— Miko, me escuta. Você não precisa...
— A senhorita Daena está falando sério? — Miko deu alguns passos para trás. — Ela chamou você de Impronunciável...
— Não sabia, luziwurmo?! Esse cretino é o demônio que está amaldiçoando essa terra!
— Daena! Já chega!
Darka levantou de repente, massageando a têmpora e respirando fundo. No começo ele até que não se importava muito em ser reconhecido por Miko, mas depois de viajarem juntos por alguns dias ele sentia um certo senso de companheirismo e proteção, que levaram ele a manter segredo sobre quem era. Agora ele estava irritado consigo mesmo por ter esquecido que Daena poderia estragar isso.
Miko aproveitou a aparente distração de Darka e correu até os dois, se pondo entre eles.
— Você não vai machucá-la, Darka!
Ele observou a cena, confuso. Daena também pareceu surpresa.
— Miko, eu pareço que vou machucar ela?
— Não, mas...
— Não sou nem eu quem tá armado aqui!
— Mas ela está armada para se defender!
Daena se levantou ainda cambaleando, sem parar de apontar o punhal para Darka.
— Você é mesmo um desgraçado insensível! Manipulou uma pessoa inocente para ser capacho seu!
— Tá bom, olha, já chega. Vocês dois. Tô nem aí se acreditam em mim ou não. Eu vim aqui pra ajudar, pra fazer uma coisa bacana, aí vem vocês fazendo todo esse drama sendo que eu até contei pra vocês o meu nome de verdade! Quer saber? Eu não tenho mais tempo pra isso não.
Darka pegou sua bolsa, desviou dos dois para pegar sua capa do chão e saiu em direção a trilha.
"Eu sou muito idiota, inventei de querer ajudar levando a Daena de volta e limpando o nome do Darka e agora tô aqui quase de volta ao ponto de partida. Mesmo que fiquem dizendo que eu sou o apocalipse em pessoa, o Amara não vai ligar. Então pra quê me preocupar? As pessoas só acreditam no que querem. Isso não é tão diferente da vida real aqui. Lauren ou Darka, não faz diferença, é igualzinho à vida real."
Os pensamentos dele foram interrompidos por algo agarrando sua capa.
— Miko? O que...
— Você é mesmo o Impronunciável?
Darka suspirou. Nunca era uma boa experiência falar com as pessoas que havia magoado, e Lauren já tinha ouvido antes que não tinha tato para essas coisas.
— Sim, Miko, sou eu. Não ouviu o que a Daena disse?
— Mas... Você nem me transformou em tomate!
— Ah, peraí. — Darka amassou algumas framboesas que ainda estavam em sua mão e passou a polpa vermelha no rosto de Miko. — Pronto, vermelho como um tomate. Acredita em mim agora?
— ... — Miko parecia estar em um conflito interno, como se fosse começar a chorar a qualquer momento.
— Olha, é uma história complicada. Eu sei que não pareço a melhor das pessoas e quase tudo o que você ouviu sobre as coisas que eu fiz é verdade, mas os motivos não. Eu não pretendo fazer nada do que ficam dizendo por aí, só quero encontrar uma pessoa com quem me importo, como eu já te disse.
Passos chamaram a atenção de Darka, e ele avistou Daena vindo em sua direção. Ela estava de cabeça baixa e, diferente de antes, não parecia querer transformá-lo numa peneira.
— É verdade? Isso aí que você falou.
— Mesmo que eu dissesse que é, vocês não iam acreditar. — Darka se virou para ir embora. — Miko, não esquece de levar ela pra casa.
Dessa vez foi um abraço repentino que fez ele parar de novo, já impaciente.
— Miko, me solta!
Ao se virar, viu que era Daena quem estava agarrada à sua cintura. O rosto dela estava enterrado na capa, abafando o que quer que ela estivesse murmurando. Darka ficou imóvel, sem saber exatamente o que fazer.
— D-Daena?
— Eu sabia. Eu sempre soube! — Ela levantou o rosto, agora quase tão vermelho quanto seu cabelo. Parecia estar tentando não chorar, mas algumas lágrimas no canto do olho a denunciavam. — Você não é igual a ela, você vai impedi-la!
— Do que cê tá falando? O que foi deu em você?
Darka não queria baixar a guarda com Daena por conta do histórico de tentativas de assassinato, mas teve que segurá-la de novo quando ela desmaiou logo em seguida. Ele olhou para Miko em busca de alguma resposta, mas só recebeu o mesmo olhar confuso de volta.
✰★✰★✰
A cidade de Talphen amanhecia já movimentada, com viajantes e mercadores indo e voltando pelas ruas e vielas. Da janela de um dos prédios mais altos da cidade, o governador observava ansioso a movimentação, se agarrando a algum fio de esperança que sua filha estaria correndo por lá como fazia desde criança. Desde a destruição da catedral há cerca de dois meses, Daena havia se tornado muito agressiva quando o assunto era O Impronunciável a ponto de constantemente querer ir atrás dele com Katarina, que sempre negava os pedidos da sobrinha. Na única vez que ela permitiu, Daena desapareceu.
— Não se preocupe, meu irmão. Todos os guardas disponíveis estão à procura dela. Toda pedra da província de Oenith será revirada até acharmos Daena.
— Aurea, agradeço seus esforços. Sei que se culpa pela situação, mas peço que não seja tão dura consigo mesma.
— Não tem como! Eu deveria ter acompanhado ela de volta a Talphen quando a vi pela última vez, foi descuido de minha parte!
— Não, o descuido foi meu em permitir que ela fosse com você. Mas não podemos mais ficar procurando culpados, é melhor voltar para as buscas.
Katarina acenou com a cabeça e se retirou, deixando o irmão sozinho. Ela sentia o peso do fracasso em proteger a sobrinha, e jurou para si mesma destruir aquele que ousou sequestrá-la.
Um guarda se aproximou, nervoso.
— Senhora, temos notícias! Há suspeitas que O Impronunciável esteja na estrada para a vila de Zieg! Um mercador disse que levou um homem suspeito até um ponto ermo da estrada próximo ao local onde Lady Daena foi vista pela última vez!
— Estrada para Zieg? Há uma grande chance de ser ele mesmo! Reúna os guardas e espalhem eles pela estrada! Vamos interceptá-lo se ele der um passo sujo naquele caminho.
✰★✰★✰
— Será que ela vai ficar bem?
— Vai sim, relaxa. Ela deve acordar logo logo e com muita fome. Ela também tem muito pra explicar. — Darka fez uma pausa. — E precisa de um banho, mas não fala pra ela que eu disse isso.
Os dois caminhavam pela trilha de volta à estrada, com Daena ainda dormindo sendo carregada nas costas de Darka. Desde que desmaiou na noite anterior, ela não havia acordado nenhuma vez e isso deixava os dois nervosos. Resolveram voltar com ela assim que amanhecesse, para não perder tempo.
— Senh... Darka?
— O que foi, Miko? — Darka continuou em frente sem olhar para ile. — Se for mais alguma coisa sobre eu ser o filho da Yrina, eu não vou responder.
— Não, não! Eu... eu só queria pedir desculpa.
— Pelo quê? Você só reagiu do seu jeito, não tem pelo que pedir desculpa.
— Preciso sim. Eu não consegui dormir direito pensando em tudo o que aconteceu, aí percebi que você nunca fez nada de ruim nenhuma vez desde que a gente se conheceu. Eu não devia ter duvidado.
— Já passou, relaxa. Eu nem tô bravo, tô acostumado com isso. Não te contei por egoísmo meu, já que não queria viajar sozinho, mas pensando melhor isso acabou te colocando em perigo. Se alguém me descobrisse poderia acabar sobrando pra você também, então na real eu é quem devia te pedir desculpas.
Daena se mexeu nas costas de Darka e eles pararam, já próximo à estrada. Ele a colocou cuidadosamente sentada no chão enquanto Miko imediatamente revirava suas coisas para pegar algo para ela comer.
— Daena? Como está se sentindo?
Miko retirou um cantil e uma maçã de sua bolsa. Aos poucos ela foi acordando e percebendo onde estava, se assustando quando lembrou da situação.
— P-Por quanto tempo eu dormi?
— Algumas horas. Você ainda não disse o que aconteceu, como acabou desse jeito?
Daena estava aliviada pela pergunta não ter sido sobre a última coisa que ela disse antes de apagar. Sentia vergonha por ter perdido a compostura naquele momento na frente dos dois, e quando se deu conta do quanto estava faminta, começou a devorar o que deram para ela.
— Seu fã clube me encontrou presa na estrada, bateram na minha cabeça e me amarraram numa árvore para ser comida por mosquitos. — Ela falava de boca cheia.
— Como assim fã clube? E peraí, você ainda tava presa? Isso foi a dias atrás, você tá aqui desde aquele dia??
— Eram uns dois idiotas usando capuz e máscara, dizendo que eram seus guias e pelo que entendi estavam ajudando você. Eu imaginei que você tinha mandado eles e em algum momento voltaria aqui para checar se eu já tinha morrido, então depois que consegui me soltar esperei você aparecer para te matar. Mas você demorou...
Darka ficou em silêncio tentando processar o que ela disse. Absolutamente nada sobre duas pessoas mascaradas agindo em nome dele foi sequer mencionado no jogo, mesmo sendo algo tão importante para a história. Talvez fosse algo que seria revelado em uma atualização futura que nunca chegaria agora que o jogo foi encerrado.
— Eles tinham nomes?
— Ah, tinham sim, disseram que se chamavam Dia e Noite e falaram que estavam te ajudando a trazer a Yrina de volta. Falaram que era seus guias ou coisa do tipo. — Ela baixou a cabeça, fazendo um biquinho. — Eu... sinto muito por ter te julgado mal. E por ter tentado atirar em você. E por tentar te esfaquear. E pelos chutes. Ah, e pelo soco também.
— Tá tudo bem. — Darka cruzou os braços, tentando parecer mais zangado. — Quero dizer, não, não tá tudo bem porque agora todo mundo, especialmente seu pai e a Katarina, acham que fui eu quem te raptou. Aceito as suas desculpas, mas agora você vai ter que resolver isso.
— Tá... Mas eu não sei o que fazer também. — Daena tirou um pedacinho de maçã grudado em seu rosto. — Não é como se eu pudesse limpar sua barra assim.
— Aliás, Daena... O que você quis dizer aquela hora com "eu sabia"?
Daena virou o rosto, extremamente envergonhada. Não queria admitir que desde pequena sempre teve a esperança de que o filho de Yrina não seguiria os passos da mãe. No começo, ela apenas queria que isso fosse um exemplo para seu pai ver que ela não precisava herdar as responsabilidades do governante da província, mas com o tempo e muitos livros depois, Daena acreditava mesmo na fantasia onde o herói quebraria o ciclo e salvaria todos aqueles que não esperavam por isso. Era uma fantasia juvenil, ela sabia, mas ainda queria acreditar que nem tudo era previsível assim. Quando viu com os próprios olhos a torre do relógio de Talphen destruída pelo seu "herói", seu coração se encheu de mágoa e sentimentos de vingança em relação a Darka, fazendo ela jurar que impediria ele.
Depois de um longo suspiro, ela decidiu ser honesta com ele.
— É só que eu acreditava em você. Eu queria que você não fosse como a Yrina, que fosse alguém bom.
— E você acha que agora eu sou? — Darka deu um sorriso animado para Daena, feliz com o que ela disse.
— Não. — Daena viu o sorriso de Darka diminuindo depois de ouvir a resposta, antes de completar. — Você sempre foi.
Dessa vez foi Darka que ficou sem graça, tentando disfarçar com uma risada. Ele se levantou e começou a recolher as coisas, enquanto Daena sorria com a reação dele.
— É melhor irmos logo, seu pai tá virando a província de Oenith inteira atrás de você. A estrada fica logo ali na frente.
Os três continuaram seguindo a trilha, com Daena e Miko contando um ao outro como conheceram Darka. Ele apenas fingia não ouvir, mas às vezes se pegava entrando na conversa. Quando chegaram próximo à estrada, ele parou e se virou para eles, sorrindo.
— Daqui em diante posso acreditar que vamos ser amigos, né?
Assim que Darka pisou para fora dos densos arbustos da beira da estrada, um silvo familiar soou nos ouvidos dele, seguido de uma dor imensa.
Uma seta disparada por Katarina estava fincada na lateral de seu abdômen.
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