– Aaargh! – Eu acordei gritando, e levei apenas alguns segundos para perceber o porque. Minha mente saiu do intumescimento causado pelo sono, e senti a pele de meu tornozelo derreter. Tentei me mover, mas os músculos das minhas pernas e braços não me respondiam. A terra se deslizou pelas minhas costas, e percebi que estava sendo arrastado. Comecei a suar frio. A coisa tinha me alcançado. Seja o que for que me perseguiu, tinha me alcançado.
Lutei desesperado contra a letargia. Se fosse para morrer que fosse lutando. Apesar de não acreditar que conseguiria fazer nada contra o meu perseguidor. Cravei meus dedos na terra arenosa do leito do riu, em um movimento desesperado por interromper o avanço. Não adiantou muito. Cerrei os dentes e tentei com mais afinco. Mas não conseguia reunir força o suficiente. A dor na minha perna se intensificou, foi como acido queimando minha carne, nervos e ossos. O que tinha começado no tornozelo, agora se estendia até a metade da minha coxa. Minhas mãos ficaram frouxas novamente, e senti lagrimas escorrendo por meu rosto. Se eram de dor, frustração ou medo eu não sei, mas ia morrer me odiando por deixa-las sair.
Quando a água tocou minha perna, foi quase como se saísse de um banho quente para me enterrar na neve, e gritei novamente. Mas não reconheci o som como meu. Era quase como se fosse outra pessoa que estivesse ali, sofrendo a agonia da morte. A água chegou a minha cintura, e pontos negros apareceram em minha visão. Minha mente tentava se desligar, em uma tentativa de me poupar da dor, mas eu me aferrava a consciência, como um naufrago se aferra a uma bóia. Se eu desmaiasse agora sabia, com toda a certeza do mundo, que não viveria para ver o sol novamente.
Minha mente deu voltas e voltas, correndo as cegas por uma maneira de escapar, mas sem realmente pensar em nada. Me repreendi por deixar o desespero me comandar, mas não foi como se mudasse muita coisa. Olhei para o céu, que agora parecia mais escuro, e tentei destingir se era por estar perto do amanhecer ou por eu estar quase morrendo. Minha perna não doía mais. De fato, não a sentia de maneira nenhuma. Ocorreu-me que, se eu escapasse dessa, talvez me transformasse em um demônio sobre rodas. “Talvez não fosse tão ruim assim morrer aqui” pensei “Não é como se fosse sobreviver muito mais. Uma vez que perca as pernas, não poderei lutar contra os noturnos que caírem em cima de mim” dei um suspiro, quase resignado “Só serviria de chamariz para os monstros, todos a minha volta estariam em perigo, e não poderia proteger ninguém” Senti minha consciência escorregar de mim novamente. E, dessa vez, eu não lutei contra.
∴
Os gritos dela eram sinfonia para os meus ouvidos. Cada vez que implorava, soluçava e chorava por sua vida, eu me sentia mais vivo, mais faminto. Ela se contorcia, debaixo de mim, tentando escapar. Seu corpo estava frio contra minha pele. Quase como um cubo de gelo. Aproximei meu rosto do dela e lambi as lagrimas vermelhas que escorriam por sua bochecha azul. Tão macia, tão delicada. O cheiro acido de seu medo encheu o ar. Quase podia sentir o gosto, como a mais incrível das especiarias. Deslizei minha mão por sua barriga, e ela gritou quando minhas unhas penetraram sua carne e a rasgaram.
– Veja, pequena naiade, não estamos mais sozinhos. – Disse. Minha voz era quase um ronronar. – O garoto finalmente acordou.
– Por favor, por favor, por favor... – Ela implorava incessantemente. Mas eu não ia parar. Não quando estava me divertindo tanto. E, principalmente, não agora que tinha uma platéia. Sempre gostei de causar dor, e sempre fui bom nisso. Um dos mais temidos, em minha alcateia do inferno...
Mas que diabos? Não era eu que estava agindo, pensando. Não era a minha mão que agora cavava a delicada barriga da pobre naiade em busca de suas viceras. E, definitivamente, não eram meus aqueles sentimentos de felicidade doentia que vinha com a tortura que estava causando. Não. Estes eram sentimentos de Hound.
Eu lutei com todas as forças contra o controle de ferro que o cão demoníaco tinha sobre o meu corpo. Mas estava fraco demais. Ainda podia sentir meu corpo dolorido pela corrida na floresta. Hound despedaçava e mutilava a pobre ninfa da água sob o nosso corpo e não havia nada que eu pudesse fazer a não ser assistir. O cão rasgou a garganta da ninfa com nossa boca, pude sentir o gosto do sangue em minha língua e a excitação que aumentava cada vez mais com ele.
– Já chega... – A intenção era de um grito, mas minha ordem soou mais como um pedido fraco e esgotado. Minha força estava acabando, logo eu iria acabar apagando novamente. Tinha que controlar o demônio antes disso, ou as coisas iam piorar drasticamente. Hound poderia voltar para a cidade e procurar uma vitima humana. Ele poderia procurar Alana. – Já teve a sua diversão. Acabe logo com isso e liberte meu corpo.
– Hahahaha – A risada que ele fez sair de minha garganta soou estranha. Como uma mistura dos rosnados dele com minha própria voz. Mas sabia que só seria assim para os meus ouvidos. Qualquer outro que ouvisse acharia tudo bem normal. Exceto, é claro, por todo o sangue azul manchando meu corpo e a careta cínica, que Hound tanto adorava, estampada em meu rosto. – Quer mesmo terminar isso garoto? – Ele remexeu o braço enfiado até o cotovelo no ventre da podre coitada, que gemeu e gorgolejou mais sangue azul. – Estamos nos divertindo tanto aqui. Podemos fazer durar muito mais. – E era verdade. Um humano já estaria morto a essa hora, porem uma ninfa ainda podia agüentar muito mais tortura pela frente. Mas o tempo não estava a meu favor.
– Acabe com isso logo! – Minhas palavras soaram fracas e estranguladas até para mim. Mesmo assim, Hound fez o que lhe pedi. Ele redirecionou nosso braço para encontrar o coração palpitante da ninfa e o espremeu causando um surdo “PLOC” vindo de seu peito. – Agora liberte meu corpo. – Um paciente em estado terminal teria soado mais convincente.
– Você não quer que eu faça isso garoto. – Ele me avisou em tom de chacota.
– Acho que sei bem o que quero – A frase saiu entrecortada pela minha vós falha.
– Se eu fizer isso você vai morrer.
Levei alguns segundos analisando aquela afirmação.
– Não, eu não vou. – Disse finalmente. – Posso estar fraco agora, mas não estou tão ferido. Posso sobreviver à noite sozinho...
– Escute aqui garoto. – Hound rosnou para mim, e não havia mais nenhum traço de diversão em sua voz. – Se eu soltar seu corpo, você vai cair como uma marionete sem fios no chão. E é provável que fique ali a noite toda.
– E? Um pouco de mato nunca fez mal a ning--
– Eles vão matar você. – Hound suspirou com impaciência. – O primeiro noturno que pegar você sozinho e indefeso vai matar você.
– Ninguém gosta de um cão do inferno.
– Não, ninguém. E essa ninfa embaixo de nós pode confirmar isso.
Fiquei em silencio, esperando que continuasse, mas quando não o fez, tive que perguntar o que ele quis dizer com aquilo.
– Ela foi só a primeira a te encontrar. – Ele respondeu. – Se eu não tivesse aparecido na hora, ela teria te arrastado para dentro da água e te afogado.
– Bem, e onde estava você antes disso? Quando aquela coisa me perseguia e tentava me matar?
Hound não respondeu. Ao invés, ele deixou o silencio flutuar por alguns segundos e me ofereceu nos levar para casa novamente.
– Você não vai agüentar mais muito tempo. Prometo não fazer mais nada que leva-lo a um lugar seguro. Não posso me dar ao luxo de deixar você morrer aqui.
Ele estava certo. A qualquer minuto eu cairia, e então Hound teria todo o controle para si. Um acordo com ele era o melhor que eu podia fazer.
Depois de mais um pouco de discussão, entramos num acordo e começamos a nos mover. A maior parte do percurso foi pelo mato, para que ninguém nos visse e que Hound não visse ninguém. Meu corpo se movia com muito mais facilidade, agora que o cachorro o controlava. Deslizávamos por entre as folhas e galhos sem fazer um barulho sequer. O demônio era um predador apesar de tudo, ele sabia como se mover incógnito.
Não demorou muito para chegarmos em casa. E foi ai que comecei a me preocupar. Mesmo com cada pedacinho do meu corpo doendo, forcei minha vontade sobre a de Hound. Forcei o suficiente para ele se por a resmungar.
– Olha... – Tive que parar e tomar um longo fôlego. Não é muito fácil criar frases completas, quando seu peito parecia ter sido atropelado por um rolo compressor. – Já estamos em um lugar seguro, ok? Apenas me liberte agora.
– Estamos a uma janela de distancia do seu quarto. Já te trouxe até aqui, não foi? Não me comportei mal, comportei? Realmente prefere que te encontrem aqui na garagem amanhã de manhã? Quando posso facilmente nos colocar para dentro?
Tive que admitir que ele tinha um ponto. Olhei para a minha janela. Se ninguém me visse aqui fora, nunca iriam adivinhar que sai a noite. Meus ferimentos já estariam curados o suficiente para não serem visíveis. Soltei um longo suspiro. Afinal de contas, já tínhamos chegado até ali.
– Certo, me leve pra dentro.
Percebi o erro que cometi assim que meus pés tocaram o chão do quarto. Alana havia estado aqui, e Hound sentiu o cheiro. Ele levantou o nariz e aspirou o ar, se estremecendo. Nosso corpo se retesou em expectativa, e eu lutei pelo controle novamente mas, desta vez, o cão do inferno não estaria dando o braço a torcer.
Usei o pouco de força que eu tinha e parei meu corpo no meio do corredor. Hound grunhia e fazia uma serie de rosnados para mim. Isso ia mal. Tentei me arrastar de volta para o quarto, mas o cachorro não ia deixar isso ser tão fácil assim. Lutamos por um tempo, indo e voltando pelo corredor. Se não fosse uma situação tão desesperadora eu diria que foi engraçado. Quem quer que olhasse para mim naquela hora veria um garoto que, aparentemente, estava brigando consigo mesmo. Uma clássica sena de filme pastelão. Exceto que, se perdesse aquela luta, provavelmente amanheceria coberto de sangue e com o cadáver da minha nova irmã mais velha nas mãos. Não que a ideia não fosse tentadora. Por que, acredite, era.
Não sei de onde puxei força, mas consegui nos guiar para longe da porta do quarto dela e, por conseqüência, do meu também. Me arrastei para o banheiro, talvez um banho frio me ajudasse a acalmar a besta. Me encostei na parede, porque não podia mais agüentar meu próprio peso, e pus a mão na maçaneta da porta. Foi nesse momento que Hound contra-atacou. Meu corpo deu um giro inesperado para a esquerda e, quase tarde demais, joguei todo o peso que pude para traz. E então estava caindo. Meu corpo pareceu flutuar por uns instantes e – como pareceu estar acontecendo muito comigo aqueles dias – apaguei.
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