— Thariaknar!
Amara gritou na direção de Katarina, e a reação dela foi imediata. Congelada no meio do caminho até Darka, ela se virou para encarar quem havia gritado aquele nome. Àquela altura seus olhos não eram nada além de dois pontos brilhantes como rubis, que agora varriam os escombros procurando o dono da voz. Mas Amara havia saído correndo com Miko imediatamente após perceber que conseguiu distraí-la.
— Quem... Como sabes meu nome, verme?! Apareça!!
Aproveitando a distração dela, o instinto de Darka agiu de novo e as correntes de sua magia saíram do chão, se enrolando no corpo da mulher e imobilizando-a. Dessa vez, os elos não foram desintegrados pela energia divina, o que fez ele perceber que realmente havia algo de errado com ela. Graças ao barulho da chuva e o fluxo de adrenalina, o jovem não tinha ouvido a voz de Amara e nem notou que foi o que distraiu a sua rival.
— Mas o que foi que te deu, Katarina?! — Darka foi se aproximando com cautela, parando a alguns metros dela. — Ficou louca de vez? Você tá destruindo uma cidade! Você não devia tá protegendo ela?? O que foi que eu te fiz pra chegar nesse ponto?!
Katarina se contorcia, tentando se livrar das correntes. Mas sempre que arrebentava uma, outras duas surgiam no lugar.
— Destruirei mundos para te exterminar se for preciso! Maldito sangue do Oeste! Descendente daquela deusa traidora imunda que preferiu a terra ao céu!
— Do que você tá falando?
Lágrimas escorriam no rosto de Katarina, somente visíveis porque eram vermelho-sangue. Darka ficou mais confuso e surpreso ainda, sem entender a reação dela.
— Você... você não é a Katarina...
— Darka! Fica longe dela! — Daena havia recuperado a consciência e corria em direção a ele, quase tropeçando.
Katarina caiu de joelhos, aparentemente desacordada, mas a energia vermelha em volta dela ainda estava lá. A chuva havia diminuído, como se espelhasse o temperamento da paladina.
— Cê tá bem, Daena? Se machucou muito? — Darka observava a menina, procurando algum ferimento aparente. — Não quebrou nenhuma costela também, né?
— Tá achando que sou de porcelana que nem você, seu frouxo? Eu só bati a cabeça.
Daena observou a energia em volta de sua tia, preocupada. Puxou Darka pelo braço para se afastarem um pouco mais.
— Daena, você sabe o que tá acontecendo? A Katarina nem parece ela mesma.
— E não é ela. É a Tharia, a tal da deusa para quem ela fez o juramento de cavaleira.
— Mas hein?
Darka nunca tinha prestado muita atenção na história de origem de Katarina pelo simples fato de ter achado extremamente chata. Ela era a típica paladina de jogos de RPG, que ganhou poderes em umpacto com uma deusa e jurou destruir o mal. A única coisa que Lauren lembravaera que a dita divindade vinha do mesmo lugar que Yrina, Fearaniar. Perceber que tinha mais coisas sobre a história do jogo que ele não sabia fez surgir um estranho frio em seu estômago, como se aquele mundo não fosse mais tão familiar quanto deveria.
— Minha mãe me contou sobre isso uma vez. — Daena continuou. — Ela foi junto para as terras além-mar do Oeste quando a Katarina foi fazer o pacto. A mamãe disse que o povo do local onde a deusa vivia avisou sobre seu poder ser instável, e que se a Katarina falhasse em manter o controle, a própria Tharia assumiria o corpo dela.
— Eu nunca tinha ouvido falar disso... — Darka parecia chocado, e observou que a energia vermelha de Katarina parecia aumentar aos poucos.
— Não é só isso. Parece que Tharia tem uma rixa pessoal com a Yrina...
Ao ouvir aquele nome, a reação do ser que estava preso foi imediata, e a mulher começou a se debater de novo.
— Tu me deixaste! Me abandonaste! Soltaste minha mão! Eras tudo para mim! Eu não era nada para ti?!
O estalo de todas as correntes arrebentando ao mesmo tempo assustou os dois, que viram Katarina se contorcer como se sentisse dores horríveis. Ela apertava a própria cabeça enquanto murmurava aquelas palavras repetidamente. A chuva havia voltado, agora com o vento mais forte fazendo a aura maligna da paladina crescer e rodopiar à sua volta enquanto levantava.
Em um movimento rápido, Katarina atravessou correndo a distância entre eles e agarrou o pescoço de Darka, puxando-o para cima na direção do parapeito da ponte. Os dois agora levitavam vários metros acima do rio, enquanto estacas feitas da energia escarlate se formavam em volta deles, apontando na direção do garoto.
— Katarina... — Darka tentava falar, mas o aperto dela o sufocava. — Eu não sou...
— ... Me ajuda. — A voz dela saiu baixa, quase sussurrada. Darka percebeu que desta vez não era Tharia falando.
— Darka, a trança! — Daena gritava o mais alto que conseguia. — O cabelo é o laço dela com a deusa!
Já quase sem fôlego no aperto firme da paladina, Darka juntou suas forças para agarrar a longa trança que balançava na tempestade. Assim que conseguiu fechar os dedos no cabelo dela, ele se concentrou em ativar sua magia e uma enorme labareda azul saiu das marcas de seu braço, envolvendo os fios dourados.
Mesmo encharcado com a chuva, o cabelo dela derreteu com facilidade na mão de Darka, acompanhado de um longo grito de dor. Ele percebeu que ela afrouxou a mão que estava em seu pescoço e os dois começaram a cair em direção a água.
"Muito alto, muito alto, muito alto!!"
Ele sabia que se ela caísse desacordada daquela altura muito provavelmente se afogaria, e rapidamente a puxou num abraço para amortecer a queda na água fria. O impacto foi doloroso, e o próprio Darka não sabia se ia conseguir se salvar também.
— Tia! Darka!
Daena tentava enxergar os dois na correnteza, desesperada a cada minuto. Até que finalmente avistou o cabelo branco de Darka próximo a um pequeno píer abaixo da ponte. Ela correu até eles para ajudá-los a saírem da água.
— Vocês estão bem?! — A menina se apressou em puxar a mulher desacordada dos braços do amigo, enquanto ele mesmo tentava subir no píer.
— Eu não... — Darka ofegou, tentando recuperar o fôlego. — Eu não vou nem responder isso, Daena...
— Desculpa, eu só...
Um forte estrondo assustou os dois. A terra tremeu e algo desmoronando pôde ser ouvido ao longe. Daena olhou para Darka para confirmar que não tinha sido a única a ouvir aquilo.
— Mas o que foi isso?! Veio de dentro da cidade!
Darka apenas abaixou a cabeça, derrotado e cansado.
— Ah, isso? — Ele caiu de costas, exausto. — É só a próxima catástrofe que vai entrar na minha conta.
✰★✰★✰
Amara e Miko observavam a grande cratera que se formou no meio da rua. Eles estavam prestes a fugir por uma das saídas da cidade quando ouviram o estrondo, e Miko insistiu em voltar para ver se não era Darka em apuros de novo. Amara não queria deixar a criança sozinha, então não teve muita escolha a não ser ir junto.
O buraco no meio da rua principal era enorme, e no fundo dele estava parte da estrutura da galeria destruída, escombros de um edifício próximo que desabou junto e algumas pedras marcadas com riscos que emanavam uma luz azulada quase imperceptível.
— Eles conseguiram... — Miko se abaixou na beira para ver o estrago. — O Darka vai ficar muito chateado.
— Eles? Eles quem?
Um movimento chamou a atenção dos dois para o outro lado da borda da cratera, onde Dia e Noite também observavam a destruição que causaram, alheios a Miko e Amara. Depois de alguns segundos, os gêmeos apenas se viraram e saíram correndo, sem notarem que Amara não tirou os olhos deles até desaparecerem cidade adentro.
— Ei, seus idiotas! — Miko gritou. — O Darka vai... vai arrebentar a cara de vocês! Né, senhor Amara?
Miko notou que os olhos dourados do garoto ao seu lado nem piscavam, como se tivesse visto um fantasma ou algo do tipo.
— Senhor Amara? — Ile puxou a mão do garoto, tirando-o do aparente transe. — Senhor Amara, está tudo bem?
— Si... Sim, desculpa, eu só... — Ele parou de novo, parecendo ter ligado os pontos. — Espera, foram aqueles dois que fizeram isso?!
— Sim, parece que estão tentando manchar a reputação do Darka já faz algum tempo. Foram eles que fizeram as coisas ruins e colocaram a culpa nele.
Amara pareceu aflito. Quando ajudou Miko mais cedo, não tinha prestado muita atenção na pessoa que havia atacado, mas agora ao vê-la ali junto ao irmão pareceu ter deixado o jovem preocupado com algo.
— Vamos voltar até o Darka.
A expressão de Miko se iluminou com animação e ile se pôs a correr na frente em direção ao último lugar onde tinha visto o amigo. Amara correu atrás sem questionar nada, ainda pensativo.
Ambos chegaram na rua do mercado, tentando enxergar Darka no meio dos escombros. A luta feroz que tinha acontecido ali causou um grande estrago, mas a ponte milagrosamente ainda estava de pé. A chuva agora havia parado completamente, e algumas pessoas já estavam rondando o que sobrou tentando avaliar o prejuízo.
— Senhor Darka! — Miko chamava, sua voz denunciando o nervosismo. — Senhor Darka, você morreu? Onde você tá?
Daena ainda estava sentada, juntando forças para tirar sua tia desacordada do pequeno píer onde eles estavam, enquanto Darka parecia desmaiado de cansaço ao seu lado. A voz de Miko chamando por ele chegou até a menina, que respondeu pelo amigo caído no chão.
— Miko! Estamos aqui embaixo! Embaixo da ponte!
Ela ouviu barulho dos passos do luziwurmo se aproximando, pisando nas poças d'água enquanto corria até eles. Ao avista-los pela murada, Miko se apressou em saltar os três metros de altura até o píer sem nenhum cuidado, aterrissando de mal jeito, tropeçando e caindo em cheio na barriga de Darka.
— AI... C*RALHO! — Darka perdeu o fôlego, finalmente se levantando. — Tá querendo terminar o serviço da Katarina, Miko?!
— Darka! Você não morreu! Você tá inteiro!
— Se depender de vocês, não por muito tempo!
— Deixa de ser reclamão, idiota. — Daena falou enquanto tirava a armadura de Katarina, que ainda estava desacordada. — Ninguém aqui tentou te matar mais de três vezes. Talvez minha tia, mas ela é doida.
Apesar do susto, ele logo se acalmou ao sentir Miko esfregando o rosto contra o seu peito. Darka sabia que era uma forma de mostrar alívio por estarem juntos de novo, então apenas acariciou a cabeça do luziwurmo e suspirou.
— Eu tô bem, mas estaria melhor se você não tivesse me esmagado pulando lá de cima.
— Desculpe! Mas é que eu e ele estávamos procurando você em todo lugar e fiquei com medo...
— "Ele"? — Darka perguntou. — Ele quem?
O barulho de mais alguém correndo na direção deles chamou a atenção dos três, e uma sombra também pulou o muro que dava para o píer. Ao contrário de Miko, Amara aterrissou com uma firmeza que fez parecer quase um pouso de super herói.
— Ele! — Miko exclamou apontando para o garoto recém-chegado. — Ah! Esqueci de falar, eu encontrei o senhor A...
Darka ficou de pé num instante, sem tirar os olhos do jovem na sua frente. Sua voz saiu quase falhando.
— ... Amara?!
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