— Que história é essa de tirar os cartazes da cidade, Estephan?! Estás louco? Aquele demônio contaminou você também?!
Katarina entrou no gabinete do governador com a fúria de uma tempestade, abrindo caminho pelos guardas apenas com o olhar feroz. Boatos de que ela foi incompetente na captura do Impronunciável começaram a se espalhar na cidade, e ela estava a um fio de surtar de vez.
— Existem coisas importantes sendo levadas em conta para essa decisão. — Ele falava sem sequer olhar para a irmã. — Não precisa mais se preocupar com isso.
— Não preciso? Você está deixando a maior ameaça do mundo andar livre por aí e eu não preciso me preocupar?
Estephan Evelot era um homem justo acima de tudo. Ele havia aprendido a identificar as intenções das pessoas durante toda sua vida sendo preparado para governar, e quando conheceu Darka na reforma da torre, o que ele viu foi apenas um jovem animado, gentil e querendo ajudar como podia, muito parecido com sua amada filha Daena. Alguém honesto e sincero o bastante para ouvir alguns desabafos de um velho sobre falta que ele sentia da esposa. Estephan sabia que esse tratamento informal era por ele não saber de seu cargo, e ficou feliz por ter mantido aquilo em segredo. Quando Darka supostamente destruiu a torre, ele se sentiu traído tanto pelo jovem quanto por sua intuição que aparentemente havia falhado pela primeira vez, fazendo com que ele duvidasse da própria capacidade em governar. Mas ao ouvir Daena dizendo que não tinha sido culpa dele e que foi uma armação, sua intuição gritou de volta o mais alto que podia, dizendo "eu disse". Ao reencontrar Darka falando sobre sua inocência, Estephan decidiu acreditar nele.
— Katarina. — Ele se levantou, agora olhando nos olhos dela. — Não vou falar isso como o líder da província e seu superior, mas sim como seu irmão mais velho. Eu sei o que estou fazendo e preciso que confie em mim.
— O que pretende com isso, Estephan?
— A partir de hoje me responsabilizarei por qualquer ato do Impronunciável cometido dentro do território de Oenith. Avise os guardas.
— O quê? Mas...
— Está dispensada. — Ele a interrompeu.
Aquilo era o cúmulo para a paladina. Seu próprio irmão se aliando ao inimigo, muito provavelmente por influência de Daena, que agora Katarina tinha absoluta certeza de ter sido manipulada mentalmente. Ela apenas se virou e saiu do gabinete, já traçando sua rota direto para a biblioteca do castelo.
Como descendente do grande herói do passado, desde a infância Katarina havia sido ensinada a lutar pela justiça e bem-estar de todos. Com a responsabilidade do irmão definida ao comando da província, coube a ela ser a representação da esperança das pessoas, e a heroína que livraria todos do grande mal. Mas o mal que havia sido ensinada a combater era uma bruxa que quase destruiu o mundo uma vez e voltaria um dia para terminar o que começou. Ainda criança, ela foi a escolhida para ser a portadora de uma antiga deusa de outro continente chamada Tharia, recebendo poderes divinos em troca da própria alma. Todos os seus antepassados seguiram o mesmo processo, e para ela não seria diferente. Ela apenas aceitou tudo como seu destino e foi condicionada a segui-lo religiosamente, então ver a sua família se aliando com aquilo que ela dedicava sua vida a destruir era como uma facada no peito.
A biblioteca estava vazia como de costume, silenciosa como um túmulo. Katarina sabia exatamente o que estava procurando, indo direto para a seção de documentos oficiais e registros históricos. Era lá que estavam todas as informações sobre o surgimento de Yrina e o que ela fez cerca de 100 anos atrás.
A grande bruxa Yrina surgiu das terras além-mar do Oeste, Fearaniar, trazendo desgraça e infortúnio. Sua magia destruiu vilas e devastou planícies, por simples prazer em destruir. Ela era uma criatura infernal cujo propósito era o caos. Graças a liderança de Garion Blackbell, a província de Ingrena foi a primeira a identificar seus ataques e se uniu a Ninell e Oenith para detê-la, e o cerco contra ela se fechou rapidamente.
Katarina folheava os livros que já havia lido dezenas de vezes, procurando algo a mais, alguma dica que tenha deixado passar e talvez fosse a chave para impedir a volta dela. Parou em um trecho descrevendo os acontecimentos do dia em que foi selada.
A bruxa lançava raios na antiga capital da província de Ninell, Jhotar. Por onde passava, casas desabavam e o chão rachava partindo a cidade em pedaços, mas o povo conseguiu fugir antes do ápice de seu descontrole. Seu objetivo era a praça no centro da capital, onde usaria seu poder para espalhar sua fúria pelo mundo inteiro. Usando seu próprio filho como sacrifício, ela conjurou um grande círculo mágico que tinha como objetivo invocar o próprio caos, mas foi impedida pelo grande paladino Angelus Aurea. Com ajuda do poder recebido pela sua divindade protetora ele destruiu o círculo profano, revirou a própria terra com um tornado de proporções colossais e selou Yrina antes que ela terminasse seu ritual, enterrando-a junto com os escombros da cidade destruída.
Onde era a majestosa cidade de Jhotar agora se ergue uma montanha que esconde os restos mortais de Yrina e seu filho. Angelus descobriu que a magia que ela tentava conjurar se alimentava de antigos fluxos mágicos que se convergiam naquele local e se espalhavam embaixo da terra como raízes, então decidiu usar a própria arma da bruxa contra ela. Rastreando pontos específicos nos ditos fluxos nas três grandes províncias, ele obstruiu as correntes com selos divinos para impedir que ela usasse a magia concentrada para escapar.
Angelus Aurea era o antepassado de Katarina, e ler sobre seu grande heroísmo fazia com que ela sentisse uma mistura de orgulho e senso de responsabilidade. Ela precisava ser como ele.
Pouco se sabe sobre a vítima de sacrifício de Yrina, seu filho anônimo cujo corpo não foi encontrado. Mas teme-se que ele pode voltar junto com a bruxa para mais uma vez destruírem o mundo. Para que isso não aconteça, os quatro selos de Angelus devem ser protegidos a todo custo.
A essa altura, ela sabia que três dos ditos selos já haviam sido destruídos: O da torre de Talphen, o da biblioteca de Norien e o da Ruína dos Corvos. O paradeiro do último era desconhecido e acreditava-se que ele até teria se movido depois de alguns anos.
Katarina fechou os livros, frustrada. Só restava ir atrás do último selo e protegê-lo, mas ninguém sabia onde estava.
— Eu não sei onde ele está... — Ela balbuciou. — Mas tem alguém que sabe.
✰★✰★✰
— Senhor Darka, estamos chegando!
— Hmm. — O jovem, dormindo de barriga para cima, quase nem se mexeu. Dormia como uma pedra, apesar do balanço da carroça coberta que os levava pelos últimos dez quilômetros até Caadis. O condutor pareceu nem notar os clandestinos, ou se notou, resolveu simplesmente ignorar.
— Bom, se vai continuar dormindo, vou me juntar ao senhor. Com licença! — Miko se aconchegou em cima de Darka, abraçando seu pescoço e repousando sua cabeça desajeitadamente na bochecha do amigo.
Imediatamente Miko começou a esfregar seu rosto na face do amigo, numa tentativa inconsciente de amaciar seu "travesseiro".
— Hmm... — Darka resmungou de novo. O atrito das escamas de Miko começou a incomodar, a ponto dele finalmente abrir os olhos . — Ai... Miko... isso pinica!
Miko levantou a cabeça para olhar para o amigo. Darka encarou entediado, com a bochecha vermelha.
— Acordou, senhor Darka?! Tudo bem, eu não estava com sono mesmo! — Miko saiu de cima do jovem e levantou uma parte da cobertura da carroça para apontar para a cidade. — Ah, e chegamos em Caadis!
— Ah, ótimo. Essa foi a viagem mais longa que já fiz nesse bendito jogo. — Darka sentou e se espreguiçou, tentando afastar o cansaço e as dores.
— Que jogo, senhor Darka? — Miko questionou.
— No jogo da vida, mi care Miko. O pior jogo já feito. Belos gráficos, mas péssima gameplay. Enfim, podemos descansar por aqui hoje e seguir pra Olsid amanhã de manhã.
Descendo da carroça com cuidado, eles entraram sem problemas na cidade. Diferente das capitais, cidades pequenas como aquela não tinham muita proteção e até a fama de Darka não era motivo para se preocuparem tanto, afinal tinham outros problemas mais urgentes para lidar do que um suposto demônio destruindo coisas por ali.
A rua principal de Caadis seguia o mesmo esquema do resto das cidades e abrigava um grande mercado, mas em vez de frutas exóticas e tapetes luxuosos, as barracas vendiam peças de metal, partes de maquinários e ferramentas para serviços de mecânica. Darka lembrava de algumas missões que fez para Amara envolviam ir até esse mesmo mercado comprar itens, e a memória fez seu peito apertar.
"Talvez seja a hora de começar a pensar no plano B, caso Amara tenha realmente mudado de ideia sobre mim." — Darka pensava enquanto andava, tão distraído que nem notou quando se separou de Miko. A única coisa que o tirou dos seus pensamentos foi avistar alguém familiar passando a alguns metros à frente, no meio da confusão de barracas. Um cabelo cor de rosa preso num coque.
— A... Amara?!
Darka tentou abrir caminho até ele, mas assim alcançou o lugar onde tinha o visto não havia sinal de ninguém.
— Talvez tenha sido só impressão...
Uma mão repousou em seu ombro. Ele se virou na esperança de ver seu amado amigo, mas deu de cara com uma máscara com um símbolo de lua.
— É bom vê-lo novamente, milorde!
— Noite?! — A expressão de Darka fechou. Seu primeiro instinto foi pular no pescoço dele, mas acabou desistindo por não querer chamar muita atenção. — O que tá fazendo aqui? Se veio causar problemas usando meu nome de novo, eu vou te esganar agora mesmo.
— De forma alguma, milorde. Eu só queria conversar com o senhor, agora que nos descobriu. Creio que a hora de revisarmos os passos da ressurreição de Lady Yrina chegou.
Darka puxou Noite pelo colarinho até um beco vazio ali perto. Ele queria tirar isso a limpo com os dois, sim, mas sentia que não seria tão fácil. O fato de serem personagens cuja existência não tinha absolutamente nenhum rastro no jogo deixava Lauren muito inquieta e com a sensação de que eles não se encaixavam direito naquilo tudo.
— Eu vou ser direto, moleque. Eu não quero trazer a Yrina de volta. Eu nunca quis trazer ela de volta. Eu não vou trazer ela de volta. Então quero que vocês parem de fazer as coisas por mim, isso tá só ferrando pro meu lado. Cê entende o que eu tô falando?
— Entendo, milorde. Mas saiba que só está agindo assim porque não se lembra. Estamos apenas ajudando a cumprir o que Lady Yrina desejava desde o início.
— Quem são vocês pra saber o que ela queria? Eu posso estar com a memória zoada, mas eu lembrei de muita coisa e nenhuma delas é sobre vocês dois! De onde diabos vocês saíram?
Conversar com alguém usando máscara sempre deixava Lauren nervosa. Não conseguir saber a reação da pessoa ou se ela sequer estava olhando para você era quase angustiante. Depois de uma pausa meio longa, Noite baixou um pouco a cabeça.
— Somos irmãos, milorde. Me dói um pouco que não se lembre. Mas não se preocupe, não temos ressentimentos quanto a isso. Sabemos que o processo de amnésia decorrido da sua ressurreição acabou apagando coisas muito importantes.
Darka pareceu mais confuso que nunca. Definitivamente não havia nada sobre outros filhos da Yrina no jogo e isso fazia cada vez mais perguntas surgirem em sua cabeça.
— Tá bom, olha, eu continuo não sabendo quem vocês são, porque até onde eu sei a Yrina não tinha filhos. Mas de qualquer forma, eu quero que parem com essa palhaçada de ressurreição.
— Mas resta apenas um selo, e estamos em cima dele.
— O quê?
— Foi muito esperto de sua parte vir direto até ele. Dessa vez nem precisamos ter trazido o senhor até aqui com missões e boatos! Sua intuição é admirável.
— Eu não...
— Ele está na galeria de água em algum lugar abaixo do mercado. Podemos também aproveitar e derrubar as estruturas da cidade, assim todos verão a grandiosidade de seu poder e do que é capaz. Vamos iniciar o processo de destruição ao seu comando.
— Eu acabei de falar que não quero que...
— Não se preocupe com os preparativos, milorde! — interrompeu Noite, saltando em direção aos telhados do beco. — Dia e eu vamos começar assim que possível!
Darka apenas observou o jovem desaparecer entre os prédios, a frustração aumentando a cada segundo. Caadis foi erguida sobre uma vasta galeria de canais por onde passava o Rio Marue, e se eles decidissem quebrar o selo do mesmo jeito que quebraram a torre de Talphen, metade da cidade ia descer rio abaixo.
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