Hound acordou me aporrinhando, mas não se opôs quando quis conversar sobre o que aconteceu. Também não me deu nenhuma resposta satisfatória, mas até ai, ele nunca o fez antes.
Depois do incidente da floresta, resolvi manter redobrada a minha atenção aos acontecimentos sobrenaturais. Ainda assim, não ouve nada fora do normal, nenhuma outra criança sumida, nenhum ataque. O que só me deixava mais nervoso. Já ouviu falar que “antes da tempestade vem a bonança”? Então, o problema é: Quando, exatamente, acaba a bonança e vem o maldito temporal?
A escola continuava tranqüila, apesar da presença de Priscila e do professor compactuado, resolvi deixar esses dois problemas para depois e lidar com o possível vampiro vingativo – e poderoso – que rondava a cidade. A diretora Piccoli me arranjara umas aulas de DP, pagas é claro, mas que resolviam meu problema com a matéria atrasada. Também acabei falando com Camila sobre os estudos e – o que me surpreendeu bastante – ela resolveu me ajudar.
Estava levando as coisas muito bem, para um moleque possuído por um demônio e repetente. Até que Priscila resolveu não ser mais ignorada por mim.
É incrível como, depois de andar uns dez passos para frente, pode-se acabar retrocedendo duzentos por um misero incidente isolado. Bem talvez fosse misero só para mim, considerando a reação exagerada dos vários adultos envolvidos com o meu pequeno “ato de vandalismo” – como disse a diretora – ao quebrar o nariz de um cara durante o intervalo da escola.
Agora vejam bem, não foi um simples ato injustificado. Mas, como em muitos outros casos ocorridos em minha vida, como explicaria que o moleque idiota havia sido controlado por uma succumbi e me ameaçou. Claro, não precisava ter socado o nariz do infeliz, mas o idiota insistia em me chamar de pulguento, tanto que começava a sentir aos bichos andando em mim – Você não chama a um cão de pulguento, a menos que queria sair mordido – e depois se pôs a borrifar spray anti-pulgas em mim.
Ainda assim, meu pequeno desentendimento com o idiota de mente manipulada não deveria ter resultado na minha suspensão. Claro, eram só três dias sem aula, mas cheio de tarefas em casa. Porem não acabou por ai. Alma teve que implorar à diretora que não mudasse de ideia quanto ao meu pseudo-supletivo.
Devo dizer que essa parte me perturbou. Não gostava que implorassem por mim. Principalmente Alma. Tinha sido tão boa comigo, e agora sentia que a tinha decepcionado. Lógico, ganhei um baita castigo: Sem sair por quase um mês. E, como não poderia deixar de ser, resolvi cumpri-lo honestamente. Achei que devia isso à Alma.
Hound ficou uma fera, é claro. Sem comer por quase um mês? Isso sim ia ser uma provação. Tanto para ele, quanto para mim. Você sabe o quanto é difícil controlar a um maldito demônio esfomeado tentando assumir o controle do seu corpo quase vinte e quatro horas por dia? E nem preciso dizer que isso só fez com que a minha decisão de ficar com os Oliveira soasse pior ainda para o cachorro.
Meu humor estava uma droga. As constantes brigas e provocações com o demônio, a desconfiança e rejeição de Alana, a recente decepção de Alma, tudo estava me encaminhando para um colapso de raiva. Acho que o único que não notou minha repentina onda de raiva foi Léo. Ele continuava vindo até mim, dizendo que eu era um herói e pedindo para brincar com ele. Devo admitir que, em muitas das vezes que veio falar comigo, tive vontade de mandar o pequeno voando pela janela. Mas gostava muito dele para me deixar sequer falar grosso com o menino, que dirá perder a calma e acabar machucando-o. Acho que nunca me perdoaria se o machucasse, e também nunca deixaria que outra pessoa o fizesse.
Então acho que você pode imaginar o nível borbulhante de raiva que subiu em mim, quando vi Priscila, e mais três de seus seguidores, cercando Léo em um canto do pátio do colégio, durante um intervalo.
Eu não pensei duas vezes, comecei a caminhar apreçado na direção do grupo. Um dos garotos grandes deu um empurrão ao pequeno, jogando-o no chão, na mesma hora em que Alana chegava ao seu lado. Minha nova irmã se pôs na frente de Léo, encarando a succumbi. Eu ainda não estava ao alcance para escutar, mas podia ver que estavam discutindo. Alana gesticulava com as mãos e apontava o dedo para Priscila, que se via cada vez mais possessa. Isso não ia terminar bem.
Os três garotos sem mente começaram a reagir a Priscila. Podia ver seus músculos ficando tensos com a necessidade de bater em alguma coisa que absorviam da succumbi. Talvez Priscila fosse capaz de controlar a si mesma, mas não era capaz de controlar seus capangas que, na intenção de agradá-la, certamente dariam vazão às suas vontades não verbalizadas.
Alcancei o grupo, sem sequer ser notado, quando um dos garotos, um loiro de olhos castanhos e feições afeminadas, esticava o braço para pegar o colarinho de Alana. Ele foi surpreendente rápido para um humano, mas nem de longe rápido o bastante para um noturno. Minha mão alcançou seu pulso assim que seus dedos tocaram o tecido. O torci, e todos puderam ouvir um enorme CREC. Mas, apesar da mão ter perdido sua mobilidade, o garoto loiro agiu como se tivesse levado menos que uma picada de inseto.
Empurrei-o longe e olhei para Alana que, apesar de seu rosto pálido e olhos arregalados – se eram pelo susto que o garoto lhe deu, ou pelo fato de que quebrei seu pulso, não sabia dizer -, moveu-se instintivamente para trás de mim.
Alana não era a única de olhos arregalados. Priscila me olhava como se tivessem crescido chifres em mim. Talvez tivessem mesmo. Vai saber o que ela era capaz de ver, com seus olhinhos de demônio. Resisti ao impulso de tatear meu couro cabeludo.
– O que diabos você pensa que esta fazendo? – Minha voz saiu estranha através dos dentes cerrados. Mas ainda assim era melhor que gritar ou quebrar outro nariz. Não era o momento de chamar atenção.
Priscila recuperou-se rapidamente. Respirou fundo, enquadrou os ombros e me lançou um olhar de desprezo.
– Não é da sua conta cachorro. – Um sorrisinho cínico surgiu em seu rosto. – Acho melhor que volte a farejar por ai, e não fique no meu caminho.
– Os Oliveira estão sob meu amparo! – Disse um pouco mais alto do que pretendia. Respirei fundo, me acalmando, e avancei lentamente para Priscila. – Se eu souber que os incomodou novamente – sussurrei em seu ouvido – eu vou te caçar. E acredite, há coisas bem piores do que a inexistência a que os demônios são condenados quando morrem. – Me afastei e olhei em seus olhos assustados, deixando que a verdade do que dizia transparecesse nos meus. – Deixe-os fora disso Priscila. Não me faça ter algo que vingar.
Priscila acenou freneticamente com a cabeça, virou-se com um “Sim irmão”, e saiu apreçada do pátio. “Irmão?”
Alana já estava melhor. Pude comprovar quando me lançou um olhar estranho assim que virei para ela. Se abaixou comprovando se Leo estava bem. O pequeno pulava e gesticulava, sorrindo e falando alto. Se antes ele estava suspeitando de mim, agora tinha certeza. Eu era um super-herói para o garoto, e duvidava que houvesse algo que mudasse isso. Uma campainha esganiçada tocou, avisando o final do intervalo.
– Vem Leo. – Alana pegou a mão do irmão, puxando-o para longe. – Temos que voltar agora. – Me lançou um olhar de dúvida. Provavelmente a devia ter assustado. Para Léo, era um super-herói, para Alana, um delinqüente incorrigível.
Deixei que se afastassem. Não queria intimidar minha nova irmã, mais do que já estava intimidada. Não a culpava. De fato, acho que tinha um pouco de pena. Afinal, o que faria se tivesse a um estranho invadindo minha casa, usurpando minha família e quebrando partes do corpo de meus colegas de escola. Bom, sei que não teria uma boa opinião sobre ele com certeza.
Os dois estavam se aproximando da entrada do prédio em que Léo estudava, quando senti a primeira onda. Um pequeno apertão em meu estomago, que foi crescendo e se espalhando, até quase não agüentar ficar de pé.
Alana se virou para me dar mais uma olhada, antes de se dirigir ao próprio prédio. Vi quando percebeu algo errado em mim, mesmo estando longe. Me forcei a aparentar normalidade, dando um aceno para ela. Não foi convincente. Alana começou a caminhar em minha direção, e minha mente a trabalhar mil por hora. “Se ela chegar perto de mais, não vai dar para esconder o que está acontecendo”.
Algo deve ter chamado sua atenção, pois parou e olhou para trás. Por cima de seu ombro, puder ver a silhueta de um homem que, pelo estremecimento de Hound, identifiquei como sendo o Sr. Machado, o professor compactuado. É, teria que conversar com o cão sobre esses ataques de pânico.
O professor falou brevemente com Alana, mandando-a para a sala. Levantou sua vista para mim. Ficou me analisando e, por um momento, também fiquei com medo. E se me reconhecesse da outra noite? Já havia se passado um tempo do incidente, mas talvez me ver de longe o fizesse recordar de algo. Ele ficou me olhando por um tempo e então, como se nada tivesse acontecido, virou-se e foi embora.
Sozinho no pátio – e eu conferi antes, para ter certeza. – deixei-me cair no chão, abraçando a barriga, que agora parecia ter sido corroída com acido. Um gemido escapou de meus lábios. Apoiei minha testa no chão frio, buscando algum conforto. Naquele momento, fiquei completamente exposto. Uma presa fácil para qualquer predador.
– Estou com fome. – A voz do demônio chegou distante aos meus ouvidos. Levantei a cabeça para olhá-lo, o suor embaçando minha visão. – Hu. Tire esse olhar da cara. É só um pouco de fome, não como se estivesse o abrindo ao meio. – Ele parecia consternado. “Estranho como me sinto exatamente assim, então...” – Não me admira ser um fracote humano. – Não percebi que havia dito meus pensamentos em voz alta.
– Pare com essa merda. – Consegui dizer. – Ambos sabemos que não me quer morto.
– Unf. Querer e poder são coisas bem diferentes. – Ele resmungou, mas a dor foi passando aos poucos. – Melhor agora?
– Não faça isso de novo. Você me deixou aberto a qualquer um que quisesse arrancar minha cabeça!
– Não faça drama. Não sou estúpido. Não me poria em risco por tão pouco. – Ele ficou me observando por uns instantes. – Estou com fome Jesse. – Disse serio. – Não gosto de ficar com fome. E sua teimosia já começa a me irritar...
– Olha... Já conversamos sobre isso. Não dá praAARGH! – A dor em minhas entranhas tinha voltado ainda mais forte. – MERDA!
– Ainda estou com fome Jesse... – O demônio me olhava altivo, calmo.
Cai deitado de lado e olhei para o cão sentado perto de mim. Fiquei com medo. Não era sempre que Hound trocava sua postura desleixada e irônica, quem dirá então por uma tão serena quanto aquela que ele usava para me observar. De repente, já não estava tão certo quanto a necessidade de ele me manter com vida.
– Hoje à noite! – Eu cedi – Irei procurar algo hoje à noite! – O olhar do demônio me perfurava. – É pegar ou largar... Não estou saindo agora. – Serrei minha mandíbula e procurei agüentar a dor. Acho que devo ter feito algo direito, pois a dor foi sumindo aos poucos. Relaxei contra o piso do pátio, mal resistindo ao sono que tentava me puxar.
– Hoje à noite então. – Ele disse, mas não partiu. Ao invés, aproximou seu focinho de meu rosto. – E Jesse... Não me faça esperar novamente. Não vai gostar das conseqüências. – E, de volta com seu irritante sorriso irônico, ele se foi. Deixando-me só com meus pensamentos.
Demorou um pouco, mas, enfim, pude ficar sentado. Os prédios da escola giravam ao meu redor, como se a terra tentasse tragá-los para dentro. Me virei bem a tempo de evitar que o vomito caísse em meu colo. Droga. Meu corpo realmente era o de um humano fracote. E foi exatamente essa a lição que Hound quis me ensinar. Eu não era nada sem ele.
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