— Se vira, agora... e devagar.
Lauren obedeceu à ordem, levantando as mãos e se perguntando se seria uma boa ideia testar se as magias de Darka também funcionavam como no jogo. Ao se virar, teve que abaixar um pouco o olhar para ver quem queria matá-la dessa vez. Uma garota apontava uma espingarda em sua direção com um olhar feroz e orgulhoso, que vacilou por alguns milésimos de segundo ao ver o rosto confuso do suposto demônio procurado.
— Você vem comigo, Impronunciável! — Ela se recompôs e aproximou a espingarda do rosto de Darka. — Nem uma gracinha, ou vou estourar seu cérebro!
— Peraí, garota... Eu te conheço? — Lauren tentava lembrar se havia visto aquela NPC antes, mas não recordou de nenhuma adolescente de um metro e meio com cabelos vermelhos perambulando por aí. — Nunca te vi por aqui antes, você é algum mob?
— Um o quê? — A menina balançou a cabeça para espantar a confusão, agora empurrando a ponta do cano de sua arma nas bochechas do suposto Impronunciável. — Para de tentar me distrair!
Darka virou o rosto, incomodado. Ao notar algo na arma, apenas abaixou os braços.
— E cê disse que vai fazer o quê mesmo?
— Por que baixou a guarda? O que você está tramando?! Vou arrebentar essa sua cara agora! — Ela rapidamente se endireitou para atirar, mas assim que puxou o gatilho, nada aconteceu. — Mas o quê... O que você fez??
"Eita, ela puxou o gatilho mesmo..." — Lauren pareceu surpresa. Se a garota não tivesse esquecido de tirar a trava de segurança da arma, Darka provavelmente não teria HP suficiente para aguentar um dano a essa distância. Aliás, nem tinha como saber se o conceito de HP ainda existia na situação atual, se existisse, já tinha perdido alguns pontos pelo corte no braço.
— Você não é muito nova pra estar andando por aí com uma arma? Não sabia que a guilda de mercenários tava aceitando crianças.
— Cala sua boca! Eu não sou mercenária! — A menina tentava consertar sua arma, mas acabou puxando a trava de segurança com muita força e a emperrou. Ao ver que sua espingarda estava inutilizada, apenas a jogou no chão e partiu para cima de Darka.
— Ei, ei, ei! Calma aí!
— Vou arrebentar sua cara e levar seus pedaços comigo para Caadis! — Ela juntava toda sua força para desferir vários socos contra ele, que apesar de ser bem mais alto, apenas se encolhia em defesa.
— Ai! Para com isso! PARA!! Olha, eu me rendo, tá?! Pode parar de me bater agora! Que saco!
A menina parou de repente, meio incrédula, com os braços levantados prontos para mais uma leva de agressões.
— Sério...? Tipo, vai se render de verdade mesmo?
— Sim, ó poderosa... qual teu nome mesmo?
— Daena!
— ... Poderosa Daena. — Lauren revirou suas memórias mais uma vez tentando encontrar alguma correspondência para o nome, mas não lembrou de nenhuma. Um som de explosão vindo da cidade em chamas a assustou e lembrou-a de que não devia estar ali. A menina pareceu ter ouvido também, e logo ficou cheia de si.
— A Katarina deve estar uma fera agora. Imagina a cara dela quando descobrir que EU consegui capturar o Impronunciável e ela não!
Antes que se desse conta, Daena sentiu seu braço sendo puxado. Darka se apressou em pegar a espingarda do chão com uma mão enquanto arrastava a menina pela outra, indo em direção a um bosque próximo.
— O que pensa que está fazendo, seu execrável?! Me solta!
— Você tem um vocabulário cheio de frescura, parece a Katarina. Só corre!
Eles seguiam mais fundo na mata, indo o mais longe possível dos barulhos de explosões. Darka não soltou a mão de Daena, que se debatia e reclamava, mas corria junto. Só pararam quando chegaram a uma clareira, marcada no mapa mental de Lauren como um acampamento vazio que era usado como ponto de respawn para jogadores.
— Acho que aqui ela não me encontra... Você tá bem? — Darka observou Daena ofegando. — Você não devia gastar energia falando enquanto corre, faz mal pro pulmão.
— Cala... sua boca... — A voz quase nem saía entre a respiração pesada. Caindo sentada de joelhos no chão, ela tentou não tirar os olhos da pessoa à sua frente que só a encarava com pena.
— Olha, eu não vou fugir, tá? Eu devia, sim, claro, afinal você tentou atirar em mim, mas não vou.
Darka se abaixou, sentando ao lado de Daena. Lauren ainda não estava entendendo exatamente o que aconteceu, se era alucinação ou sonho, mas parecia tudo real até demais. Só que se aquilo era de verdade mesmo, sua vida estava em risco e era melhor tomar muito cuidado com o que ia acontecer. Apesar disso, se dar conta de que poderia encontrar Amara pessoalmente causou uma animação que sobrepujava fácil a maior parte da preocupação e, ao se imaginar finalmente abraçando seu personagem de conforto, foi como se todo o medo e receio de estar em um lugar relativamente desconhecido sumissem. Em vez disso, sua mente agora rodopiava em planos para chegar até Amara de forma segura, então esperou a menina recuperar o fôlego para tentar arrumar a situação e tirar vantagem daquilo.
— Daena... Você disse que ia me levar para Caadis, né? Você mora lá?
— Isso não é da sua conta. Você é meu prisioneiro. Prisioneiros não fazem perguntas.
— Ah, qual é? Eu salvei você, sabia? Se a gente tivesse ficado naquele estábulo, a Katarina teria me achado rapidinho. E você parece conhecer ela, sabe que ela bate primeiro e pergunta depois, então ela ia destruir o lugar com a gente dentro sem problemas.
— ...
— Teu silêncio diz tudo. Eu tenho razão, não é? — Darka fez uma cara de provocação. — Anda, admite.
— Calado, Impronunciável! Você fala demais! — Daena levantou de repente, limpando seus joelhos e recolhendo a espingarda quebrada. Darka continuou sentado, agora com as pernas cruzadas.
— Por que você me chama desse jeito? Não lembro de me chamarem assim antes. — Ele pensou um pouco. — É por que meu nome é um tabu entre as pessoas?
— Tabu? Não, é porque ninguém consegue pronunciar mesmo! Foi sua mãe que te deu essa porcaria de nome? Além do péssimo hábito de destruir cidades, ela parece que também não sabe dar nome para o próprio filho.
— Pera... Qual você acha que é o meu nome?
— Ué, o xis, xis... darchaos linha dezoito... ah, que se dane!
Darka começou a ter um ataque de risos. Lauren nunca imaginaria que seu nick realmente era seu nome naquele mundo, o nome de verdade pelo qual todos o conheciam. Daena ficou vermelha achando que as risadas eram por causa dela, descendo uma coronhada na cabeça daquele mal-educado que ousava tirar sarro da sua pronúncia.
— Ahahahahaha... Ai! Por que me bateu? — Ele ainda ria apesar da agressão, e tentava limpar as lágrimas.
— Não ria de mim! A culpa não é minha se você tem um nome estúpido!
— Tá bom, desculpa. Mas não precisa me chamar disso nem de "Impronunciável", isso sim é meio estúpido. Pode me chamar de Darka, meus amigos me chamam assim.
— Mas não somos amigos.
— Meus inimigos também me chamam assim. — Lauren lembrou de alguns contatos de jogo que só chamavam ela para lutas PVP.
— Hmm. Então vou te chamar de Darka. Porque somos inimigos e eu te odeio.
Ouvir o nome de seu personagem sendo dito por Daena causou um estranho nó em sua garganta. Ela se deu conta que já não era mais "Lauren" e sim "Darka". Ninguém ali ia vê-la como uma jogadora em um mundo virtual, mas sim como o filho de uma bruxa que ameaça o mundo. Embora fosse um pouco estranho, não sentia que seria difícil aderir à identidade dele, muito pelo contrário. Na verdade, era surreal como ao mesmo tempo que sabia que era Lauren, uma garota de 24 anos cheia de problemas que morava sozinha e passava boa parte de seu tempo livre jogando, também sabia que era Darka, um jovem ser mágico que nasceu e cresceu em uma terra de fantasia. Era quase como se nunca tivesse sido outra pessoa antes.
"Será que o Amara vai me ver como Darka também? E se ele... tiver mudado?"
— Tá bom, Daena. Vamos para Caadis agora?
— Você está estranhamente animado para ir para lá... — Daena cruzou os braços, olhando com suspeita para Darka. — O que você está tramando?
— Absolutamente nada. Você me capturou, lembra? E disse que ia me levar para lá, então vamos.
Caadis era a cidade mais próxima do pequeno vilarejo onde Amara ficava, Olsid, e de lá eram apenas algumas horas de trem até a oficina dele. Apesar de ter o mapa gravado na memória, Lauren sabia que seria mais fácil andar por aí como prisioneiro de alguém do que como criminoso procurado. Além disso, Daena poderia deixar Darka a par de algumas coisas sobre o mundo.
✰★✰★✰
— Daena, tá apertado. Meu pulso tá doendo. Eu vou morrer e você vai ter que arrastar um cadáver fedido até chegarmos na cidade.
A menina havia insistido em amarrar as mãos de Darka com uma corda, mas estava se arrependendo amargamente disso depois de ouvir ele reclamar pelas últimas duas horas.
— Eu devia amarrar era essa sua boca também! Você não parece nada um demônio poderoso, está mais para um moleque reclamão.
— Ei, eu sou mais velho, me respeita! Aliás, quantos anos você tem? Treze?
— Treze? Está me chamando de pirralha baixinha? — Daena parecia ofendidíssima. — Eu tenho dezoito e meio!
— Eu não disse isso! E eu tenho... 122? — Lauren fez as contas de cabeça. Era essa a idade estimada de Darka de acordo com os fragmentos de história que o jogo deu nesses anos. Na linha do tempo em sua cabeça, faziam apenas dois anos que ele acordou com amnésia em uma caverna na costa do continente, a alguns quilômetros da vila onde Amara ficava.
— Aliás, sabia que eu posso queimar essa corda? Mas eu não quero, porque estou tentando ser uma pessoa legal e te dando a oportunidade de me soltar por conta própria.
— Ah, que pena que essa oportunidade eu vou deixar passar.
— Você é muito chata. É parente da Katarina por um acaso?
— Não interessa.
— Chaaaaaata. Nem seus pais devem gostar de você.
Daena parou, baixando a cabeça e encolhendo os ombros. Darka se aproximou, percebendo que o humor dela havia mudado.
"Ih, será que pisei em algum calo?" — pensou ele.
Ela se virou de repente e seu punho acertou em cheio o rosto do jovem, que caiu sentado com um fio de sangue escorrendo do nariz. Darka notou a expressão de raiva dela logo se transformando em alegria.
— Há! Dessa vez eu acertei E ainda te derrubei! Trouxa!
— Ora, sua... — Darka pulou em cima de Daena para derrubá-la também, sem deixar de notar que isso lembrava as brincadeiras de lutinha que fazia com seus primos mais novos para ganhar a simpatia deles. Não era sua intenção machucar, e esperava que a descontração desse momento deixasse as coisas mais fáceis entre eles.
— Sai de perto de mim, estúpido! — Ela tentou chutá-lo, mirando no estômago. Mas Darka foi mais rápido e enrolou a corda no pé dela, prendendo junto com suas mãos.
— Agora você vai ter que desamarrar pra soltar nós dois.
— Cretino... — Ela começou a desamarrar com extremo desgosto, quando percebeu que Darka ficou nervoso de repente, olhando para a estrada. — O que foi?
— A Katarina... — Darka mal terminou de falar o nome da cavaleira que vinha marchando pela estrada ao longe, quando sentiu o empurrão de Daena o jogando para o meio do mato.
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