A oficina estava praticamente do mesmo jeito que Lauren lembrava, exceto apenas por algumas peças e engenhocas novas para conserto na mesa de trabalho atrás do balcão onde atendia os clientes. Uma fila de engrenagens pendia do teto acima da mesa, estantes com todo tipo de ferramentas ornavam as paredes e um ventilador de teto girava preguiçosamente apenas para manter o ar circulando. Em um dos cantos, uma porta que levava ao resto da casa de Amara estava aberta. Mas se tinha algo de diferente, era o fato daquilo ser real e palpável. Parecia que finalmente estar ali fazia com que a grande ficha caísse para a ex-jogadora de Red Ocean Online. Ela havia cumprido seu objetivo.
Amara havia ido buscar curativos enquanto Jean ajudava Daena a colocar Katarina, que ainda estava desacordada, deitada na cama do mecânico em outro quarto. Darka observava o recinto pensando no que faria agora que encontrou o amigo, aliviado que pelo menos ele não o odiava e isso já era um grande avanço.
— Darka? — Miko puxou a capa do amigo, sentindo certa preocupação em vê-lo tão aéreo. — Ainda está doendo?
— O quê..? Não, não, eu tô bem.
— É claro que ele tá bem, Miko. — Daena resmungou, voltando do quarto. — Quem bateu a cabeça foi eu, você devia perguntar se EU estou bem.
— Mas você ficou resmungando o caminho todo sobre ter salvado o Darka, eu achei que estava tudo bem com você.
— Mas eu salvei mesmo! Se não fosse eu aparecer para dizer como parar a Katarina, ele nem estaria aqui agora.
— Acho que tá todo mundo bem, sim. — Darka interrompeu. — Um banho e vai tá todo mundo novo em folha.
— Tá dizendo que eu tô fedendo? — Daena bateu o pé.
— Eu não disse isso, Daena. Miko, para de cheirar suas roupas, você também não tá fedendo.
Amara voltou com a caixa de primeiros socorros e algumas toalhas, a tempo de ouvir a conversa sobre banho. Aquela atmosfera descontraída colocou um sorriso em seu rosto.
— Acho que o banho é mais pra lavar a alma. Seja lá o que foi aquilo em Caadis, vocês devem estar exaustos. Aqui. — Ele entregou toalhas para Daena e Miko. — Segunda porta à esquerda. Tem uma secadora para as roupas de vocês lá também.
Observando os dois fazerem corrida para ver quem chegava primeiro, Darka sentiu uma cutucada de Amara.
— Você fez bons amigos.
O rosto de Darka ficou levemente corado. Falar pessoalmente com ele ainda era algo mágico e novo, e ia demorar um pouco para se acostumar com isso. Jean alternou o olhar entre o Impronunciável e Amara, como se estivesse assistindo uma cena de sua novela favorita.
— Então, seu nome é Darka... — Ela tentou puxar assunto. — Meu nome é Jean, se quiser saber. O Amara falou muito de você, e só coisa boa. É verdade que você come filhotes de morcego para se manter jovem?
Amara revirou os olhos quando percebeu que o interrogatório iria começar.
— Jean, agora não.
— Morcegos?! — Darka estava perplexo. — É claro que não! Morcego pode transmitir raiva!
— Mas se não transmitisse, você comeria, então?!
— Amara... Foi você que disse isso pra ela?! — Darka pareceu magoado.
— Óbvio que não! E que diabos de assunto é esse?
— Espera... cê disse que o Amara falava coisas boas de mim? — Um sorrisinho bobo surgiu na cara dele.
Sentindo o rosto ficar vermelho, o garoto apenas grunhiu e jogou a última toalha na cara de Darka.
— Já chega! Jean, cai fora. — Amara empurrou a mulher em direção à porta, irritado.
— Ai, ai! Tá bom, eu fico quieta! Para de me empurrar! Eu só queria quebrar esse climão... Seja lá o que houve, vocês estão muito tensos.
— Tem formas melhores de quebrar climão do que perguntar se alguém come morcego. — Ele adorava a amiga fofoqueira, mas sentia que noção não era o forte dela.
— Posso perguntar outras coisas então? Se não for sobre comer morcego?
— Não.
— Aff, Amara, quando ele não tá aqui você fica chato, quando ele tá aqui você fica chato também, assim não dá.
A frase pegou Darka de surpresa, já que aquilo significava que de alguma forma Amara tinha sim notado sua ausência. Fazendo algumas contas de cabeça, se o dia passava ali como passava no jogo, já fazia quase um mês que ele não visitava o amigo. Para quem não passava mais de 3 dias sem dar as caras, era realmente muito tempo.
— Tá tudo bem, eu não me importo de responder. Desculpa ter passado tanto tempo sem vir.
— Nossa, Darka, esse aqui virou um velho rabugento depois que você parou de visitar ele. — Jean se apressou em entrar no assunto. — Ele ficou preocupado por exatos cinco dias antes de surtar e começar a dizer que nem era amigo seu.
— JEAN!
— Ah... — Darka sentiu uma pontada no peito.
— Darka, não foi exatamente assim! Eu tava só...
— Sóbrio, isso mesmo. — A garota interrompeu. — Mas quer saber de uma coisa engraçada? O Amara quando bebe fica muito mais honesto, e ele disse que você era um cara legal e incompreendido.
Àquela altura o mecânico só escondia a cara nas mãos tentando segurar o pouco de dignidade que sobrou. Evitou olhar para Darka, escondendo seu rosto vermelho, mas ainda queria explicar melhor o que aconteceu.
— Não foi nada disso... Eu só achei que se as pessoas vissem que somos muito amigos, talvez entendessem que eu sou algum tipo de cúmplice seu e acabasse dando problema pra mim.
Darka baixou a cabeça, refletindo um pouco. A lógica de Amara fazia todo sentido, e sinceramente não se sentia mal por aquilo. Estava até aliviado por ver que ele se preocupou com a própria segurança em vez de se arriscar defendendo o grande vilão da história.
— Tá tudo bem! Eu realmente entendo.
Antes que Jean abrisse a boca de novo, Amara se apressou em empurrá-la porta afora, entregando uma pequena bolsinha com draks para ela.
— Tá todo mundo com fome e não fiz mercado, vai lá comprar alguma coisa pra gente comer, vai!
— Ow ow, mas eu não terminei de...
— Vai logo! — Amara bateu a porta na cara da amiga e virou para Darka. — E você... tem outro banheiro no final do corredor, pode usar.
— Amara?
— O que foi?
— Obrigado. Tipo, por se preocupar. Minha mãe falava que é sempre melhor falar um "obrigado" em vez de "desculpa", então agradeço por ainda ser meu amigo.
Com um longo suspiro, Amara relaxou. Tinha ficado com receio de que a fofoca de Jean tivesse realmente magoado Darka, mas não parecia ser o caso.
— Eu que agradeço... por você ter voltado.
✰★✰★✰
Dia e Noite seguiam na direção norte, indo pela estrada que levava à Montanha de Jhotar. A chuva havia ficado para trás em Caadis, mas o céu ainda ameaçava regar as terras de Ninell pelas próximas horas. O lampião de Dia iluminava o caminho feito de um pavimento bem desgastado, já que fazia mais de um século que aquela estrada levava a antiga capital da província.
— Eu achei que ia derrubar a cidade toda, mas só ficou um buraquinho. — Dia reclamava, fazendo bico. — Isso nem é tão assustador assim.
— Talvez tenha sido melhor desse jeito. O lorde precisava de chão para lutar com a paladina.
Noite andava na frente enquanto suas mãos se ocupavam com algo. Os pedaços da máscara quebrada de Dia eram habilmente colados de volta pelos dedos ágeis do menino, que consertava o item com precisão e firmeza. Sua irmã deu um pulinho de alegria quando ele devolveu a máscara quase intacta para ela.
— Obrigada, Noite! Ficou tão perfeita quanto no dia que a Lady Yrina me deu. — Dia colocou a máscara. — Vamos direto para Jhotar?
— Ainda não. Precisamos que o lorde chegue lá primeiro. Teremos que aguardar para montar o ato final.
— Será que ele vai até lá mesmo? Acho que vamos acabar tendo que atraí-lo de novo com alguma missão.
— Isso não funcionaria mais, ele já sabe sobre nós. Mas não subestime a capacidade dele, eu sei que em algum momento vamos encontrá-lo lá.
Noite parou, seguido por Dia. Uma sensação incômoda subia pelo seu pescoço, como se algo estivesse à espreita, não à sua volta, mas dentro de si. Era uma sensação que aparecia de vez em quando, mas nos últimos meses tinha aumentado a frequência e ele se perguntava se Dia sentia o mesmo. Por baixo da máscara, ele olhou com carinho para a irmã, que apenas sorria de volta. Pensou em dizer algo sobre aquilo, mas não queria preocupá-la e distraí-la de seus objetivos.
Ambos pararam para descansar em uma pequena estrutura na beira da estrada que parecia uma antiga cabana, só que agora sem paredes e que provavelmente servia de abrigo para viajantes em outros tempos.
— Quando milorde conseguir trazer a Lady Yrina de volta, vou pedir para voltarmos para Fearaniar.
— Pro continente do oeste? Mas a gente nem sabe como era lá! — Dia deitou, apoiando a cabeça no colo do irmão. — Eu não consigo lembrar de nada desde que a Lady Yrina nos trouxe com ela para Argrene.
— Eu também não lembro, mas acho que se viemos de lá, deve ser o nosso lugar. Você nunca teve essa sensação que que a gente não pertence a essas terras?
Dia ficou pensativa, e concordou com a cabeça. Na verdade, ela sentia as vezes que não pertencia a lugar nenhum. Talvez se um dia visse as famigeradas Terras do Oeste essa sensação sumisse, mas até lá ela sabia que era ao lado do irmão que deveria estar.
— Noite, eu estive pensando em uma coisa... Todo o nosso trabalho em fazer o lorde ser temido e respeitado... Será que vai funcionar mesmo?
— É claro que sim, já está funcionando. Se as pessoas o temerem e virem o quanto é poderoso, nunca mais vão tentar machucar ele ou a Mestra.
Noite observou a silhueta da Montanha de Jhotar ao longe, iluminada pela luz lúgubre que restou do pôr do sol atrás dela, não conseguindo conter a animação que surgia com a possibilidade de já estarem junto de Yrina em alguns dias.
Em algum lugar da sua mente, o que quer que estivesse espreitando lhe causou um calafrio.
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