— Imbecil. Estrupício. Panaca. Mocorongo. Cara de fuinha...
Daena observava o céu azul quase sem nuvens, tentando lembrar se já havia dito "paspalho". Estava deitada na estrada de terra e grama, resmungando de frustração após passar quase duas horas tentando se soltar das correntes que Darka pôs em seus pés. O som de passos se aproximando fez ela se levantar de repente, assustada. Avistou duas pessoas encapuzadas e cobertas com mantos na altura dos joelhos, que pararam ao ver a menina sentada no chão. Pareciam usar máscaras que cobriam a metade superior de seus rostos.
— Quem... São viajantes? Podem me ajudar?
Os dois apenas se entreolharam em silêncio, até um deles se aproximar da espingarda de Daena que estava jogada fora do alcance da menina.
— Ei, isso é meu! — Daena começou a se preocupar quando a pessoa se aproximou mais ainda com a arma em mãos. — Espera... O que vai fazer??
A figura se aprumou, apontando a espingarda vagamente na direção dela. Ao tentar destravar a arma notou que estava emperrada, e em um rápido movimento soltou a trava com certa agilidade. Daena suava frio ao perceber que agora estava na mira e fechou os olhos esperando o disparo.
— Não!
O som de dois tiros chegou em seus ouvidos, mas a dor não veio. Rapidamente ela abriu os olhos, vendo apenas que as correntes agora estavam em pedaços.
— Ah... Obrigada! Ha, ha, por um instante achei que você ia atirar em m... — Daena foi interrompida por uma coronhada na nuca.
✰★✰★✰
A hospedaria do posto de guarda era simples, mas também surpreendentemente bem equipada. Os quartos tinham camas confortáveis e um banheiro individual, para felicidade de Darka. Ele havia descoberto no meio de sua roupa o que aparentemente era sua carteira com uma boa quantidade de draks, a moeda do jogo, então conseguiu pagar um quarto para ele e Miko. Isso fez muitas perguntas começarem a surgir sobre o que aconteceu com seu inventário na conversão do jogo para uma "realidade", e uma rápida investigada resultou em apenas alguns itens de consumo em pequenas bolsas de seu cinto. Coisas como pedras de refinamento e itens de evento pareciam ter sumido, assim como objetos grandes e poções.
O mais estranho era possuir memórias de ter adquirido itens como "Lauren", mas não como "Darka". Ela percebeu que as recordações do corpo de seu personagem eram um pouco diferentes do que havia acontecido no jogo, principalmente na gameplay, então chegou à conclusão de que provavelmente não teria um armazém cheio de itens em todas as cidades, disponível ao seu bel-prazer.
— Se não se importar eu vou tomar um banho primeiro. — Darka começou a prender o longo cabelo. — Tomara que tenha água quente...
— Acho que eles têm apenas uma tina enorme de água fria mesmo. — Miko observou enquanto tirava sua bolsa do ombro e colocava na cama. — Água quente só tem em cidade grande.
Darka suspirou desapontado, já esperando esse resultado. Pelo menos água fria ainda era água e um banho gelado ainda era um banho. Ele deu de ombros e se dirigiu ao canto do quarto onde ficava o projeto de banheiro, que era separado apenas por uma divisória de madeira e uma cortina garantindo um mínimo de privacidade.
Já sem roupas, ele tirou o pano que cobria seu rosto por último quando entrou na enorme tina. Apesar da aparência antiga, parecia um daqueles ofurôs chiques que se via em revista de decoração e tinha até um tipo de banquinho dentro como uma jacuzzi.
Quando um arrepio percorreu seu corpo ao sentar na água gelada, ele percebeu as marcas na própria pele, os estigmas que simbolizavam sua origem e canalizavam seu poder. Darka ficou observando os padrões azuis por alguns segundos, sentindo a energia que fluía por eles. Seus dedos percorreram as marcas até chegar em seu rosto, onde terminavam em um desenho de lua crescente embaixo de seus olhos. Uma risadinha fugiu de sua boca ao perceber o que estava fazendo.
— Ainda bem que minha customização andrógina é bonita. Imagina se eu tivesse feito zoeira e usado aquele modelo pronto do Michael Jackson de tanguinha? Que doideira.
Seus pensamentos foram interrompidos pela cortina abrindo de repente.
— Eu trouxe uma toalha!
Ele congelou no lugar ao ver Miko o encarando.
— Miko! Eu...
— Está tudo bem? Só vim trazer uma toalha extra que tinha comigo, percebi que você não trouxe uma.
— Ah... obrigado? — Ele observou Miko colocar a toalha em um canto ao seu alcance, tentando decifrar a atitude da pequena criatura. — Tá de boas, Miko?
— Está sim! Por que a pergunta?
— Nada não... Na verdade, você... por um acaso sabe quem eu sou?
— Ah, eu deveria saber? Sinto muito! — Miko se apressou em fazer uma pose de desculpas, abaixando a cabeça. — É que eu meio que sou ruim em lembrar do rosto das pessoas e então eu não reco...
— Pera, você tem prosopagnosia? — interrompeu Darka, soando aliviado.
— Perdão?
— De qualquer forma, eu não sou ninguém importante não, tava só brincando. — Ele balançou a mão para mudar de assunto. — Na real meu nome é Darka, me chama assim a partir de agora. E isso não é um pedido.
— Sim, senhor Darka!
Miko ficou pensando por alguns segundos, processando a informação inesperada sobre seu problema ter um nome. Queria perguntar mais sobre isso para Darka, mas também não queria ser inconveniente, então apenas acenou com a cabeça e se virou para sair.
— Peraí, Miko. Você falou mais cedo que o Impronunciável tinha destruído a catedral de Talphen, e também disse algo sobre um rio de sangue... O que mais ele fez?
— Ah, ele fez muita coisa! Ninguém sabe direito de onde ele veio nem como apareceu, mas já faz quase dois anos que começou a acontecer uns eventos estranhos. Meu tio disse que a primeira coisa foi a névoa venenosa da Ruína dos Corvos ter desaparecido!
— Mas isso não foi uma coisa boa? — Darka lembrou que essa era uma das primeiras missões principais do jogo. — Afinal era uma névoa tóxica né?
— Sim, era tóxica, mas como a Ruína dos Corvos era um antigo campo de descarte de corpos, muitos cadáveres zumbis eram mantidos presos lá pela neblina. Depois que ela sumiu, eles escaparam e ficaram atacando as vilas lá perto.
— Isso o jogo não me mostrou... que estranho. — balbuciou Darka, repassando a história na cabeça.
— Aí minha prima estava na cidade quando ele incendiou toda a ala de estudos da biblioteca de Norian, destruindo manuscritos inestimáveis! Até hoje só conseguiram recuperar metade da coleção original... O amigo da minha tia também viu ele jogando uma pessoa da Ponte do Relógio, num ritual macabro de sacrifício!
— Misericórdia, Miko! Não foi... não acho que ele faria um ritual de sacrifício. Talvez tenha sido só um espantalho quebrado que por acaso ele achou jogado no meio da ponte e que tava atrapalhando o caminho. E a parte da biblioteca que queimou eram livros de Direito e biografias de gente rica, ninguém lê essas coisas.
Darka suspirou e afundou um pouco mais na tina. O que Miko disse batia com as rotas que tinha escolhido no seu jogo, e pelo visto as consequências não foram muito bem esclarecidas. Amara nunca mencionava nada sobre coisas relacionadas a jornada do jogador, mas Darka sabia que ele tinha conhecimento de onde ele passava porque sempre que voltava à oficina dele depois de uma quest, Amara comentava algo sobre o lugar onde aconteceu.
— O senhor não conhece mesmo O Impronunciável? Ele é filho de Yrina, a bruxa que quase dizimou o continente 100 anos atrás! Ele com certeza é o tipo de pessoa que faria um sacrifício. Dizem que ele está tentando trazer a mãe dele de volta...
— Miko, cê nem conhece ele pessoalmente! E se ele for um cara legal que tava tentando fazer coisas legais, mas acabou parecendo uma coisa ruim? Nunca passou pela sua cabeça que as pessoas podem não ser o que parecem?
— Hã... Na verdade, não. Mas foi o que aconteceu, não tem como dizer que ele não fez essas coisas. — Miko deu de ombros. — Parece que alguns dias atrás ele esteve em Zieg, uma vila próxima daqui e colocou fogo na cidade! Falaram que se não fosse pela heroína Katarina, tudo teria virado cinzas. Ela até disse que conseguiu encurralar ele e machucá-lo, mas ele se acovardou e fugiu.
— Ei, ela que começou o fogo quando soltou aquele maldito poderzinho dela!
— Você estava lá?? Caramba, você viu ele?
— Err... não, eu não vi, mas vi a Katarina derrubando uns barris de óleo quando estava correndo atrás dele, ok? As faíscas daquela espada dela que começaram o fogo.
— Sério? Mas ela derrubou porque estava atrás dele... então tecnicamente a culpa é dele, não é?
Darka apenas resmungou, desistindo da conversa. Não queria pensar muito nisso, senão ia acabar tentando "continuar o jogo", resolvendo as encrencas e limpando seu nome. Mas isso ia tirá-lo do caminho até Amara, e sinceramente ele já estava ficando impaciente.
— Ah! Está saindo vapor! — Miko apontava para a água da tina, de onde saia uma fumacinha sutil. — Não sabia que tinha água quente!
Só naquele momento que Darka percebeu a temperatura agradável da água. Quando olhou, realmente havia uma camada de vapores saindo e as marcas em sua pele que estavam debaixo da água brilhavam em um tom avermelhado muito de leve.
"Caramba, eu também sou um aquecedor?? Não sabia que minha magia passiva fazia isso." — Ele pensou enquanto esfregava os braços.
— É... na verdade, eu esquentei com a força da minha indignação por tomar banho gelado. — Darka brincou, com um fundo de verdade. — Se quiser eu esquento pra você depois também.
— Ah eu adoraria! O caminho até Caadis é longo e um banho quente vai dar bastante energia para a viagem.
— Espera, você tá indo pra Caadis também? A gente pode ir junto!
Darka levantou da banheira animado, assustando Miko por um momento.
— S... Sim, podemos ir sim, seria uma honra! Mas... — Miko levantou a toalha em direção a Darka. — Melhor se cobrir antes que pegue um resfriado.
✰★✰★✰
O dia amanheceu preguiçoso, com uma neblina forte e o ar frio. Miko disse que era um sinal de que o dia seria ensolarado, e algumas horas depois de saírem do posto realmente já estavam sob o sol da manhã.
— Esse mapa que você me deu é confiável mesmo? — Darka perguntou enquanto andava. — Não lembro de ser tudo tão longe.
— Eu comprei esse mapa de um cartógrafo da capital, tenho certeza que é confiável. Talphen fica a alguns quilômetros, se quiser podemos checar outros mapas na cidade.
— Nah, só quero mesmo chegar em Caadis. Mas não faz mal cortar caminho por lá.
— É uma pena que o senhor não queira ir de trem, seria uma viagem bem rápida...
— É que... eu fico enjoado em trens. — Na verdade, Darka só não queria aumentar as chances de ser reconhecido, já que trens estavam sempre lotados.
— Então andando acho que vamos chegar lá amanhã à tarde, isso se não demorarmos muito na cidade. Mas posso perguntar o que pretende fazer em Caadis, senhor?
— Eu já disse pra não me chamar de senhor! E na verdade eu quero ir até a vila de Olsid. Preciso encontrar uma pessoa que mora lá. Você conhece o mecânico Amara? Ele tem mais ou menos um e sessenta de altura, cabelo rosa preso num coque, tem um sorriso fofinho e olhos da cor de âmbar.
— Desculpe, nunca ouvi falar. Mas adoraria conhecê-lo! Se importa se eu for até Olsid também?
— Eu não me importo não, mas você não tem outras coisas pra fazer? Aliás... desculpa perguntar, mas você não trabalha pra ninguém não né?
— Não, eu só gosto de viajar por aí mesmo! É divertido. Menos a parte em que não me deixam dormir nas hospedarias.
Os dois seguiram conversando, sem deixar de notar como uma viagem em companhia parecia ser muito mais rápida. Logo chegaram na entrada de Talphen, a capital da província de Oenith.
A primeira coisa que Darka notou era o contraste da paisagem urbana comparada com as vilas por onde passaram, e mesmo que já tivesse visitado aquela cidade muitas vezes nos seus anos de jogo, ver tudo pessoalmente era como estar lá pela primeira vez. Um grande volume de pessoas andando de um lado para o outro, cavalos e carruagens dividindo espaço com veículos movidos a vapor, prédios e construções feitos de um misto de pedra e metal, um mercado barulhento com produtos dos quatro cantos do continente... tudo tão vivo que Darka teve que parar um momento para se recompor, lembrando de puxar o capuz e colocar sua máscara de lenço.
Miko percebeu a reação emocionada do companheiro de viagem, mas quando estava prestes a perguntar se ele estava se sentindo bem, uma voz ressoou acima das outras na multidão. Um oficial da guarda em um cavalo pediu a atenção de todos e começou a ler um documento em suas mãos.
— Atenção, povo de Talphen! Como todos sabem, "O Impronunciável" está aterrorizando nosso reino em busca de vingança por sua mãe!
As pessoas que começavam a se aglomerar em volta dele vaiaram a menção ao título de Darka, que apenas ficou observando de uma distância segura. O oficial continuou:
— Infelizmente sua última atrocidade foi a gota d'água. Ele sequestrou nossa preciosa princesa!
A multidão soou espantada com a notícia, muitos xingando "O Impronunciável" de coisas que deixaram Darka se sentindo incomodado. Uma coisa era Katarina xingando-o de coisas pomposas, já um grupo grande de pessoas que queriam linchá-lo era bem mais intimidador.
— Que diabos de princesa é essa?? — Darka tentou disfarçar o desconforto cruzando os braços. — Eu nem sabia que aqui tinha princesa! Virou Super Mario isso aqui? E por que eu sou o Bowser?
— Dito isso, senhores, o governador declara que haverá uma generosa recompensa para quem trazer a Lady Daena de volta em segurança!
Darka travou.
— Daena...?!
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