Já era tarde da noite quando todos finalmente tinham comido, estavam limpos e colocando os curativos no lugar. Miko tinha apenas alguns arranhões, Daena precisou de uma faixa na cabeça e Katarina tinha pelo menos duas gazes enroladas em cada braço, principalmente em sua mão direita onde agora faltava metade do dedo anelar. Ela não havia acordado ainda, e descansava como se não dormisse há anos. Já Darka estava quase ileso, pois seus machucados fechavam rápido, exceto a mão queimada pela espada que ainda estava um pouco vermelha e doía.
— Sua mão ainda tá ruim? — Daena observou Darka cutucando a palma da mão. — Aquela ideia de jogar a espada no rio foi bem a sua cara.
— Isso é um elogio? Porque eu acho que foi uma ideia estúpida.
— Exatamente. E não enrola a gaze apertada na queimadura, seu idiota. — Ela ralhou ao ver o amigo tentando fazer um curativo.
Desistindo da gaze, Darka encarou a palma por alguns segundos antes de fechar os olhos e respirar fundo, pensando que se concentrasse um pouco mais do seu poder na mão o ferimento se curasse rápido como os outros. As marcas em sua pele se iluminaram e acumularam a magia na mão queimada, levando quase cinco minutos para começar a recuperar a área afetada.
— Caramba, então você se cura rápido assim? — Jean perguntou, sendo a mais impressionada ali. — Você é imortal ou coisa do tipo? A sua mãe também é imortal? Você herdou isso da grande bruxa?
Darka ainda estava um pouco distraído olhando para a própria mão e respondeu sem olhar para ela.
— Primeiramente, eu não sou imortal, segundamente, Yrina não é minha mãe de verdade.
A resposta fez com que a atenção de todos se virasse para ele. Era bem raro ele falar algo sobre a Yrina que não fosse "eu não quero trazer ela de volta", então era uma afirmação bem curiosa para todo mundo ali.
— Como é que é?
— A Yrina. A grande bruxa, devastadora de mundos, a grande cria do caos, etc... — Darka usou um tom meio sarcástico. — Ela não é minha mãe de verdade.
Sentado na sua mesa de trabalho, Amara lançou um olhar curioso para Darka. Miko tomou a frente de Jean e começou a questionar também.
— Como assim?! Mas você usa magia também! — Miko fez alguma conta mental com os dedos. — E você tem uns 500 anos!
— Olha, primeiro que eu tenho 122 e isso não significa nada. A gente nem é parecido! Cê já leu a descrição dela? Ela tem uns cabelos verdes longos e olhos cor de rubi, sabia?
— Tá, mas... você tem uma relação com ela, não é? — Dessa vez foi Daena quem perguntou.
Darka respirou fundo. Na sua vida passada, Lauren já havia descoberto e conectado quase toda história disponível do jogo, incluindo o passado de seu próprio personagem e as verdadeiras motivações de Yrina. Só faltava mesmo fechar algumas pontas que viriam em atualizações que nunca aconteceriam. Mas além disso, durante as últimas semanas que viveu como Darka, Lauren descobriu que "sincronizou" com a existência dele e viu as memórias perdidas do passado, inclusive sentindo as emoções relacionadas a elas. Memórias felizes e tristes, sombrias e aconchegantes... era como se tivesse acontecido com ela mesma. Nessas memórias, detalhes que o jogo não mostrou preenchiam muitas lacunas, e também respondiam perguntas como aquela.
— Eu não lembro muito bem dos meus pais. Eles morreram quando eu tinha uns 10 anos e fiquei sob os cuidados da Yrina, que era muito amiga deles. Ela não me tratava exatamente como um filho e eu também não via ela como uma mãe, mas ela sempre foi muito gentil e divertida, tipo uma tia estranha e babona, saca? Ela costumava até fazer doces pra mim, que sempre ficavam com uma aparência horrorosa, mas o sabor era incrível. E nas noites que eu sentia falta dos meus pais, ela ficava abraçada comigo até eu parar de chorar. Quando completei 14 anos ela começou a me ensinar as artes mágicas que ela fazia, dizendo que se eu treinasse o bastante ia conseguir até viver pra sempre como ela. Ela falava que eu tinha um talento natural tanto pra manipular magia quanto pra atrair problemas, e ela acertou em cheio, pelo visto.
As pessoas naquela sala nunca imaginariam que a imagem de Yrina era tão deturpada da realidade.
— O que aconteceu realmente quando ela foi selada na montanha? — Daena perguntou, um pouco sentida pela falta da própria mãe. — E o que aconteceu com você também?
O semblante de Darka escureceu. Uma parte dessa lembrança estava no jogo, outra estava em branco e o começo dela estava em sua memória. As emoções nessa lembrança eram bem fortes, e deixavam seu coração pesado.
— Na verdade, aquele dia eu tava morto.
Miko, Daena e Jean se assustaram com a informação. Darka continuou a falar, ignorando a reação deles.
— Yrina tava sendo perseguida por agentes do governo de Ingrena, que queriam secretamente começar uma guerra com as outras províncias e ouviram falar do poder dela. Queriam usar como arma ou coisa assim. Estavam atrás dela desde que chegou em Argrene, antes mesmo da gente se conhecer.
Daena fechou a cara. Tinha estudado sobre as rixas políticas das três províncias e sabia que Ingrena era a mais problemática. Com um governo que beirava a tirania, era comum surgirem boatos de que secretamente causavam problemas internos nas outras províncias para enfraquecê-las e futuramente conquistá-las. Não duvidava que tinha dedo deles em qualquer treta histórica que acontecia.
— Um dia, quando estavam atrás dela na floresta da fronteira de Ingrena com Ninell, eu tentei impedir eles... — Darka continuou. — Se bem que acho que eu só queria servir de distração para ela fugir, não tinha como eu parar uma tropa inteira de soldados. Fui atingido por algum tipo de projétil que dilacerou meu peito, foi assustador.
Darka levantou a camiseta, mostrando uma cicatriz enorme acima do umbigo que estava coberta por vários círculos e escritas. Todas as marcas em seu corpo estavam ligadas a esse símbolo.
— Eu só sei que morri naquela hora. O que aconteceu depois foi que Yrina ficou possessa com isso e devastou uma vila na borda de Ingrena que servia de acampamento para os soldados. Aí eles tentaram se aproveitar disso e atacaram áreas nas fronteiras de Oenith e Ninell, colocando a culpa nela. Mas a verdade é que logo depois de ter atacado a vila em Ingrena, a Yrina tentou me ressuscitar. Pra isso ela precisava de uma fonte de magia natural que existe no mundo, que flui debaixo da terra como um rio de energia mágica. E a nascente dela era bem no meio de Jhotar, a capital de Ninell. Ela andou por dias carregando meu corpo até lá.
Fazia um silêncio sepulcral na oficina, com todos muito atentos a explicação do jovem.
— Então o incidente na praça central de Jhotar... — Daena comentou.
— Sim. Yrina foi abrindo caminho pela cidade, fazendo as pessoas fugirem enquanto a guarda tentava atingir ela. A magia dela era forte o bastante pra erguer um escudo à nossa volta, então não conseguiram nem arranhá-la. Quando começou o processo de extrair a energia da nascente, o Angelus apareceu. Era difícil lutar contra ele enquanto fazia o esquema pra me reviver, mas ela era extremamente poderosa e conseguiu pelo menos iniciar o ritual. O Angelus teve que usar a benção divina dele pra literalmente revirar a cidade inteira e selar a Yrina usando a mesma fonte de energia que ela tava tentando usar pra me ressuscitar. Foi assim que a cidade foi soterrada e virou uma montanha.
Darka estava com o olhar perdido enquanto falava. Seus amigos não deixaram de notar o tom de tristeza na sua voz.
— Enfim, o processo de me reviver deu mais ou menos certo, mas levou um século pra me recuperar. Quando acordei, eu tava numa caverna e sem memória, mas depois de ficar zanzando por aí nos últimos dois anos eu consegui juntar os pontos e lembrei de tudo. Eu não lembro de ter visto a Yrina dentro da caverna comigo, então não sei nem se ela tá lá mesmo.
— Isso... eu nem sei o que dizer. — Jean estava em choque com a maior fofoca que já havia escutado. — Amara, você sabia de tudo isso? Por isso que ficou amigo dele??
— Não, eu fiquei amigo dele porque ao contrário de você, ele me ajudava nas minhas tarefas. — Levantando da cadeira, Amara se espreguiçou. Darka jurou ter visto um sorrisinho escapar da boca dele. — Eu não sei vocês, mas eu tô exausto. Arrumei o beliche lá do depósito pra vocês descansarem, se não se importarem.
— Eu me importo. — Jean levantou também. — Quero dormir no seu sofá-cama.
— Que eu saiba você tem casa.
Jean fez um biquinho e foi em direção à porta de saída, dizendo que voltaria amanhã. Estava repassando mentalmente tudo que havia ouvido para espalhar no dia seguinte para quem quisesse acreditar. Miko cutucava Daena dizendo "eu sabia, eu sabia!", e a garota apenas concordava, um pouco envergonhada. Os dois se dirigiram para o depósito, seguidos por Darka, mas ele foi interrompido por Amara segurando seu braço. O toque repentino do garoto o assustou, mas ele manteve a calma.
— Amara?
— Precisamos conversar.
Desde que se encontraram, Darka estava completamente sem saber o que fazer ou dizer. Ao mesmo tempo que sentia que conhecia Amara, também parecia que nunca tinha o visto na vida.
— Você sabe quem são aqueles dois que estavam em Caadis? Os que explodiram uma rua.
A pergunta pegou Darka de surpresa. Esperava que a conversa fosse sobre o porquê de ele ter parado de visitá-lo ou coisa do tipo.
— Você tá falando dos gêmeos?? Você viu eles?!
— Miko me contou sobre eles quando fomos atrás de você. Que estão tentando te prejudicar ou coisa assim.
— Sim... Aparentemente foram eles quem manipularam tudo pra reviver a Yrina nos últimos anos. Eu fui só o bode expiatório.
Amara ficou pensativo por alguns instantes, deixando-o nervoso. Darka tentou pensar em algo para falar, mas nem teve tempo.
— Você disse que não quer ressuscitar a Yrina. Por quê?
— Eu... ué, porque... — Por mais que tentasse explicar, Darka não conseguia pensar num motivo simples.
Desde que acordou naquele mundo, Lauren só queria ver Amara com medo de que nunca mais tivesse outra chance como aquela. A história de Yrina era apenas algo imposto a seu personagem que ela tinha todo o direito de ignorar, mas ser confrontada agora por Amara colocava todo um cenário e os próprios sentimentos de Darka a se considerar. Ela não estava mais jogando um jogo, ela estava vivendo o mundo do jogo, e ignorar a quest principal para completar uma side quest já começava a mostrar as consequências. Pensar que o que sentiu naquelas memórias era seu agora, não só de seu personagem, fez a culpa por ter sido egoísta a maior parte do tempo começar a aparecer.
— Darka?
— Porque eu não me importo com isso. Ou pelo menos não me importava, até você fazer parecer que é algo importante... — Ele se encolheu. — Eu só queria te ver pessoalmente.
— Me ver? — Dessa vez, Amara é quem pareceu surpreso.
— Sim. Você talvez não tenha ideia, mas é uma pessoa muito importante pra mim. — Darka sorriu, um pouco sem graça. — Mais importante até que a Yrina.
Encarando o amigo com certa curiosidade por alguns segundos, Amara segurou o rosto de Darka com as duas mãos. Ele imediatamente ficou nervoso com o gesto do garoto, e nem conseguiu se mexer.
— Amara? O que...
— Lauren...?
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