A rua do mercado estava movimentada, com muitos vendedores barulhentos e clientes apressados andando de um lado para o outro. Era um cenário animado e até adorável, mas Darka não conseguia aproveitar nada já que a notícia do oficial da guarda ainda estava rodopiando em sua mente. Daena era a garota de antes, realmente um tanto irritante e teimosa, mas ele não tinha desejado nenhum mal a ela. Mesmo que tenha prendido Daena com as correntes, elas iam se desfazer em algumas horas e a menina provavelmente iria para Fawn. Talvez ela até ainda estivesse por lá e não avisou ninguém.
Miko ia comentando sobre os produtos enquanto passavam pelas barracas, mas Darka apenas acenava distraído.
— Senhor... Está cansado? Podemos parar e descansar, talvez comer também.
— Quê? Ah. Desculpa, Miko. — Darka se recompôs, levantando seu cabelo e prendendo em um rabo de cavalo. — Cê falou algo sobre comer? Acho que tô com fome mesmo, o cheiro da comida daqui tá me deixando louco.
Os dois escolheram uma barraca que vendia algum tipo de caldo com folhas e o que parecia ser camarão. Darka abaixou um pouco a máscara para sentir melhor o aroma e seu estômago apertou.
— Não está com calor com essa máscara, senhor? Vai ser difícil comer com ela também, não é melhor tirar?
— Ah... droga. — Darka levantou a máscara novamente. — É que... eu tenho essas marcas enormes no rosto, sabe? Aí as pessoas não gostam, elas acham esquisito.
— Mas que absurdo! O senhor Darka é muito bonito!
— Eu não disse que eu era feio, Miko. E você ainda tá me chamando de senhor, para.
Miko tirou da bolsa um pedaço de gaze e um rolinho pequeno de fita que Darka identificou como sendo um daqueles adesivos que se põe em curativos. Fazendo sinal para ele se abaixar, Miko começou a cobrir as marcas do rosto do amigo, enquanto a gaze foi enrolada na altura do seu nariz.
— Com isso aqui dá para esconder! E a boca fica pra fora, aí dá para comer também.
— Legal, tô numa vibe meio Reita do TheGazette. — Darka sorriu enquanto apalpava o rosto. — Valeu Miko, agora é torcer pra não me reco... co... confundirem com outra pessoa.
Os dois sentaram no banco ao lado da barraca após comprarem o caldo, e observaram alguns soldados passando em grupo pela rua de forma intimidadora.
— Miko, cê conhece a tal da "princesa de Talphen" que tão procurando?
— Pessoalmente não, mas dizem que ela é muito gentil e educada, apesar de ser um pouco impaciente às vezes.
— Gentil e educada? Vish. É uma ótima mentirosa também.
— Mentirosa? Improvável, senhor. O governador é bem rigoroso com a educação dela, não acho que mentiria.
— De qualquer forma acho injusto colocarem a culpa em mim, ela já é crescida o bastante pra saber onde vai. Aquele negócio de direito de ir e vir, ela deve tá só exercendo o dela né? — Darka resmungou.
— Verdade. — Miko pausou repentinamente como se tivesse notado algo e observou Darka por alguns segundos. Percebendo o que tinha dito, Darka travou com a cuia do caldo ainda na boca.
— Talvez a gente pudesse ir procurar ela! — Miko exclamou.
Darka quase engasgou, em parte aliviado por Miko não ter notado que ele quase entregou a própria identidade.
— O quê? Por quê?
— Estou vendo que o senhor parece muito preocupado com ela. E se o Impronunciável está com a Lady Daena podemos capturar ele também! — Os olhinhos de Miko brilhavam. — Aí conseguiremos livrar o mundo do mal e ainda salvar a princesa de Talphen!
— Opa, pera aí, né. Você tá pensando alto demais pra alguém que tem um metro de altura. O que aconteceu com o "ele é assustador, espero nunca encontrar com ele"? Aliás, tenho certeza que o tal Impronunciável nem tá com aquela doida, se estivesse já teria devolvido de tão chata que ela é.
Darka entornou o caldo, querendo encerrar aquele assunto logo. Mas um misto de remorso e culpa ainda pairava lá no fundo de sua consciência.
"A culpa não é minha, se tivesse sido menos violenta e teimosa ela estaria aqui antes mesmo que a gente. Amara não vai acreditar quando eu... pera aí."
Ele se virou para Miko, que ainda terminava seu caldo fazendo um biquinho de frustração. — Miko, vamo atrás da Daena.
✰★✰★✰
Antes mesmo de abrir os olhos, Daena percebeu que estava sentada no chão, amarrada a uma árvore e com uma venda. O ar úmido da floresta entrava pelo seu nariz, deixando ela mais desconfortável ainda.
— Olá?
Pelo eco que sua voz fez, percebeu que provavelmente estava em uma clareira e tentou se mexer para afrouxar as cordas, sem sucesso. Parou quando ouviu passos esmagando as folhas.
— Noite, ela acordou. — A figura andou até Daena, levantando sua venda. Uma máscara preta e branca a encarava, com detalhes que remetiam a um sol. — Olá, senhorita Evelot! Espero que tenha tido um bom descanso.
— Quem é você?! Se está atrás de recompensa por mim, esquece! Meu pai não vai...
— Não confunda as coisas. — Interrompeu a figura. — Você está aqui por ter desrespeitado nosso mestre.
— Mestre?
Uma voz masculina interrompeu.
— Sim, nosso mestre e Lorde, destinado a subjugar este mundo. — A outra pessoa respondeu Daena. — Sua audácia em tentar capturá-lo foi digna de risadas.
— Vocês estão falando daquele imbecil do Darka? Trabalham para ele?
— Como ousa falar assim do Lorde! — A jovem apertou as bochechas de Daena, que tentou chutá-la mas não teve sucesso. Noite se aproximou e segurou o ombro da irmã tentando acalmá-la, mas ela apenas bufou e virou de costas para a prisioneira.
— Cuidado com o que fala, senhorita Daena. Não admitimos calúnias contra o nosso mestre.
Pela postura e voz, o jovem parecia ser um pouco mais velho que ela. Daena o encarou, tentando decifrar as intenções dele, mas era difícil já que ele também estava com a metade superior de seu rosto coberta por uma máscara.
— Estão bravos só porque eu quase peguei o Darka? Ah, façam-me o favor, né? Quem são vocês? O fã clube dele?
— Não importa a você quem somos. E por que chama o Lorde de "Darka"?
— Ah... você não sabe? — Daena ativou o modo presunçosa. — Ele mesmo me disse para chamá-lo assim. Só amigos e inimigos chamam ele desse jeito. Vocês não sabiam disso? Minha nossa...
— Como é que... É mentira sua! E já chega disso. — Noite se virou para ir embora. — Seu castigo será ser comida por lobos selvagens. Sua morte será um sacrifício para Lady Yrina.
— Espera! — Ela adicionou um pouco de drama a atuação, tentando conseguir mais informações dos dois. — Se vou morrer, pelo menos posso saber quem exatamente são meus captores? Um inimigo digno se apresenta, não? Eu soube que a grande bruxa era uma pessoa muito adepta da educação e...
"Espero que sejam burros o bastante para acreditar nisso..." Daena pensou.
— Nós somos Dia e Noite. Aqueles que abrem o caminho para a vinda de nossa mestra! Os que constroem os pilares para a missão do Lorde xis xis xis darquicha... do filho de Yrina.
"Eles são burros."
— Espera aí, isso quer dizer que vocês têm ajudado o Darka esse tempo todo?
— Mas é óbvio! — Dia tomou a frente, fazendo pose de orgulhosa. — Nós somos os guias. Somos nós quem colocamos ele no caminho certo!
Noite pegou na mão de Dia e a puxou, fazendo um aceno com a cabeça para a prisioneira.
— Adeus, senhorita Daena. — Os dois se viraram e foram embora.
— Vocês não me responderam direito! Mal-educados! Minha tia... Eu vou pegar vocês!
Daena se certificou de não ouvir mais os passos de seus captores antes de parar de bravejar. Ela sabia muito bem que não existiam lobos nas florestas de Oenith, e os únicos bichos que provavelmente se alimentariam dela eram os malditos mosquitos. Ela começou a analisar sua situação como sua tia havia ensinado, percebendo que suas mãos estavam presas em volta da árvore e seus pés amarrados por cordas, dificultando qualquer tentativa de fuga. O fato de não saber exatamente onde estava também era um desafio, mas ela não ia desistir, afinal ainda tinha que ter uma palavrinha com o Impronunciável.
✰★✰★✰
Darka e Miko conseguiram pegar carona com alguns mercadores em um caminhão barulhento, chegando ao entardecer na estrada onde Daena estava na última vez que Darka a viu. Ao reconhecer o arbusto onde ela o jogou, ele fez sinal para o motorista e desceram.
— Queria ter tido essa ideia antes, andar o caminho todo é um porre. Na volta vamos pegar carona de novo, Miko.
— Mas ainda não entendi uma coisa, senhor. Você disse que não conhecia ela, mas sabe onde ela esteve pela última vez.
— Bom, conhecer eu realmente não conheço não, mas vi ela por aqui. — Darka pareceu fazer algumas contas em sua mente, fazendo uma careta de frustração em seguida. — Se bem que isso já faz uns dois ou três dias...
— Três? Será que ela está bem? São muitos dias!
— A essa altura ela já deve ter... — Algo escondido por entre as folhas chamou sua atenção. — O que é aquilo?
— O quê? Viu alguma coisa suspeita? — Miko se escondeu atrás de Darka. — É o esqueleto dela? Ela morreu?
— É a espingarda da Daena. Eu reconheceria de longe essa porcaria, ela tentou atirar em mim com isso.
— Ela tentou atirar em você?! Por quê??
— São águas passadas, Miko. E águas passadas não movem montanhas. — Darka pareceu sério ao falar isso e Miko apenas concordou com a cabeça, achando que seria rude corrigi-lo. — Certo, você consegue cheirar isso e seguir ela pelo olfato?
Miko encarou o amigo com uma cara de quem perguntava se aquilo era sério.
— Eu não sou um cachorro.
— Ah... — Era a primeira vez que Darka via Miko falar tão sério. — Foi mal.
— Mas parece que tem uma trilha aqui, vamos seguir! — Miko exclamou, voltando a sorrir.
Seguir a trilha não foi uma tarefa fácil, já que muitas vezes o caminho parecia sumir entre a vegetação, mas graças ao olhar afiado de Miko eles conseguiram se manter na rota. Depois de cerca meia hora andando, o sol já havia se posto quando a trilha acabou em uma ampla clareira que estava iluminada pela luz de uma pequena fogueira. Se havia alguém ali, tinha saído há pouco tempo.
— Senhor Darka... eu não sei se devemos continuar, já está ficando escuro. Talvez a gente possa aproveitar essa fogueira e descansar aqui...
— Mas a gente tá perto, eu sinto isso! — Darka levantou a voz, como se quisesse ser ouvido pela floresta toda. — O fedor de pirralha mimada, não tá sentindo? O futum nojento de adolescente!
Um barulho veio do alto, e Darka olhou a tempo de ver uma garota muito zangada caindo em sua direção. Por alguns centímetros ele evitou levar uma pedrada na cabeça, desviando do ataque surpresa de Daena.
— Desgraçado! Eu sabia que você ia voltar aqui! — Daena levantou, com um olhar feroz em direção a Darka. — Veio terminar o trabalho sujo, né?!
Ela avançou na direção dele, agora armada com um pequeno punhal. Darka respirou fundo e começou a lembrar dos comandos das magias, fazendo algo que estava esperando ansiosamente para testar. Assim que Daena se aproximou, ele estendeu a mão e um escudo de energia se formou, bloqueando a investida da menina. Sem perder tempo, sua mão livre invocou as correntes que já tinha usado antes e tentou prendê-la, mas ela desviou a tempo dando alguns passos para trás.
— Seu traiçoeiro! Não vou cair nessa de novo!
— Será que a gente pode conversar sem você tentar me matar? Por uns cinco minutinhos só!
— Calado! Já ouvi você falar demais!
Daena mirou um soco no estômago do seu oponente, mas assim que deu dois passos na direção dele começou a cambalear, prestes a desmaiar. Antes que caísse, Darka já estava ao seu lado para segurá-la.
— Daena? Ei, o que aconteceu? Daena?
Vendo a cena, Miko saiu detrás da árvore onde havia se escondido, correndo na direção deles.
— Senhor Darka... — Miko cochichou. — Ela morreu?
— Credo Miko, é claro que não! Primeiramente para de ficar perguntando se os outros morreram, é feio! Segundamente, me chama só de Darka e me ajuda aqui a colocar ela num lugar mais confortável.
Os dois se aproximaram da fogueira e arrumaram o local para passarem a noite. Darka usou sua capa para servir de cama para Daena, que ainda estava desacordada, enquanto Miko saiu para pegar um pouco mais de lenha. Algumas frutas que compraram na feira agora estavam assando no fogo.
— Já faz quase três dias que eu cheguei aqui, dei três passos e voltei dois. — Darka resmungou enquanto comia um punhado de frutas vermelhas. — Nesse ritmo eu só vou ver o Amara ano que vem.
Um barulho tirou ele de seus pensamentos, e ele se virou para ver Daena sentada apontando o punhal para ele com as mãos tremendo. Darka apenas pareceu confuso por alguns segundos, logo revirando os olhos e pegando um cantil de água de sua bolsa. O entregou com uma maçã para a menina, que transitava o olhar entre o jovem e os itens.
— Sei que não confia em mim, mas não faço ideia do que aconteceu contigo nos últimos dias. Se foi alguma coisa causada por eu ter te prendido, sinto muito, de verdade. Pode não acreditar também, mas tô tentando te ajudar aqui.
— Eu nunca vou acreditar em você, você é o Impronunciável!
O barulho de galhos caindo chamou a atenção dos dois. Miko estava parade a alguns metros, com uma expressão confusa.
— ...Impronunciável?
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