Miko e Amara corriam pelas vielas, indo em direção à uma das saídas da cidade. Quando viu para onde estavam se dirigindo, Miko parou, soltando a mão de Amara que ainda lhe segurava.
— O que foi? — Amara parou também. — Vamos logo!
— Não não, não é por aí! É pro lado do mercado!
— Hein? Mas a saída mais próxima é por aqui!
— Eu não posso sair! Ainda preciso ajudar meu amigo!
Miko não tinha contado para Amara sobre Darka querer encontrá-lo, em parte porque não tinha certeza se era o mesmo Amara e também porque o momento caótico da fuga não permitiu. Ile decidiu deixar para lá por enquanto, já que a prioridade era outra. Sem esperar uma resposta do garoto, Miko apenas se virou e foi em direção à outra rua, mas Amara foi mais rápido e segurou a criança por um dos chifres.
— Ow, ow! Não vai correndo assim desembestado não, é perigoso!
— Mas se eu demorar ele vai morrer, e se ele morrer a cidade vai explodir!
— Mas do que você tá falando? — Amara encarou Miko, que parecia realmente estar falando a verdade. — Ah, dane-se, então eu vou contigo! Me mostra onde ele tá.
✰★✰★✰
Uma rachadura se abriu no chão de pedra da ponte, criada pelo impacto da espada de Katarina numa tentativa de cortar Darka ao meio. Ele quase tropeçou ao se jogar para fora do caminho do golpe, vendo o concreto arder com a magia. Ele correu para tentar se afastar dela, mas parou no meio da ponte quando percebeu que não adiantava atraí-la para fora da cidade, já que isso só ia atrasar ele mais ainda quando fosse atrás de Dia e Noite. A paladina se virou na direção de Darka, imbuindo a espada com a mesma energia carmesim que transbordava dos seus olhos.
— Katarina, para com isso, mulher! Não tá vendo que vai destruir o mercado todo?! Não tem tempo pra isso não, Caadis tá em perigo!
Se ela escutava alguma coisa, provavelmente estava ignorando. Sua expressão era de ódio e seu olhar estava fixo em Darka, como se estivesse em transe. Uma garoa começou a cair, e pelo jeito logo iria se transformar em uma forte chuva.
— Todo esse tempo, por toda minha vida eu me dediquei a esse exato momento. Eu recebi a benção da justiça divina com o único propósito de te destruir, Impronunciável! — Katarina avançava na direção dele, andando ameaçadoramente. — Então apenas cumpra seu papel no grande plano divino e fique parado enquanto eu te livro da existência miserável que é ser um amaldiçoado!
— Eu sei que não adianta falar contigo, mas já vou deixar avisado que não quero ter que te machucar. A Daena e o Estephan iam ficar muito chateados comigo também.
O brilho vermelho começou a se concentrar na mão livre de Katarina, e em uma velocidade absurda ela atravessou a distância entre eles. Darka só teve tempo de sentir o baque em suas costelas, antes de bater de costas na parede de metal de uma loja de peças. O impacto deixou ele sem ar e desorientado.
— Me machucar? HA HA HA HA — Katarina soltou uma gargalhada sinistra. — Você nunca conseguiria encostar um dedo em mim.
Assim que levantou a espada para o golpe final, o som de um tiro foi ouvido, seguido do barulho da lâmina caindo no chão. Sangue começava a escorrer da mão direita de Katarina, agora com um dedo a menos. Atordoada, ela virou para a direção de onde veio o projétil.
— Dessa vez eu acertei no alvo certo.
Daena estava sentada em uma moto a alguns metros de distância, apontando sua espingarda para a tia. Seus cabelos vermelhos estavam amarrados num rabo de cavalo alto, com alguns fios grudando em seu rosto devido a umidade.
— Sai de perto dele.
— Daena... então você realmente está do lado desse desgraçado. — Ela se abaixou para pegar a espada, mas outro tiro na lâmina a interrompeu.
— Eu disse para sair de perto dele. — A menina tentava manter a firmeza, mas ainda tremia um pouco. — Não me faz atirar de novo, por favor.
— Como foi que chegou aqui tão rápido? Pensei que aquele inútil do seu pai tinha colocado você de castigo. — Katarina riu, passando a mão boa no cabelo para tirá-lo do rosto. — Se eu ganhasse um drak cada vez que você interrompesse uma luta minha com esse desgraçado enfiando essa porcaria de arma no meio, eu teria dois draks. O que não é muito, mas é estranho que tenha acontecido duas vezes.
— Eu vi você saindo e sabia que ia atrás dele, então te segui. Para uma cavaleira divina você tem a noção de uma porta. Aliás, você perdeu a pouca noção que tinha, né?! Eu sei que você deixou Tharia sair do controle!
Darka tentava recuperar o fôlego enquanto escutava a conversa. Ele queria aproveitar a distração das duas e fugir, mas por mais que seu corpo se curasse rápido, ainda dava para sentir a dor imensa de duas costelas quebradas. Ele realmente estava sendo sincero quando disse que não queria machucá-la, tanto por ela ser parte da família de Daena quanto por não querer se meter em mais problemas, mas sentiu um pouco de culpa por estar aliviado em não ter sido ele quem arrancou um dedo dela.
— Eu admirava você, tia. Achava que ser a grande heroína significava que era alguém justa, mas é só uma pessoa cega, sem noção. Uma pilha idiota de arrogância!
Daena continuava apontando a arma com uma determinação que deixou Darka impressionado. Ele não a via desde que fugiu de Talphen há uns dois dias, mas tinha a impressão que havia passado bem mais tempo, pelo menos o bastante para ela ter amadurecido um pouco.
— Cale-se, Daena! Você não tem ideia de qual é minha responsabilidade! Não tem ideia do peso da missão que foi entregue a mim! Seu pai foi ensinado a governar e eu fui ensinada a lutar, ele está cumprindo o propósito dele e eu estou cumprindo o meu! E você ousa interferir, ousa me ferir para salvar a coisa que vai destruir todos nós?! Você é mesmo a imagem cuspida daquela ordinária da sua mãe!
Daena ficou ainda mais irritada e baixou a arma, saindo da moto e indo em direção a Katarina batendo o pé como uma criança zangada.
— Você lave essa sua língua com creolina antes de falar da minha mãe! Ela era mil vezes melhor do que você, ela sim sabia o que era justiça!
— Sua mimada mal-educada... Já chega dessa heresia!
Com um movimento de sua mão direita, Katarina empurrou Daena do mesmo jeito que fez com Darka, mas a menina aterrissou em uma pilha de sacos de feno. Assim que viu que a sobrinha estava desacordada, a energia vermelha que emanava de seu corpo brilhou ainda mais, como chamas sendo alimentadas por combustível. Nem a chuva, que havia ficado mais forte e agora lavava a cidade, conseguiria apagar o fogo do ódio da paladina naquele momento. Aproveitando que a atenção dela estava voltada para Daena, Darka conseguiu juntar forças o suficiente para levantar e correr em direção à entrada das galerias, torcendo para não ser tarde demais. Mas mal chegou na metade do caminho, a lâmina de Katarina veio em sua direção, fincando-se no chão à sua frente.
— Ah, pelo amor de... Me deixa em paz, mulher! — Perdendo a paciência, Darka pegou a espada na intenção de jogá-la em Katarina, mas assim que suas mãos tocaram o punho da arma ele sentiu elas queimarem. O cabo parecia brasa quente ao seu toque e deixou queimaduras feias em sua pele.
— Essa é uma espada sagrada, demônio! Um idiota qualquer nunca conseguiria usá-la contra mim!
Katarina ia se aproximando e rindo de forma maníaca, focada em Darka como um predador encarando sua presa. Ele sabia que se ela pegasse a espada de volta não haveria chance de ele sair dali, então fez a coisa mais estúpida que conseguiu pensar.
— Esqueceu de uma coisa, Katarina! — As marcas de Darka começaram a brilhar, se concentrando em suas mãos que agarravam o cabo da espada novamente. — Eu não sou um idiota qualquer...
Com um movimento rápido e quase desengonçado, Darka puxou a pesada espada do chão e a lançou... em direção ao rio.
— Eu sou um idiota com um plano.
"Meu deus do céu, ela vai arrancar meu couro com o dente. Ela vai me esquartejar e pendurar minhas entranhas na entrada de Talphen..."
Darka fazia pose, orgulhoso pela frase de efeito horrível, mas sentia que agora Katarina estava muito, muito irritada com aquilo e com certeza ia perder o controle, se é que ainda tinha algum. Ele sabia que a espada era mágica, mas não era muita coisa além de um metal encantado que não tinha como recuperar do fundo do rio só com a força do pensamento. Mas ele sabia também que era a coisa mais importante do mundo para ela depois de sua missão de matá-lo.
Irritada por ter perdido sua arma mais preciosa de um jeito tão imbecil, Katarina finalmente surtou de vez.
✰★✰★✰
As galerias de Caadis eram quase um labirinto, mas Noite conseguia se movimentar sem muitos problemas pelos vários corredores e escotilhas que direcionavam a água do rio Marue. Junto com ele, fluía por ali uma corrente invisível de energia mágica, uma das poucas fontes naturais de magia naquele mundo movido a vapor. Era praticamente o equivalente a uma Linha de Ley do mundo "real".
— Desce logo daí, Dia.
— Acredita que eu tropecei em um luziwurmo? — De cabeça para baixo, Dia surgiu em uma escotilha no teto, próximo à Noite. Ela ainda estava sem máscara. — Ainda bem que meus reflexos são rápidos.
— Impressionante. Você tropeçou num luziwurmo e caiu de cara no pé de alguém, não são muitos que conseguem essa proeza.
Dia passou a mão no rosto, onde levou um chute de Amara. O formato de uma sola de sapato estava evidente e ainda doía, mas era seu orgulho que estava mais ferido. Não queria machucar o luziwurmo, ia apenas prendê-lo para que não a seguisse, então se sentia um pouco injustiçada por ter apanhado daquele jeito.
— Conseguiu os explosivos?
— Sim e não. Caíram quando eu tropecei e não consegui pegar de volta. — Dia desceu e se juntou ao irmão. — Mas não é como se a gente não pudesse explodir as coisas de outras formas, né?
— Sim, mas com os explosivos dava para destruir mais lugares ao mesmo tempo, então vamos ter que focar só no selo mesmo. Cadê sua máscara?
— Quebrou na queda. — Dia tirou os pedaços da máscara de seu bolso. — Eu arrumo quando a gente for para a montanha de Jhotar. Já sabe onde o selo está?
— Estou seguindo a corrente, mas ainda não consigo achar... A corrente tem muitas pontas, parece uma raiz. — Seguindo o corredor onde estavam, Noite se deparou com outro beco sem saída. — Ah. Isso vai levar muito tempo... bem que podia ter um atalho.
Dia tomou a frente e o brilho de seu ataque sendo carregado em sua mão direita iluminou o espaço. Noite apenas deu alguns passos para trás e viu ela desintegrar a parede com muita facilidade. O impacto fez uma rachadura subir pelo teto e algumas pedras caíram na água.
— Eu faço um atalho para você.
✰★✰★✰
Miko e Amara chegaram na ponte logo depois de Darka jogar a espada de Katarina no rio, e a tempo de vê-la avançar contra ele.
Amara viu a cena e congelou.
— Eu nunca tinha visto ela assim... — Miko estava assustade com a fúria de Katarina enquanto ela se dirigia ao seu amigo. — Preciso deter ela!
Antes que Miko avançasse, Amara deteve o luziwurmo com sua mão. Ele olhava para Darka com uma expressão quase assombrada.
— Eu vou resolver isso.
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