Na manhã seguinte a fuga, o céu estava nublado e ameaçava despejar uma chuva em breve. Miko murmurava uma canção e tomava um chá enquanto Darka se ocupava em estudar o mapa. Os dois estavam descansando em uma pequena taverna na beira da estrada depois de fugirem de Talphen no dia anterior, mas com a pressa acabaram se perdendo.
— Tá, a gente tá em algum lugar por aqui. — Darka apontou em um ponto ermo do mapa, nos arredores de Talphen. — Se formos por essa estrada vamos chegar num vilarejo, e lá tem uma rota pra Caadis. Andando a gente chega lá em um dia, acho.
— Ou a gente podia pegar carona! — Miko comentou. — Daquela vez foi bem rápido.
— É, mas essa estrada não é rota de comércio, não tem caminhões passando por aqui. E veículos pequenos provavelmente não vão pra tão longe por esse caminho também. A gente fugiu pelo caminho mais deserto, mas acabou sendo o mais demorado também.
— Senh... — Darka interrompeu Miko com o olhar. — Ah, err... Darka, o que você acha que o governador vai fazer agora que sabe da verdade?
— Pra ser sincero, não faço ideia. Se ele pelo menos tirar da cidade aqueles cartazes horrorosos com a minha cara eu já ficaria satisfeito, mas talvez seja pedir muito. — Darka relaxou mais na cadeira e começou a trançar o próprio cabelo. — Aliás, ele pode até saber da verdade, mas isso não significa que ele tenha mudado completamente a opinião dele sobre mim. Eu ainda causei muitos problemas, direta e indiretamente.
— Verdade. Mas a senhorita Daena consegue convencê-lo se ela quiser.
— Ah, não duvido nada, ele é um pai muito babão. Aliás, me sinto um pouco mal por não ter me despedido dela. Apesar do temperamento difícil, ela é uma pessoa legal.
— Vocês dois são parecidos. — Miko riu.
— Hein? Só se for no branco do olho.
Um silêncio se formou, acompanhado do som da chuva que começava a cair. Em poucos minutos já estava forte o suficiente para fazer as janelas da taverna assoviarem. A dona do local estava no balcão, secando algumas louças, guardando bebidas e esporadicamente espiando os dois únicos clientes na esperança que pedissem para se hospedar agora que estava chovendo.
Miko deu um gole no chá que estava tomando, e olhou para o mapa estirado.
— O que vai fazer quando encontrar seu amigo?
Darka jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. Estava evitando pensar nisso, porque sabia que ia achar motivos para desistir se pensasse demais. Otimismo nunca foi seu forte.
— Eu não sei. Vai depender do que acontecer quando eu encontrar com ele. Não sei se ele me odeia também, não sei se ele não liga, não sei se ele gosta de mim... Amara sempre me tratou bem, mas você sabe, pessoas podem mudar de opinião quando descobrem quem você realmente é.
— Entendi... Mas acho que vai ficar tudo bem, porque eu vou dizer pra ele que você é uma pessoa legal e muito gentil também. Eu sei quem você é, e você não é mau.
— Você acha isso é? Valeu mesmo. — Darka sorriu. — Mas e você, vai fazer o quê depois que chegarmos lá? Cê disse que tava só viajando por aí, né? Vai pra algum outro lugar?
— Ah. Eu não sei ainda também.
Miko baixou a cabeça, e sua expressão mudou para melancolia.
— Você por um acaso não tá fugindo de casa não, né? — Darka encarou o luziwurmo, semicerrando os olhos.
— Quê? Não! Eu só... eu não quero ser que nem os outros luziwurmos que passam a vida toda trabalhando em mercados e feiras. Eu sou eu, e não quero ser só um tipo de potencial assistente de venda. Achei que viajar por aí seria uma boa ideia, talvez eu encontre o que fazer que não seja servir de caixa de mercado. Talvez eu até encontre mais luziwurmos que saem em aventuras também. — Miko deu uma pausa, olhando para sua caneca de chá. — E eu gosto de conhecer lugares novos.
— Entendi. — Darka se debruçou na mesa e apoiou o rosto na mão. — É difícil mudar a forma que as pessoas te enxergam. Sabe, você tem bastante coragem pra fazer isso.
— Devo ter mesmo, só assim para andar com alguém como você, o grande "arauto do apocalipse", né?
— Oxe, o que foi isso? Onde que cê aprendeu a falar essas coisas, Miko? Foi a Daena, não foi? Ela é uma má influência pra você, onde foi parar aquela sua educação toda?
Miko soltou uma risada, fazendo Darka rir também. A taverneira se aproximou da mesa, interrompendo a conversa. Darka virou o rosto para garantir que ela continuasse não reconhecendo ele.
— Com licença, vocês dois. Está caindo uma tempestade lá fora e já está tarde, não gostariam de passar a noite?
Darka encarou o mapa por alguns segundos antes de responder.
— Só se tiver banho quente.
✰★✰★✰
A chuva também castigava Talphen, enquanto duas figuras conversavam debaixo de uma das grandes pontes da cidade. Dia e Noite estavam sentados em um vão entre os pilares em volta de um pequeno lampião, tentando se aquecer e se manterem secos. A tempestade fazia o canal ficar um pouco mais agitado que o de costume, e eles observavam a enxurrada levando as sujeiras da cidade.
— Ainda não entendi o que deu nele. Se não era um teste, ele realmente estava zangado com a gente. — Dia reclamava enquanto começava a enfaixar o braço que Darka segurou. A energia que ele estava segurando aparentemente queimou sua pele quando seu golpe foi desviado.
— Não faz sentido ele estar bravo conosco, Dia. Está tudo dentro dos planos, ele já destruiu três dos quatro selos de bloqueio que estão ligados à caverna onde está a Mestra Yrina. Foi um teste por instinto. Eu disse que ele ter perdido a memória não ia ser tão ruim assim se a gente ajudasse ele a fazer as coisas do jeito certo.
— Não sei, talvez ele não tenha gostado da tentativa de ajudar ele queimando o castelo como distração. Acho que o mestre queria fugir sozinho...
Noite começou a ajudá-la terminando de amarrar o curativo. Quando finalizou, ele abaixou seu capuz e tirou a máscara. Seu cabelo azul marinho arrepiou-se com a umidade, caindo sobre seus olhos azulados como estrelas. Dia também fez o mesmo, passando a mão na cabeça para soltar suas madeixas avermelhadas e esfregando os olhos que iam do lilás ao laranja, como o pôr do sol de uma tarde de verão. Quem visse os dois naquele momento provavelmente ficaria fascinado pela aura encantada que eles emanavam, e teria certeza de que, apesar da aparência, eles não eram humanos.
— Sinto falta dela. — Dia se encolheu um pouco mais, se aproximando do lampião que emanava um calor aconchegante. — Tomara que ela não tenha esquecido da gente também.
Noite se aproximou de Dia ao vê-la encolhida, e a puxou para seu ombro tentando aquecê-la um pouco mais. A chuva continuava lavando a cidade e não dava sinais de que ia passar tão cedo.
— A mamãe nunca nos esqueceria, Dia.
✰★✰★✰
A tempestade daquele dia também cobria boa parte do território de Ninell, ilhando pessoas em suas casas e obrigando transeuntes a tirar uma folga. Na vila de Olsid, Amara aproveitava o dia sem clientes na oficina organizando seu estoque de peças com a ajuda barulhenta de Jean.
— Ai, Amara, você anda tão chato! Desde que o seu amigo ilustre lá parou de vir aqui você ficou rabugento demais. Qual é o problema?
Amara virou para Jean depois de pegar a caixa nas mãos dela e colocar na prateleira. Ele não queria admitir, mas estava ligeiramente preocupado com Darka sim, e a insistência da amiga nesse assunto só deixava ele mais nervoso.
— Não tem problema nenhum. Eu já disse que ele...
— Não é seu amigo, bla bla, que seja, você parece um disco furado. Seja lá o que te deixa irritado espero que passe logo. — Jean sentou em um espaço na mesa de trabalho de Amara. — Se seu mau humor tem algo a ver com O Impronunciável, eu soube de algumas coisas... mas você nunca quer saber das minhas fofocas, é muito sem graça.
— Se quer tanto falar, então fala. Eu só não garanto que vou ouvir.
A expressão de Amara era indecifrável para Jean, mas mesmo assim ela decidiu contar. Como boa fofoqueira, um ouvido bastava para a torneirinha de informações se abrir.
— Então, né, alguns mercadores contaram que ele apareceu em Talphen uns dias atrás e tentou sequestrar a filha do governador, acredita?? Mas ele nem conseguiu, aquela paladina da guarda pegou ele.
Jean deu uma pausa, esperando algum comentário ou reação de Amara. Era impossível saber se ele sequer estava ouvindo, pois ignorou e continuou arrumando coisas nas prateleiras.
— Enfim, parece que ele conseguiu fugir incendiando uma parte do castelo. Eu acho que ele tem alguma rixa pessoal com o governador, pois já tinha destruído aquela torre da catedral lá e agora tentou sequestrar a filha dele. Você anda com uns tipos bem malucos, Amara.
— É, eu ando com você. — Amara desmontou a caixa que esvaziou e começou a varrer o estoque. — E para de ficar fofocando as coisas que você não sabe. Um dia ainda vai ter problemas com isso.
— Ah, lá vem o sermão. Aliás, ainda tem uma coisa, só que é meio estranha aí eu não tenho certeza se é verdade.
Amara parou de varrer, colocou uma mão na cintura, segurou a vassoura com a outra e encarou a amiga, com uma cara de quem queria que aquilo terminasse logo. A fofoca não havia despertado tanto interesse quanto ele mesmo esperava.
— Tem boatos que mesmo com toda essa zona que ele causou, o governador mandou os guardas tirarem os cartazes de procurado do Impronunciável espalhados em toda província de Oenith. Mas tipo, na surdina mesmo, sem comunicado oficial nem nada.
Amara ficou claramente confuso. Jean sorriu ao ver que finalmente tinha tirado alguma reação dele.
— Que... estranho. — Amara ficou bem pensativo com as notícias, mas logo balançou a cabeça e voltou a varrer o chão, virando de costas para ela. — Mas fico feliz pelo governador ter recuperado a filha dele.
— E pelo Impronunciável? — Jean não parecia estar perguntando para irritar o amigo.
Amara ficou em silêncio por alguns segundos, sem parar de varrer. Jean estava prestes a dizer que estava brincando, mas ele virou um pouco a cabeça para responder.
— O nome dele é Darka.
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