura. Por debaixo do vestido, ela usava uma anágua que dava volume, porém sem deixar o vestido pesado demais, uma mistura de mobilidade e elegância.
Erina Banloros sempre foi assim. A sua família, os Banloros, são comerciantes famosos que chegaram a fortuna por meio de suas negociações. Mesmo com tantos irmãos e irmãs, nunca lhe faltou nada. Pelo contrário, sempre tinha o bastante para que ela pudesse luxar. E como ela ama luxar! Ela sempre faz questão de viver com estilo e com tudo que lhe tem direito e isso sempre foi evidente em suas caras vestimentas e tomadas de decisão. Pra se ter ideia, esta viagem nesse vagão particular foi ideia dela!
- Amaris! – Erina se virou para me ver e se levantou da cadeira – Senta aqui! Eu quero fazer um penteado em você!
Como eu não tinha motivos ou vontade para recusar – e já sabia que ela insistiria até eu ceder –, eu concordei e me sentei em frente a penteadeira. Justamente por gostar de luxar, Erina também gostava de me deixar bem arrumada. Sempre que ela tem a oportunidade, ela me dá roupas novas e produtos de beleza. Chegou em um ponto em que grande parte do meu guarda-roupa era composto por roupas que ela me deu. Até o vestido que eu estou usando foi dado por ela. É, pode-se dizer que ela me banca. Ser amiga dela era definitivamente algo benéfico. Porém os benefícios iam além do dinheiro, porque havia algo mais importante que nos unia, um segredo que só poderia ficar entre nós…
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