Amara terminava seu último serviço do dia, um robô de limpeza com o filtro entupido. Estava concentrado em tentar remover um parafuso enferrujado quando ouviu a porta bater.
— Ô pirralho! Chegou o lote de cabos e engrenagens que você pediu, junto com uma fo-fo-ca.
— Boa tarde, Jean. Pode colocar os cabos ali. — Amara apontou para um canto sem tirar os olhos do seu serviço. — Mas dispenso a fofoca.
— Ah, qual é? É sobre seu amiguinho destruidor de mundos.
— Ele não é meu amigo! Já disse pra parar com essa palhaçada.
— Hmm, tá, vou fingir que acredito. Ele vinha aqui todo santo dia e não era seu amigo, sim. Você até disse uma vez que ele não era tão ruim assim e que estava preocupado porque ele não aparece faz um bom tempo.
— Eu tava bêbado.
— O que significa que foi honesto.
— Eu não me importo com o que ele faz ou deixa de fazer. E não conta pra ninguém que ele esteve aqui!
Jean deu uma risadinha, entretida. Conhecia Amara desde que se entendia por gente, e desde que o Impronunciável apareceu naquela pequena vila foi como se o mecânico saísse de uma catarse. Ele costumava ser o mais automático possível, e muitos diziam que ele era tão máquina quanto os robôs e veículos que consertava. Infelizmente esse comportamento ameaçava voltar agora que o Impronunciável estava sendo procurado e não visitava o amigo há algumas semanas.
— Sabe, Amara... Você deveria ser mais honesto. — Jean sentou no balcão ao lado dele, sorrindo. — A vida é curta demais para você ficar mentindo, ainda mais para si mesmo.
— Você definitivamente não precisa me dar essa lição, Jean.
— Eu só tô preocupada. Tanto com você quanto com o resto do mundo, tá? Eu acredito no seu julgamento porque você realmente conheceu o Impronunciável e disse que ele é uma pessoa bacana, mas agora você diz que não é. Eu preciso saber se me preparo para o apocalipse ou não!
— Não coloca essa decisão em cima de mim não! Faz o que quiser.
Jean observou Amara por alguns segundos, pensando.
— Tá bom então. Vou acreditar no seu eu bêbado.
✰★✰★✰
— Eu não acredito nisso, Darka.
Um Darka muito emburrado virava o rosto, evitando olhar a porta em uma pose tão infantil quanto a situação permitia. Daena olhava para ele com as mãos na cintura, incrédula com a birra daquele que deveria ser o indivíduo mais perigoso do mundo no momento.
— Tu atirou em mim! — Darka reclamou. — De novo!
— Eu tava tentando salvar sua vida! E eu não mirei em você!
— Mas atirou mesmo assim! Eu confiei em você, tentei te salvar e recebo isso em troca!
— Para de chorar, seu bebezão! Foi necessário!
Miko irrompeu detrás de Daena, correndo em direção ao amigo preso. A ação fez com que a discussão parasse, e Darka sentiu o abraço apertado do luziwurmo. Um pouco sem jeito, ele retribuiu abraçando de volta.
— Senhor Darka, você não morreu!
— É óbvio que não, Miko! — Ele apertou as bochechas dile. — Se eu morrer, provavelmente é game over.
— Game ovo?
Um barulho vindo do corredor assustou os três e Daena se apressou na direção das correntes que prendiam Darka, segurando uma chave meio enferrujada.
— Precisamos sair daqui o mais rápido possível. A tia Katarina está por um triz de arrancar sua cabeça.
— Mas e o julgamento? Ela disse que você conseguiu um julgamento pra mim.
— Era só para a gente ganhar tempo! Até eles prepararem tudo é bom que você esteja a duas léguas daqui. É meio óbvio que você vai ser condenado, não é como se tivesse alguma coisa para te inocentar.
As mãos hábeis de Daena destrancaram todas as algemas em poucos segundos. Miko ajudava como podia, devolvendo para Darka as coisas que foram confiscadas.
— Temos algum plano?
— Vamos tentar sair sem sermos vistos.
— Então não temos um plano. — Darka suspirou. — Se eu morrer de verdade dessa vez, Miko, deixo minha capa de herança pra você. Ela é a prova de fogo. Daena, pode ficar com... deixo pensar... meu acessório de cabelo.
— Para que eu ia querer seu acessório de cabelo? Ele também é a prova de fogo?
— Não, mas ia ficar bonito em você, eu acho.
Daena apenas revirou os olhos e balançou a cabeça, pegando os dois pelas mãos e puxando-os para sair dali.
O corredor estava vazio e o barulho de antes parecia ser de uma porta batendo, o que fez ela chegar à conclusão de que o guarda havia saído. Os três seguiram pelos corredores tentando não fazer barulho, logo percebendo que nem precisavam se preocupar muito já que o castelo aparentemente estava vazio.
— Daena, eu não sou de me gabar nem nada... mas um lugar que tá prendendo o suposto arauto do fim em pessoa não devia ter mais guardas? Eu lembro que Talphen era cheia deles.
— Realmente... quando eu desci não estava tão quieto assim.
— Estão ouvindo? — Miko interrompeu. — Parecem gritos... Vindo lá de cima.
— Tem algo de errado. — Daena mudou a direção para onde iam e seguiu para a fonte do barulho.
Antes mesmo de chegar no pátio, ela sentiu o ar quente sendo baforado em seu rosto. Assim que pisaram no local viram o inferno que tinha se formado, com chamas engolindo quase metade do pátio central do castelo enquanto pessoas corriam tentando apagar o fogo. Em algum lugar se ouvia a voz de Katarina dando ordens, orientando parte dos guardas a evacuarem as pessoas enquanto outros controlariam a situação. O próprio governador estava no meio dos que tentavam apagar as chamas.
— Fogo. — Darka revirou os olhos. — De novo. Os devs desse jogo são preguiçosos demais, sinceramente... Ou só piromaníacos.
Daena ignorou a fala sem sentido do garoto e começou a traçar um plano. O incêndio era uma distração grande o suficiente para que eles fugissem, mas ela ainda estava preocupada com as pessoas ali. Seu pensamento foi interrompido por Darka empurrando Miko para o seu lado e colocando a capa em volta deles.
— O que você pensa que tá fazendo?!
— Ali, ó. — Ele apontou para o topo de uma das torres que circulavam o pátio. Duas figuras encapuzadas estavam de pé no topo dela, observando a confusão. Não pareciam ter notado os três parados na beira do mar de chamas.
— Aqueles são...
— São os moleques que cê mencionou antes, né? Se são eles mesmos, provavelmente começaram o incêndio por minha causa. Tenho que resolver isso senão o Amara vai achar que eu sou um psicopata que gosta de tacar fogo nas coisas.
Antes mesmo de ouvir a resposta de Daena, ele saiu correndo entre as chamas na direção da torre onde viu os dois culpados. Sua cabeça já entrava em modo de batalha, repassando todas as suas habilidades que poderiam ser úteis agora.
"Ok, eu tinha uma habilidade que absorvia coisas, não tinha? Mas depois eu libero a energia que absorvi... só que se eu fizer isso vai acabar explodindo geral e vai ser pior do que tudo pegar fogo. Talvez dê pra absorver e direcionar pra algum lugar, mas onde? Se a Katarina estivesse na minha frente eu poderia direcionar pra ela, ahahahaha... ha... melhor não."
— O Impronunciável fugiu! Procurem ele! Ele está tentando nos matar como vingança!
A voz da paladina e dos guardas ressoavam, agora gritando ordens para procurar ele também. Darka começou a ficar irritado por irem atrás dele em vez de focarem em apagar o fogo e acelerou o passo para subir no telhado, fazendo o melhor parkour que ser um herdeiro mágico e protagonista de mundo lhe permitia. Lara Croft estaria orgulhosa dele. Lá em cima, as duas figuras mascaradas ainda pareciam alheias à sua presença quando ele se aproximou.
— Ei, suas pragas do capeta!
Os dois viraram para ele, aparentemente surpresos. As marcas de Darka começaram a brilhar enquanto ele se preparava para absorver as chamas.
— Milorde?! É ele! Olhe, Noite, ele está aqui! — Dia se virou para o irmão.
— Milorde é o cacete! Que diabos estão fazendo?
— É um prazer finalmente trocar palavras com o senhor. — Noite fez uma reverência, sendo copiado por Dia. — Estamos felizes por vê-lo livre.
— Então foram vocês dois que me atrapalharam desde o início do jogo e fizeram a minha caveira pra todo mundo, né?! Eu devia arrancar as orelhas de vocês e enfiar nas suas goelas!
— Noite, olha como ele emana o poder de Lady Yrina... — Dia dava pulinhos de admiração, ignorando completamente as ameaças. — Estou até arrepiada!
Darka apenas bufou de raiva e correu na direção deles, empurrando-os para o pátio ardente. Surpresos com o ataque, eles por pouco conseguiram evitar dar de cara no chão cheio de escombros, rodopiando no ar e aterrissando elegantemente como gatos que sempre caem de pé. Sem perder tempo, Darka saltou logo atrás ativando sua magia e absorvendo as labaredas ao seu redor como água sendo sugada para um ralo de pia, formando um tornado de fogo onde ele mesmo era o centro.
— Vocês dois... Seus... — Os olhos de Darka brilhavam.
— Não estou entendendo, Noite. — A garota sussurrou para o outro. — Ele está bravo com a gente?
— Acredito que sim, Dia. Provavelmente porque não fizemos o trabalho direito.
Darka sentia o calor das chamas que foram quase completamente absorvidas pelos seus estigmas mas, além disso, havia algo mais. O incêndio provocado pelos dois era de origem mágica, e essa magia toda agora estava sendo armazenada no corpo do jovem, fazendo seus olhos brilharem tanto quanto as labaredas que eram sugadas por ele.
"Essa carga toda de magia... não acho que consigo segurar por muito tempo. Se eu lutar contra eles, talvez consiga aliviar um pouco da pressão..."
Em um piscar de olhos ele avançou contra a dupla, que desviou bem a tempo de escapar de um golpe do punho de Darka. Ele continuou tentando acertá-los, liberando aos poucos pequenas rajadas da energia absorvida pelo seu corpo através de seus movimentos. Os ataques pareciam mais rápidos e mais fortes do que antes, mas também mais cansativos. Ele sabia que não iria conseguir aguentar muito.
— Milorde, acalme-se! Diga-nos o que fizemos de errado para invocar sua fúria! — Noite tentava falar com Darka, mas dessa vez era ele que estava ignorando o que diziam.
Uma salva de gritos chamou a atenção de Daena, que estava observando a luta de Darka sem saber o que fazer. Seu pai apareceu no pátio com alguns soldados, empunhando um sabre e uma expressão determinada, pronto para cortar ao meio quem se metesse em seu caminho.
— De hoje você não passa, Impronunciável! Eu mesmo vou acabar com sua maldita raça!
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