— Daena!
Katarina cavalgava às pressas, montada em um robusto cavalo branco, parando assim que avistou a garota. Desmontou do cavalo e examinou a menina de cima a baixo procurando algum arranhão ou machucado, soltando um suspiro de alívio ao ver que ela estava bem. Escondido, Darka notou que a heroína estava uma bagunça, com o cabelo dourado desarrumado e sua trança quase se desfazendo.
— Por onde você andou? Acredita que aquele covarde fugiu no meio de nossa épica batalha? Fiquei com receio dele ter encontrado você!
"Bem, acho que eu encontrei ele primeiro." — Daena pensou, dando uma espiada de canto de olho para o arbusto onde jogou Darka. Ele apenas lançou um olhar entediado para ela.
— Eu fugi assim que o fogo começou. Estava escondida e resolvi sair de perto quando percebi que estavam lutando.
— Fez bem, querida. — Katarina abraçou Daena. — Aquele imundo fugiu novamente! Imagina se ele tivesse a alcançado...
— Eu estou bem, tia. Inclusive... eu acho que vi o Impronunciável indo na direção noroeste depois que ele fugiu.
— Noroeste?! Tem certeza disso, Daena?
— Sim, senhora! Ele estava sorrindo com uma cara maligna, como se estivesse tirando sarro da grande cavaleira da luz divina. — A menina fez uma atuação dramática exagerada.
— Aquele ser desprezível! Herege! Escória! Vou arrebentá-lo com a força de mil chicotes! Daena, estamos perto da vila de Fawn. Vá para lá e espere algumas horas antes de voltar para Talphen. Diga a seu pai o que aconteceu.
— Sim, senhora.
— Tenho certeza que ele irá atrás dos últimos selos que prendem a mãe dele. Irei impedi-lo de ressuscitá-la!
Katarina se virou para a direção de onde viera, subindo em sua galante montaria e seguindo a estrada para o norte enquanto Daena acenava para ela com um sorriso forçado no rosto. Dos arbustos, Darka apenas observou tudo em silêncio, esperando a cavaleira ir embora. Quando percebeu que ela já estava longe, saiu com uma expressão bem confusa, tirando alguns gravetos de seu cabelo.
— Ela é sua tia?? Que estranho, eu não sabia que ela tinha parentes. Será que eu perdi essa parte da lore?
— Isso não te interessa! Vamos logo antes que eu perca a paciência, quanto mais cedo chegarmos até meu pai, mais cedo providenciamos o encontro entre você e sua mãe.
— Opa, peraí, peraí. A Katarina disse que você vai pra Talphen, mas você me disse que íamos pra Caadis.
— E daí? Eu vou para onde eu quiser!
— E vai pra onde?
— ... Talphen.
Darka respirou fundo. Pelo visto o plano de chegar até Caadis como um prisioneiro não ia dar certo já que sua captora não era exatamente alguém que capturaria sequer um coelho. Ele sentou no chão em uma pose pensativa e começou a divagar.
"Talvez... talvez eu tenha subestimado a situação. Sei que encontrar o Amara seria complicado, afinal uma coisa é apertar teclas e deixar meu personagem seguindo automaticamente para o destino enquanto eu pego um cafezinho e biscoitos, outra coisa é ir pessoalmente atravessando um mapa aberto gigantesco de o quê? Uns mil quilômetros quadrados? Pensei que ir com essa guria pelo menos ia garantir que eu não fosse atacado por outros no caminho, já que eu estaria sob custódia de alguém... ou não também, né, afinal mesmo sendo sobrinha da Katarina essa garota só late."
A linha de pensamento foi interrompida pela dor de um chute nas suas costelas.
— Ai! Mas que p...
— O que está fazendo, energúmeno?! — Uma impaciente Daena começou a puxá-lo pela capa. — Tira sua bunda daí e vamos logo, não tenho o dia todo! Vai perder essa atitude sebosa quando meu pai te castigar!
— Me solta! Não vou contigo pra lugar nenhum! Você é insuportável!
Dessa vez quem perdeu a paciência foi ele. Numa tentativa de se livrar dos puxões da menina ele soltou o fecho de sua capa, fazendo com que ela tropeçasse desajeitadamente. Assim que ela bateu no chão, algo estalou na mente de Darka e o comando de alguma habilidade parecia ter sido ativado, fazendo com que rapidamente algumas correntes saíssem da terra em volta dela e prendessem seus pés.
— Mas o quê...?
"Opa, parece que minhas magias funcionam ainda!" — Darka pensou surpreso, ao mesmo tempo reconhecendo a habilidade de imobilizar que usava quando seu oponente caía no chão. Ver Daena caindo deve ter ativado seu reflexo do comando da magia, e agora ele se perguntava se isso ia valer para outras habilidades também.
— Rá! Agora quem não vai a lugar nenhum é tu! — Ele pegou a capa da mão da garota que ainda estava no chão resmungando enquanto massageava as costas. — Pelo menos agora posso viajar sem uma chata mandona de meio metro me batendo. Falou.
— Volta aqui, seu imbecil!
Ele se virou e seguiu correndo pela estrada, repassando o mapa da região mentalmente e escolhendo a rota que levaria para alguma vila próxima que não fosse Fawn. O jovem não percebeu, mas Daena encarou ele com uma expressão que foi da raiva para uma ponta de tristeza enquanto observava ele correndo para longe.
✰★✰★✰
— Moço, que parte do "eu vou arrancar esse seu sorriso no soco se não parar de me oferecer esse tapete" tu não entendeste?
Um homem empurrava para ele um tecido de padrões elaborados enquanto descrevia o supostamente delicado processo de tecelagem daquela peça, ignorando mais uma vez a recusa intimidadora do cliente em potencial. Perdendo a paciência, Darka apenas grunhiu e se virou para ir perguntar direções em outra barraca antes que a ameaça virasse realidade.
Estava começando a ficar com calor devido ao capuz levantado e a máscara que improvisou para esconder a metade inferior do seu rosto, e se tinha algo que sempre deixava Lauren de mau-humor era passar calor. Fora que fazia quase um dia inteiro que havia acordado no mundo de Red Ocean e o fato de não ter tomado um mísero banho a irritava mais do que nunca. Se não tivesse pegado algumas frutas no caminho, a fome teria uma grande parcela de culpa em seu humor também. Felizmente havia encontrado esse posto de comércio que servia de parada para viajantes e mercadores, mas o par de guardas que faziam a pouca segurança ali eram um risco que não queria correr, então decidiu tentar passar despercebido.
"Se não me engano, tinha uma hospedaria nesse posto... Ou era naquela vila perto do rio? Argh, faz meses que não passo por essa parte do mapa. Aqueles malditos da Black Cat deveriam ter colocado mais quests por essas bandas, fizeram esse monte de vilas aleatórias pra quê? Nem tem recurso direito por aqui! Desde que começaram a colocar mais conteúdo de PvP acabaram largando as outras áreas do jogo. Eu devia ter sido mais mal-educada naquele e-mail de opinião de usuário e mandado eles tomarem no..."
Darka parou e olhou em volta, observando melhor o movimento das pessoas que iam e vinham. Por mais que tivesse consciência de que estava em um mundo de um jogo que conhecia, não conseguia deixar de pensar em como ainda parecia ser apenas uma fantasia, uma mentira. Mas o calor, o barulho das pessoas, a brisa da tarde soprando... Aquilo era muito real. Talvez realmente tivesse morrido ou alucinando, mas estar ali era uma ficha que estava com certa dificuldade em cair.
— Com licença, senhor?
Uma pequena criatura de cor avermelhada, parecida com um kobold fofinho de RPG com cerca de um metro e vinte de altura e olhos verde oliva interrompeu os resmungos de Darka, que se assustou com a repentina interação.
— E... Eu? Tá falando comigo? — Ele observou a criaturinha que olhava para ele com uma expressão simpática. Usava roupas em diferentes tons de marrom, com uma touca estilo aviador que envolvia os dois pares de chifres em sua cabeça. Lembrou que era um luziwurmo, uma raça comum no mundo do jogo que normalmente acompanhava alguns NPCs de mercado. — O que você quer?
— Notei que chegou a este posto agorinha mesmo...
— Eu não quero comprar nada! — interrompeu Darka. — Eu só quero tomar um banho, é pedir muito?!
— Eu não... Desculpe, senhor, deve estar enganado, eu não quero vender nada.
— Não mesmo?
— De jeito nenhum, senhor. — Ile levantou as mãos para mostrar que não carregava nada. Carregava apenas uma bolsa carteiro proporcionalmente pequena.
— Nem serviço?
— Eu só queria perguntar se pode me acompanhar até a estalagem. — O luziwurmo parecia estar com certa vergonha, coçando a nuca. — Eles disseram que não aceitam luziwurmos desacompanhados. Aí vi que acabou de chegar e pensei que poderia estar procurando um lugar para passar a noite...
Darka olhou pensativo para ile, se perguntando o que fazer. Luziwurmos eram geralmente bem agitados e bagunceiros, inclusive tendo "zoomies" com certa frequência, mas aquela criança em particular parecia muito educada. Ele lembrou que a regra da estalagem era provavelmente para evitar problemas como os danos materiais que eles podiam causar quando ficavam agitados. Fora que devido a uma coincidência infeliz, eles eram originários do mesmo continente de onde Yrina veio, Fearaniar, e eram vistos com certa desconfiança por algumas pessoas.
— Se não puder, não tem problema! — tentou arrumar a situação ao ver o jovem pensativo e não conseguir decifrar a expressão dele atrás da máscara. — Agradeço a atenção, tenha uma boa tarde!
— Peraí. Qual era o seu nome mesmo?
— É Miko.
— Ok, e quantos anos você tem?
— Onze.
Darka lembrou que luziwurmos amadureciam mais ou menos ao mesmo ritmo de humanos, embora parassem de crescer aos 14, então Miko era realmente uma criança.
— Tá, vamos. Mas você me mostra o caminho da estalagem porque eu tô mais perdido que azeitona em boca de banguela. E para de me chamar de senhor.
— Sim, senhor! — Miko pegou na capa de Darka, puxando-o.
Os dois seguiram para uma das construções mais ao centro do posto, onde uma placa com o desenho de uma cama estava pendurada. Antes de entrarem, Darka notou um quadro de avisos ao lado da porta, onde um cartaz com uma foto sua balançava ao vento.
Ele parou e puxou o cartaz, olhando para a foto. Um desenho mal feito estava acompanhado de um valor bem alto pela sua cabeça.
— Por que parou, senhor? A entrada da estalagem é logo ali. — Miko continuou puxando a capa de Darka, mas parou ao ver o que ele estava fazendo. — Ah, você viu? O Impronunciável é assustador, não é? Espero que peguem ele logo.
— E cê já conheceu ele pessoalmente, Miko? — Darka se perguntou se a fama de seu personagem no jogo era realmente unânime entre os NPCs daquele mundo.
— Na verdade, não... mas ouvi histórias! Principalmente sobre a mãe dele.
— Mas se você não conhece ele, como sabe que é assustador?
— Porque outras pessoas disseram! Eu não vi pessoalmente, mas muitos amigos meus viram quando ele destruiu a catedral de Talphen com um trovão, BUM! E também quando transformou o Rio Marue em sangue! — Miko falava enquanto gesticulava, fazendo Darka sorrir por baixo da máscara. — Mas ver, ver mesmo eu nunca vi. Espero não ver, senão ele me transforma em tomate.
Miko falava de forma séria e continuou balbuciando enquanto ia em direção à porta da estalagem. Darka voltou a olhar para o papel, se perguntando se Amara teria visto o quanto ele estava valendo.
— Ele não te transformaria em tomate, não precisa se preocupar.
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