Um, dois, três, quatro maços de dinheiro foram enfiados em uma bolsa marrom.
A performance do dia – ou melhor, da noite – foi boa, mas ainda era insuficiente. Mine suspirou e esfregou a toalha macia em sua face, secando o resto da água que escorria após o banho.
Estou tão cansado... até quando eu vou conseguir aguentar isso...?
Quando seus olhos cansados repousaram melancolicamente em sua mão, ele percebeu que seus dedos estavam machucados de tanto ele mordiscá-los. Ele pegou uma bolsinha roxa e retirou de dentro dela dois curativos, cobrindo dois de seus dedos mais machucados.
Aproveitando os curativos, Mine tirou uma fita maior do outro rolo mais largo e colocou sob as marcas nojentas que estavam em seu pescoço. O cliente não foi muito gentil, mas, pelo menos, o pagou muito bem.
Isso é... repugnante...
Antes que ele pudesse refletir sobre sua aparência, a porta do camarim se abriu e ele olhou para quem entrava, esperando que não fosse seu chefe ou Lydia... e parecia que ele tinha alguma sorte afinal de contas.
“Mine,” a mulher alta sorriu, fechando a porta logo em seguida.
“Oi Talia,” Mine sorriu de volta.
“O que você está fazendo aqui hoje?” Talia sentou-se no sofá, bem perto de Mine. “Hoje era o seu dia de folga dos serviços privados.”
“Eu...” Mine olhou para sua bolsa e depois para Talia, “Não precisa se preocupar, eu vim porque tinha um tempinho livre e... um extra é sempre bom, né?” ele sorriu descontraidamente.
Talia suspirou e esfregou o cenho, “Mine, olha aqui,” ela tocou em sua coxa, “você tem uma ótima família. Te apoiam e te amam demais... você tem que parar de esfolar aqui. Conte a eles o que aconteceu e vá para casa.”
Mine congelou e parecia mastigar fatos amargos demais para serem engolidos, mas, conseguiu mascar mais algumas coisas antes de falar. “Eu... não posso,” ele disse melancolicamente. “Não posso deixá-los preocupados de novo. Eu dou conta.”
Talia suspirou profundamente, “Bem, de qualquer maneira pense sobre isso.”
Mine sorriu e fechou a bolsa marrom, “Eu sei, só preciso ficar mais um pouco até pagar tudo o que devo.”
Ela parou por um momento e, depois de revirar os olhos por um longo tempo que quase a deixou cega, ela olhou para Mine novamente. "Falta muito?"
“Não muito,” Mine respondeu animado.
“Então trate de descansar,” sorriu.
As ruas estavam silenciosas como toda madrugada. Já eram três da manhã e nem os fantasmas das lendas urbanas apareciam nas calçadas, onde dormiam alguns mendigos. O caminho para casa era longo e não muito bonito. Esgoto, lixo, gente estranha, fogueiras duvidosas acesas, cheiro de “grama” no ar e comida podre vazando de lixeiras transbordando. Nos becos, você podia ouvir ruídos aos quais não deveria prestar atenção, afinal, você está apenas andando por aí e não precisa estar comprometido com todos os seus sentidos.
O caminho também era melancólico, vazio e frio. A neblina revelava a mudança brusca de temperatura ocorrida ao longo do dia, e as nuvens dispersas e avermelhadas sugeriam que o dia seguinte certamente seria nublado.
Grilos, passos de bêbados e gatos miando ocasionalmente soavam nos ouvidos. A iluminação não era das melhores, mas para quem andava no meio da rua… era o suficiente. Mine caminhou sem medo e, por mais que tivesse tomado banho, ele se sentia tão sujo quanto o homem maltrapilho que quase bateu a cabeça na parede próxima.
À medida que caminhava o bairro aos poucos foi mudando para melhor, com casas mais arrumadas e lixo recolhido (ou pelo menos no lugar que deveria estar). De repente, alguns miados e barulhos de caixas de papelão sendo reviradas soaram próximos à Mine, que desacelerou seus passos.
Um, dois, três gatos. Mais e mais gatos começaram a cercá-lo, e ele não pôde deixar de sorrir quando sentiu o ronronar deles em suas pernas.
“Eu vi vocês esses dias e já sentem minha falta?” Mine riu quando um gato malhado miou intensamente. “Estão sem comida? Vou comprar mais- AHHHHH!”
Quando ele menos esperava, uma sombra pulou em seu peito e ficou presa ali. Por mais assustado que estivesse, seu corpo não reagiu. Mine congelou de medo e a coisa ronronou em seu peito. Ele piscou algumas vezes, e notou que a sombra era um gato preto. Sua pelagem era tão bem cuidada e a coleira amarela com sino lhe dava charme e elegância.
“Umbra?!” Mine finalmente reconheceu a gata, que começou a mordiscar sua bochecha e fazer cócegas nele com seus bigodes finos e longos. “O que você está fazendo aqui?” Riu enquanto ela esfregava o rosto em seu queixo.
Isso era uma grande e interessante coincidência! Mas se Umbra estava ali... onde estaria Addai? Mine tinha certeza de que por ali perto Addai não morava, pois viu seu colega de trabalho pegar o metrô que levava no ** de Judas.
Mine pegou a gata e a examinou novamente para certificar de que ela não era uma ilusão. Umbra o fitava com calma e paciência enquanto ele verificava a etiqueta dourada de sua coleira que tinha o nome dela gravado e as informações de Addai e, realmente, era Umbra.
“Umbra, vou comprar comida para seus amigos de rua e... vamos até minha casa para eu mandar mensagem para Addai porque eu tenho certeza de que você está bem longe de casa, ok?” ele sorriu e acariciou as orelhas da gata, que miou baixinho como resposta.
Com Umbra o seguindo, Mine foi até a única loja aberta da rua e colocou no carrinho de compras um saco de ração para gatos e alguns patês para os gatos idosos que ele viu por ali. Num determinado momento Umbra pulou em seus ombros e dali ela não saia por nada.
A atendente riu ao ver a gata brincando com o cabelo de Mine e com as bandagens em seu pescoço.
“Meu jovem, está muito tarde... você quer que eu chame um táxi para você? Posso chamar assim que você terminar de alimentar os gatos,” a atendente se preocupou.
Mine sorriu e Umbra ronronou em seu ombro, “Está tudo bem. Eu moro perto, então não precisa se preocupar,” ele pegou o saco de ração e a sacola com os patês.
“Você é tão querido,” a velha senhora riu baixinho, “ah! Espere, isso é para você. Agradecemos seu cuidado com nossos gatos de rua,” ela colocou uma sacolinha de balinhas sortidas que ela acabou de pegar nas mãos de Mine.
Imediatamente os olhos de Mine brilharam, “Muito obrigado!” sorriu mais um pouco e saiu saltitante da loja, com Umbra querendo mordiscar sua orelha.
Mine arrumou os potes do beco e começou a distribuir a comida para os gatos, que chamaram mais e mais outros gatos. Umbra os observava de perto, afastando os gatos marotos e aproveitadores das vasilhas com patê exclusivo para os gatos mais velhos, que se aproximavam lentamente e com calma.
Quando terminou de arrumar tudo o que deveria e encher as vasilhas com água nova, Mine acariciou a cabeça de Umbra. “Guardei um sachê só para você,” ele sorriu e a gata ronronou feliz. “Vamos, você deve estar cansada. Pode subir em mim- Umbra? O que foi?”
A gata tinha mudado o comportamento drasticamente. Ela fitava o horizonte com atenção e tensão.
A rua mal iluminada e vazia parecia ser o cenário perfeito para pinturas com muita luz e sombras. Umbra ficou na frente de Mine, impedindo-o de prosseguir. Ele não entendeu muito bem o porquê e até tentou conversar com a gata, que ainda olhava para o horizonte.
“... Umbra...?” Mine chamou-a, mas Umbra permanecia imóvel e tensa. “Tem bastante névoa hoje. Talvez você só esteja com medo-”
“De fato, tem bastante névoa hoje,” uma voz feminina aveludada concordou e Umbra começou a rosnar.
Mine sentiu todo o seu corpo ficar arrepiado, assustado, seja lá o que fosse que fazia todos os seus cabelos se erguerem com tamanho fervor e pavor. Até suas costas ficaram tensas!
A garota era alta e esguia e parecia estar usando um vestido. Será que as lendas urbanas eram reais?! Mine queria fugir, ah ele queria. Ele não queria ser testemunha de Gasparzinho nenhum! Ele estava pronto para lançar a melhor personificação de Usain Bolt, mas suas pernas congelaram ali mesmo, e Umbra permaneceu imóvel na sua frente.
“Me desculpa!” A mulher tropeçou na direção de Mine, revelando seu rosto cansado. “Me mudei recentemente e meu fuso horário tá todo zuado. Meu nome é Bella, prazer em conhecê-lo, camarada da madrugada!” disse radiante, mas Umbra contrastava com a sua receptividade assustadora, assim como Mine, que, de olhos arregalados, tirou o resto de coragem de seu íntimo.
“P-prazer... B-Bella,” ele tentou recuperar a compostura perdida, mas não conseguia fazer com que suas pernas parassem de tremer.
“Bella! Já organizei suas compras, querida,” a senhora da loja chamou a mulher.
“Obrigada!” a mulher sorriu, ainda mais radiante. “Te vejo por aí, camarada da madruga!” Sorriu e Umbra sibilou quando sua mão se aproximou de Mine, o que a fez recuar cautelosamente.
Mine saiu sem dizer uma palavra. Ele apenas se curvou, pegou uma Umbra tensa e saiu com passos apressados e... nunca mais olhou para trás! Ele fervia de determinação para voltar para casa o mais rápido possível!!
Bella riu e entrou na loja da velha senhora, que tirou do bolso um maço de cigarros e ofereceu um para a mulher, que aceitou. Bella deu uma tragada e soprou a fumaça, que se exibiu perfeitamente na penumbra, criando formas e desenhos únicos à medida que se dispersava. A velha puxou um banco e sentou-se nele. Logo, um gato cinza pulou em seu colo e ronronou enquanto ela o acariciava, mas sibilava toda vez que Bella tentava tocá-lo.
“Ah esses gatos...” Bella suspirou.
“É só uma questão de se acostumar,” a velha senhora riu baixinho. “O bairro é bem tranquilo, né?”
“É incrível,” Bella soltou a fumaça do trago. “Aquela gata... eu já vi aqueles olhos em algum lugar antes...”
A velha senhora sorriu e acariciou a bola de pelos cinza em seu colo. “O nome dela é Umbra. Seu dono é um jovem rapaz charmoso, mas ele não é deste bairro.”
“Hm… interessante,” Bella deu um último trago. “Muito obrigado pela sua parceria, senhora.”
Os gatos rosnaram quando Bella passou ao lado deles na rua, mas ela não se importou e apenas arrumou algumas panelas bagunçadas antes de sair. Ao olhar para trás, a boa velhinha estava cercada pelos felinos, que nem sequer tocaram nas tigelas que Bella arrumou.
“Não consigo entender por que esses gatos me odeiam...” Bella resmungou, fechando a porta de seu pequeno e humilde apartamento.
O cafofo não era um dos melhores, mas era ideal para o momento. Mofo recém-limpo e outras manchas de algo não identificável seriam cobertos com tinta nova – já preparada em um canto. Os azulejos da cozinha estavam gastos, mas preservaram o que antes era um desenho detalhado de algo verdadeiramente belo.
A sala ainda seria arrumada e caixas de papelão obstruíam parcialmente a passagem de quem ali passava. Algumas das caixas tinham etiquetas escritas em uma língua estrangeira, e outras eram como verdadeiras caixas misteriosas que Bella teria que dedicar um tempo para organizar a miscelânea que estaria dentro.
Ela deixou a sacola na mesa de jantar e se espreguiçou. Um par de chifres levemente torcidos apareceu em sua testa, e uma cauda escamosa pesava sobre seu short, que ela trocou por uma saia sob medida. Voltando às sacolas, ela as abriu uma a uma e colocou as compras na geladeira, ao lado de recipientes de isopor que lembravam marmitas. Ela pegou uma das marmitas e colocou-a sobre a mesa, ao lado dos talheres e de uma lata de cerveja.
Quando ela estava prestes a dar a primeira mordida, ela ouviu alguém usando o banheiro. “Ei, não deixe meu banheiro imundo.”
"Só fui ver se estava funcionando", uma voz masculina disse. “Cê tá comendo de novo? Não vou poder te mandar mais nada em menos de 1 mês, tente racionar!” ele resmungou.
“Nah, eu caço alguns trouxas por aí,” Bella tomou um gole de cerveja depois de comer o que quer que fosse que estava no prato. "Ei. Encontrei a gata", ela disse, e a pessoa sentou-se no sofá. "E eu meio que encontrei o poço, mas ainda preciso encontrá-lo de verdade. A garota de branco está mapeando as flutuações. Ela está lá no quarto dela, não a perturbe com suas chatices.”
“Eu queria vê-la assustada... seus olhos arregalados são tão lindos...”
"Azazel," Bella repreendeu-o, "pelo amor de Nossa Majestade, você deve se comportar."
“O mesmo vale para você, Belial.”
Ela deu uma mordida na comida e enxugou o canto da boca com um guardanapo, pensou um pouco e desistiu de dizer o que queria, passando para palavras mais indiferentes.
"Me deixe comer em paz, vai.”
“O gato era igual às descrições?”
"Sim. Todas as características preliminares correspondem ao relatório da Madame”, Bella apoiou o garfo no prato, “e a ordem é deixá-la em paz. Mas aquele outro garoto... ele não estava nos relatórios.”
"Quem?"
“Um de cabelo verde, super fofo,” Bella ponderou, mordiscando a ponta da faca, “mas esqueça ele e concentre-se no poço antes que o Consorte chegue pessoalmente ou mande nosso chefe pé no saco.”
“Deixe comigo”, Azazel se espreguiçou. “Eles estão me ligando”, ele olhou para o celular e colocou-o novamente no bolso. “Ah, vá arrumar um emprego, assim sua vadiagem ficará bem menos suspeita”, brincou e abriu um portal na parede.
“Vá se lascar”, Bella riu e jogou um pedaço de bolo de arroz na direção de Azazel, que o pegou. “Traga cartas da próxima vez para que possamos jogar. A garota de branco também quer jogar. Ela é uma pessoa legal."
“Vou lembrar disso”, ele piscou e entrou no portal, desaparecendo logo em seguida, bem como o portal.
Bella, ou melhor, Belial, bebeu o resto da cerveja e olhou para o teto. A depressão pós-refeição era formidável e ela queria investir em um docinho... qualquer docinho... Mas alguém se aproximou lentamente e atrapalhou seus esforços.
A “menina de branco” entregou-lhe alguns papéis com desenhos e uma espécie de mapa. Seus cabelos lisos e brancos brilhavam ao luar e seus olhos davam um ar de inocência, contrastando com sua postura firme.
“Você precisa parar de fumar,” a moça franziu o nariz.
“Desculpe, acabei fumando um cigarrinho antes de vir”, Belial desculpou-se e começou a ler os papéis. "Amanhã ou depois? Mas eles estão desaparecendo muito rapidamente... e não se arrisque como da última vez."
“Ok,” a moça acenou com a cabeça e sentou-se na cadeira que estava na frente de Belial, começando a mexer com os dedos. “E... como está Ajal?” perguntou fracamente.
Belial parecia levemente irritada com a pergunta e abriu mais uma latinha de cerveja. “Cada pessoa carrega seus próprios pecados, e o seu é a mentira”, ela olhou para a moça, “mas é para um bem maior, certo?” sorriu.
“Espero que sim”, a moça assentiu e pegou seus bloqueadores de ruído, apoiando-os no pescoço. “Eu... quero vê-lo, para acalmá-lo. Se fizer isso, continuarei a cooperar.”
“Ai ai, esses humanos... quero dizer...” Bella olhou para ela novamente, “... esqueça. Ok, vou deixar, mas vou junto, não confio naquele troço.”
"Obrigada", ela sorriu timidamente.
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