A primeira coisa que Amara notou quando viu Darka foi que ele estava uma lástima. Além de estar encharcado e cheio de machucados, tinha uma profunda marca roxa no pescoço onde Katarina o havia agarrado. Já faziam algumas semanas que ele não visitava sua oficina, e esse tempo todo Amara achou que não voltaria mais.
— Você tá péssimo.
Por algum motivo, o jovem mecânico queria sentir raiva, mas mesmo que juntasse toda sua determinação para brigar com Darka, qualquer vestígio de irritação desapareceu assim que a expressão de surpresa do Impronunciável se transformou numa careta de choro.
— Amara, é você?! — Darka começou a chorar, encolhendo os ombros e tentando limpar o rosto. — Caramba, você existe mesmo! Você tá aqui e tá bem e... eu queria tanto te ver...
Alternando o olhar entre os dois, Miko fez uma cara de reprovação para Amara.
— Senhor Amara, você fez o Darka chorar!
— Eu?! Mas acabei de chegar!
Como se lembrasse de algo, Miko se pôs na frente do amigo em posição de defesa.
— O Darka é uma pessoa muito legal e gentil, e ele não é malvado, nem feio! Ele é meu amigo e sempre me ajudou, ele disse que gosta muito de você e não quer que você brigue com ele!
Fazendo um joinha na direção de Darka, Miko só recebeu um olhar surpreso como resposta.
— E ele também é engraçado e gosta de reclamar e fala muito palavrão, mas ele só é barulhento e não faz nada, né, Daena?
— Não me mete nesse assunto, não! — A menina, que ainda observava confusa a cena, apenas balançou a cabeça.
— E se você achar que ele é uma pessoa malvada eu me vejo na obrigação de... de morder você!
Um silêncio pairou por alguns segundos depois da pequena revolta do luziwurmo. Darka, ainda com algumas lágrimas escorrendo em seu rosto, olhou para Amara tentando ver qual seria sua reação. Foi muito gentil da parte de Miko defendê-lo, significando que toda a preocupação que ele teve durante a viagem não passou despercebida pela pequena criatura.
— Tá... — Amara deu uma risada, amenizando a situação. — Não precisa me morder, eu devo ter gosto de graxa.
— E-Eu tava indo te ver, mas aconteceram algumas coisas... — Darka limpou o rosto com as mãos, tentando retomar a compostura. — Foi uma semana difícil.
— Percebi. — Amara se aproximou, encarando o jovem que agora parecia envergonhado. — Você tá... diferente.
Um frio subiu pela sua espinha. Já fazia algum tempo que Lauren não pensava mais em si como uma consciência transmigrada, e as palavras de Amara fizeram algumas preocupações, que haviam sido ignoradas desde que acordou como Darka, voltassem à tona. Não estava em seus planos explicar para ninguém ali que "Darka" era apenas um avatar, que todos ali eram personagens e que a existência daquele mundo em si era na forma de um jogo em outra realidade paralela. Lá no fundo, Lauren tinha medo de que estar autoconsciente disso poderia fazer com que ela acordasse, como se tudo aquilo fosse um sonho frágil.
— Darka? — Amara tirou ele de seus pensamentos. — Você não parece bem, é melhor sairmos daqui.
— Tá bom. — Ele limpou o rosto, ainda parecendo meio perdido em seus pensamentos.
Daena olhava incrédula para o amigo em prantos, pensando que nunca imaginaria ver ele daquele jeito. Seja lá quem fosse o tal Amara, parecia ser importante a ponto de fazer ele virar um bebê chorão. Um sutil espasmo do corpo de Katarina tirou sua atenção do reencontro.
✰★✰★✰
A cabeça de Katarina doía, seu corpo estava pesado e um gosto amargo incomodava sua boca, mas o que mais lhe incomodava era sentir que estava desacordada. Ela pensou estar tendo um sonho lúcido, mas não lembrava de sentir dores durante sonhos.
À sua volta havia um denso bosque em um dia nublado, tão calmo quanto um lago no inverno. Não havia som de animais, insetos e nem mesmo vento, e a monotonia era quebrada apenas pela presença de alguém a alguns metros de distância. Uma figura parecia estar sentada de costas para ela, mas ciente de sua presença. Seu corpo ligeiramente voluptuoso era gracioso e seu vestido lembrava Katarina do povo que vivia entre as árvores das florestas ditas como encantadas. Uma longa trança de cabelo marrom e vermelho estava enrolada em um de seus braços, cortada na mesma altura do cabelo da própria paladina.
— Sinto muito. — A voz da pessoa estava cheia de remorso. — Nosso contrato se encerra aqui.
— Tharia... ? Você é a deusa Tharia?!
Katarina se ajoelhou depressa, abaixando a cabeça. Quase imediatamente sentiu uma mão acariciar seu cabelo, e levantou o olhar para ver Tharia sorrindo para ela. Seus olhos estavam marejados e seu rosto molhado de lágrimas.
— Eu acabei me deixando levar. Realmente sinto muito. Ela tinha razão, eu me deixo levar fácil demais.
— Ela?
— Yrienna. Minha irmã de juramento. Minha amante e amiga.
Katarina não estava entendendo o que aquilo significava. Sentia que se pensasse um pouco até entenderia, mas parecia não querer saber sobre o que se tratava. Yrienna? Seria a Yrina?
— A bruxa... era sua companheira?!
— Está livre, Katarina Aurea. — Tharia se virou para ir embora.
— Não... Espere, minha deusa! Eu não mereço uma resposta? Depois de tudo isso?!
Tharia suspirou e se abaixou, segurando as mãos de Katarina. As lágrimas voltaram, e sua voz quase falhava.
— Sim. Yrienna... era minha amada. Mas ela se apaixonou pelo mundo, e por ele resolveu viver. Ela me deixou. Eu fiquei... eu ainda estou com tanta raiva... — Uma leve aura vermelha se escapou da figura da deusa, mas logo se dissipou. — Mas... sou só eu...
Katarina viu Tharia se encolher, como se tentasse sumir. Agora entendia que grande parte do ódio e amargura que sentia não era exatamente só sua, mas sim o reflexo do poder da divindade que habitava seu corpo. Sentir seus próprios sentimentos era algo novo e estranho, ainda mais porque sentia um tipo de decepção crescendo.
— Eu sinto muito... — Katarina comentou. — Mas, o que isso significa?
— Eu te usei. Usei teu antepassado também, Ângelo, e muitos antes dele. Quando Yrienna me deixou, em meu ódio contei ao o povo que havia uma divindade caída andando pelo mundo, perigosa e destrutiva. Vi a chance de vingar meu coração partido ao fazer isso, e ofereci meu poder para quem pudesse destruí-la. Tomei almas para descarregar minha raiva, já que como iguais, sou incapaz de feri-la sozinha. Eu pensei que apagar Yrienna da existência apagaria também a dor, mas... fui tola.
— Isso... Eu não sei... — Katarina parecia confusa. Suas crenças estavam em cheque ali, mas ela não deixava de sentir que não havia nada de errado no que Tharia fez. Talvez sentir o que ela sentiu por tanto tempo tinha feito a paladina se identificar demais com a moral da deusa. — Eu não consigo sentir raiva de vossa graça.
Tharia se viu surpresa com a resposta de Katarina. Esperava sentimentos de raiva e vingança também, mas apenas recebeu compreensão. Aquilo doeu, pois já era a segunda vez que não deram a ela o ódio que ela desejava receber.
— Eu já cansei disso tudo. Como eu disse, apenas eu fiquei presa a esse sentimento. Yrienna nunca se incomodou o bastante para se importar. — Tharia levantou. — Te deixo minha benção, como um pedido de desculpas.
Com um sutil beijo na testa de Katarina, a deusa devolveu a alma da mulher. Foi uma sensação estranha ter aquilo de volta, como reencontrar algo perdido há tanto tempo que já nem se lembra mais de como era tê-lo.
— Espere! Vossa graça, onde vai?
— Embora.
— Para onde?
— És uma mulher incrível, Katarina. Forte, honesta, confiante. Não deixe o mundo te dizer o que fazer.
Katarina viu a imagem de Tharia começar a se esvair, e era como se junto com ela se fosse um grande pedaço seu também. Sentiu a raiva, amargura e vingança diminuíram, mas ainda estavam lá. Antes que a deusa desaparecesse completamente, Katarina lembrou de perguntar algo.
— Como aquele garoto sabia seu nome?
— Eu também gostaria de saber. — Tharia sorriu tristemente. — Não uso este nome há muitas eras, já que Yrienna me chamava apenas de Tharia. Adeus, Katarina.
A mão da paladina se estendeu tentando alcançar a deusa, mas encontrou um vazio. Perder Tharia era como ter perdido a si mesma, já que Katarina nem sequer lembrava de como era sua vida antes da divindade habitar seu corpo. Ela foi condicionada a acreditar que sua própria existência era resumida aquela tarefa de proteger o mundo, e não ser mais quem ela foi feita para ser era um choque e tanto.
Dessa vez, foi a voz chorosa de Katarina que ressoou pelo bosque.
— Mas... e agora?
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— Ué?
Já tarde da noite, Jean observava o estranho grupo se aproximar da oficina, onde estava esperando Amara voltar de Caadis com suprimentos novos. Além do mecânico, estavam um luziwurmo, uma garota ruiva aparentemente da sua idade, um rapaz desgrenhado e uma mulher desacordada nas costas dele.
— Eu pensei que você ia trazer algumas peças ou ferramentas, não um... espera, isso aí é o Impronunciável?!
— E eu achei que você tinha ido pra casa. — Amara tentava enxotar a amiga para fora da porta de sua oficina. — O serviço de hoje já acabou, vaza.
A garota bateu o pé, se recusando a dar um passo sequer, e olhou no fundo dos olhos de Amara.
— Você tá com a maior notícia do século aí atrás e tem a audácia de tentar me deixar de fora? Você me odeia tanto assim?
Amara suspirou, abrindo a porta e empurrando ela para dentro antes que começassem uma discussão. Fazendo sinal para o restante do grupo entrar, ele checou a rua praticamente deserta e confirmou que a chuva daquela tarde havia feito todo mundo ficar em casa. Ao fechar a porta, parou por alguns segundos com a mão na maçaneta, juntando coragem para lidar com o problema que sabia que teria aquela noite.
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