Okay. Então, resolver voltar para a casa dos Oliveira a pé, de um parque que ficava há uns quantos quilômetros de distância da cidade, não havia sido a ideia mais brilhante de todas.
Eu estava andando no acostamento de uma estrada. Olhando em volta, era possível ver algumas casas grandes, uma ou outra horta e pequenas ruas de terra que cruzavam o chão pavimentado. O sol já não era mais tão forte, mas ainda assim incomodava. Estava morrendo de sede, não havia tomado nada ainda e respirava com força. O que me cansava não era o exercício físico, e sim o calor. Apesar de o dia ter começado frio, a temperatura devia ter chegado a 32º à tarde. Odiava esse clima misto.
De vez em quando, carros passavam por mim, e pude ver uns dois pontos de ônibus durante o trajeto, mas não tinha dinheiro no bolso. Nunca havia precisado dele para me locomover antes. Eu tinha tudo o que precisava a poucos passos de mim no meu território. Suspirei alto. Não havia visitado ele desde que fora trancado no instituto novamente. Eu não poderia adiar muito mais a visita; as coisas começariam a sair da linha. Outro ser noturno tentaria tomar o lugar e a comunidade da noite pararia de me temer. Isso iria me causar problemas.
Duas horas depois, eu estava na área comercial da cidade. Incrível como um trajeto que durou trinta minutos de carro poderia se estender tanto, quando se estava a pé sob o sol. Parei em frente à uma loja de sapatos fechada e sentei na calçada. Não lembrava bem o caminho de volta, mas isso era o de menos; Hound iria acordar logo e seria melhor alimentá-lo agora. Estava fraco demais para segurá-lo caso ele cismasse com alguém... Como Alana. Droga! Passei minhas mãos pelo rosto. Não era bom ficar pensando neles. Tinha que me concentrar. Levantei a vista e me deparei com uma velhinha me encarando. Com essa é a terceira vez hoje, pensei.
Ela tinha as costas curvas, e se apoiava em uma bengala de madeira toda trabalhada. Ficou me encarando por tanto tempo com seus olhos azuis que procurei em volta para ter certeza de que o problema era comigo. Ela estalou a língua e moveu a cabeça em desaprovação, voltando assim a andar, murmurando coisas como: A decadência dos jovens por causa da bebida, hoje em dia. Achei estranho, mas não liguei, levantei-me e saí andando.
Eu gostava da capital, das ruas cinzas e dos prédios altos, do movimento e do barulho. Era fácil passar desapercebido. Com um pequeno passeio noturno pela Avenida Paulista, era possível encontrar todo tipo de estilo e pessoa. Punks, roqueiros, góticos, otakus, modelos de capa de revista... Não duvidaria nem de encontrar algum outro possuído. Toda aquela miscigenação me deixava confortável, mas Montes Solares também não era de todo ruim. A cidade era pequena e pacata, nada acontecia ali. Toda arborizada e com lojas agradáveis que fechavam aos domingos, ela era relaxante, como um refúgio. Respirei fundo e senti o cheiro de mato. Não era nada ruim, diferente, mas não ruim.
Saí do centro comercial e entrei em uma rua com casas idênticas, só a cor as diferenciava. Andei vagarosamente, admirando-as. Eram antigas, porém bem cuidadas, a típica rua que os turistas visitam para ver prédios históricos. O final dela fazia uma curva que dava para um terreno baldio, isolado. Os muros, altos o suficiente para prevenir xeretas, eram manchados de mofo e tinta descascada. Não era preciso nem olhar o outro lado para saber que ali havia uma casa, e que nela havia um fantasma. A energia denunciava. Mesmo humanos sentiam-se desconfortáveis e inseguros, como se estivessem sendo observados. Calafrios repentinos, sensação de frio, suspiros contínuos; o sintoma variava de intensidade de pessoa para pessoa. Tinha até aqueles que não sentiam nada.
Olhei o relógio... Ainda faltavam por volta de duas horas e meia até Hound acordar. Andei até o outro lado da rua e me sentei debaixo de uma árvore com folhas amareladas. Fechei os olhos e relaxei, a sombra era fresca e me protegia daquele calor quase infernal. Suspirei e senti o cheiro de feijão carregado de tempero da cozinha de alguém. Meu estomago roncou. Não havia dado tempo de comer nada no parque. Burro! Burro! Burro! Pontuei cada pensamento batendo minha nuca contra o tronco da árvore, e fui recompensado com lascas de madeira entrando em minha camiseta suada e grudando em meu cabelo. Separei as costas da árvore e tentei me limpar, já ficando nervoso. Um dia! Pontuei mentalmente. Apenas um dia de convivência com uma família humana, e já havia dado tudo errado!.
Desisti e apoiei meus cotovelos nos joelhos dobrados, deixando cair minha cabeça. Estava com raiva, cansado, com calor e com fome. O que eu não daria por um ar-condicionado de um shopping agora mesmo? Com certeza Laila me daria algo de comer se eu pedisse. Embora mendigar não seja meu forte. Extorsão fazia mais o meu gênero. Você não acreditaria na quantidade de bichos estranhos que ricos e estão dispostos a pagar qualquer quantia para manter suas vidas e anonimato. Pode dizer o que quiser, mas Hound era um negócio lucrativo. Mesmo que eu não usasse o dinheiro.
Suspirei novamente e, desta vez, senti um cheiro estranho no ar: um perfume floral forte demais, como se quisesse mascarar outro cheiro, mas não consegui identificar o que era. Nesse momento avistei uma garota loira vindo em minha direção, ela jogava uma maçã para o alto, enquanto andava no meio da rua, despreocupada. No entanto, seus olhos – azuis demais para serem reais – não desviavam dos meus. Seu cabelo lambido ia até a cintura. Tinha o rosto em forma de coração e a pele rosada. Era muito magra, como uma modelo, porém baixinha. Quase da altura da amiga briguenta de Alana. Ela usava uma blusa de babados rosa e um jeans skinny preto, suas sandálias rasteiras quase não faziam som algum no asfalto.
Ela parou à minha frente, sorrindo e rolando a maçã de uma mão para a outra. Franzi o cenho,sabia que a garota não era uma humana comum, mas o perfume floral me impedia de descobrir o que ela era. Deu um passo se aproximando e me ofereceu a maçã. Levantei uma sobrancelha, numa interrogação silenciosa.
– Você é mais bonitinho do que eu pensei – ela disse se agachando, ainda com o braço estendido. – Pegue a maçã, você está com fome. Aceite como uma oferta de paz.
Hesitei um pouco, mas a peguei. Rolei-a em minhas mãos e cheirei, examinando. Não parecia estar envenenada, ou nada do tipo. Lancei um olhar para a garota, ela ainda sorria. Aproximei a maçã da boca e arrisquei uma mordida, ão sabia se era por algo de sobrenatural na maçã, na menina, ou se simplesmente estava morrendo de fome, mas a fruta parecia ser a mais gostosa que eu já comera.
Devorei-a com vontade, enquanto a menina se levantava e alisava a blusa. Ela me lançou mais um sorriso e começou a se afastar.
– Obrigado! – Eu consegui dizer, de boca cheia.
Ela parou antes de virar a esquina, e olhou para mim por cima do ombro.
– Não queremos um cachorro faminto solto por aí. Não é? Te vejo na escola. – Ela me disse, desaparecendo atrás da casa.
Levantei de um salto, esquecendo a maçã, e corri para alcançá-la. Quando cheguei à esquina, a rua estava deserta. Merda. Ela sabia o que eu era. Não pude nem definir que tipo de noturno ela era e a maldita garota sabia sobre Hound. Isso é ruim. Isso é muito ruim... O que ela disse sobre escola?
∴
Três horas depois, a atormentante voz do demônio se juntou à minha mente. Entrei na casa e o deixei caçar o pobre fantasma que. Uma golpista que enganava vários homens e foi assassinada por seu último marido. Alma condenada, presa à dimensão terrena por assuntos pendentes. Não gostava delas, elas faziam eu me sentir mal. Era quase como matar humanos. Frios, maus e deprimentes, mas, ainda assim, humanos.
O fantasma corria através das paredes, tentando escapar, mas, quando chegamos ao fim do terreno, ela ficou encurralada. Com esse tipo de monstro, diferentemente de outros, Hound não precisava que eu colocasse a mão na massa por ele. O cachorro abocanhava os pobres fantasmas e os dilacerava antes de engoli-los. Como se não bastasse a primeira, os coitados ganhavam uma segunda morte, dolorosa, na boca de um Cão do Inferno. Para sorte deles, e minha , esse tipo de caçada provia pouca energia, e, por isso, Hound descartava-os, facilmente, do cardápio, na maioria das vezes.
Depois de deixa-lo comer, saí da casa. Hound estava ao meu lado, satisfeito consigo mesmo. Fazia tempo que ele não ficava no controle da situação. O sol já começava a se por, e percebi que havia se passado três horas dentro da casa. Levamos uns trinta minutos para pegar o fantasma, o que significa que ficamos o restante do tempo torturando a mulher. Ou mlhor dizendo: Hound ficou torturando a mulher. Eu fiquei assistindo. Sem fazer nada.
Caminhamos em silêncio para a casa dos Oliveira. Ele estava feliz demais, e eu incomodado demais. Não gostava muito de tortura, ela fazia eu me sentir menos humano. Andava pela calçada, me escondendo nas sombras. Provavelmente não haveria nenhuma patrulha para me parar, mas não se ensina truques novos a cachorro velho. Um trocadilho que se encaixava bem até demais na minha vida.
Hound só voltou a verbalizar sua autofascinação faltando um quarteirão e meio para o nosso destino. Tive a impressão que ele havia se segurado o caminho inteiro. O porquê? Eu nunca soube. Ele se elogiou, e reclamou de como eu fazia as coisas de forma errada. Falou sobre como foi rápida a captura do fantasma, e de como teria sido ainda mais rápida se eu não fosse tão lerdo. Ou seja, o bate-papo habitual dele para dias felizes.
Já em frente ao portão dos Oliveira, notei as luzes da janela do primeiro andar acesas, mas não queria ver ou falar com nenhum deles no momento. Virei-me para Hound, interrompendo- mais um de seus discursos sobre a minha falta de habilidades
– Vou precisar que acorde cedo amanhã – eu disse, reprimindo a minha vontade de sorrir. – Uma garota, não humana, me encontrou hoje. Ela sabia sobre você, mas não consegui descobrir o que ela era – ele me olhou com desprezo. – Ela falou algo sobre me encontrar na escola, acho que amanhã, quando eu for pra lá – fiz uma pequena pausa. – Quero que você esteja comigo para descobrir o que ela é.
Hound bufou e rosnou, mas logo assentiu, concordando. Essa era uma das partes ruim da vida em família. Eu não gostava das multidões das escolas, das panelinhas ou dos numerosos professores, sempre esquecia seus nomes. Mas, principalmente, não gostava por estar dois anos atrasado em relação ao restante dos alunos da minha idade. Quando se fica fugindo por aí, é difícil arranjar tempo para estudar.
Com, pelo menos, um dos meus assuntos resolvidos, pulei a grade branca que separava o jardim frontal do resto da rua. A grade tinha dois metros de altura e dois portões, um na extrema direita, para a entrada de carros, e outro em frente à porta de entrada, alinhada entre as duas janelas iluminadas, de onde desciam dois degraus de pedra. Canteiros de flores ficavam abaixo das janelas e dobravam em “L”, delimitando o jardim e a garagem. No canto esquerdo, ficava uma mesa e quatro cadeiras de metal. No direito, uma amoreira crescia firme e forte e um banco de pedra havia sido colocado rente ao canteiro da janela direita, para que se pudesse observar a rua.
Eu estava em frente à garagem. Segui pelo longo corredor, até parar abaixo da minha janela. Tomando cuidado para não ser visto da cozinha, escalei o muro e me segurei no parapeito branco que emoldurava a vidraça. Puxei-me para cima e joguei meu pé esquerdo dentro do quarto, batendo com tudo na escrivaninha. Merda! Havia me esquecido dela. Entrei, tentando não fazer mais nenhum ruído, e fiquei de joelhos em cima da mesa. Já estava com um pé no chão e um joelho no alto, quando um barulho estrangulado me chamou a atenção. Olhei em direção à minha cama e me deparei com dois olhos me encarando de volta.
-Argh! – Perdi o equilíbrio quando tentei me aprumar depressa demais, e caí no chão. Hound ria.
– Jesse, é você? – Olhei para os olhos assustados na escuridão. Alana!
Levantei-me, meio travado, e franzi o cenho para ela. O que diabos ela estava fazendo no meu quarto? E com as luzes apagadas?
– O que diabos você tá fazendo no meu quarto no escuro?
Ela limpou a garganta e levantou da cama, arrumando suas roupas.
– Peguei no sono – disse, desviando o olhar. – Estava te esperando e dormi. Quando acordei, você tava entrando pela janela – ela completou, com cara de confusa.
Suspirei. Não estava afim disso, só queria dormir e tentar relaxar. Arrisquei uma olhada para Hound e me senti desconfortável. Ele a encarava como um cachorro encara os frangos rodando nos fornos das padarias.
– Certo – Eu disse, voltando minha atenção para ela. – Bom, seja o que for que tinha pra me dizer, não pode esperar até amanhã? – Passei minha mão pelo cabelo. – Estou cansado.
– Ah! Claro! – Ela parecia desconcertada. Estranho. Ela foi até a porta e eu me virei de costas. – Sabe... – Falou novamente antes de sair. – Mamãe não havia contado o que fez por ela – eu fiquei encarando meu novo travesseiro. – Obrigada – sabia que ela esperava uma resposta, então assenti com a cabeça.
Ela saiu por um instante ,mas logo voltou, acho que havia ficado um bom tempo ensaiando o que dizer. Percebi que ela não iria embora até que terminasse.
– Sabe... – Ela repetiu com nervosismo. – Nós perdemos ele... o Daniel.
Olhei para ela. Daniel era o nome que Alma havia chamado no dia que a salvei. Os olhos de Alana estavam brilhantes de lágrimas, prestes a derramar. Não,ela era forte demais para deixá-las cair.
– Eu perdi ele – ela continuou. – Foi minha culpa, sabe? – Disse com o queixo erguido, tentando manter qualquer pedacinho de dignidade que pudesse guardar. – Eu não cuidei dele direito – ela olhou em meus olhos, e sei o que viu. Pena. O mesmo que vi nos olhos de sua amiga.
Ela acenou algumas vezes com a cabeça, e se virou para ir embora.
– Você não o abandonou – ela parou, mas não se voltou para mim. – Pode ter errado em algo. Mas não o abandonou. Já é muito.
Ela saiu apressada e eu suspirei alto. Fui até a porta e a fechei. Olhei Hound, deitado em um canto, desafiando-o a dizer algo, mas ele sequer se mexeu. Tirei a roupa e entrei debaixo das cobertas desarrumadas, só de boxers. Coloquei o braço esquerdo sobre os olhos. Droga. Sabia que tinha algo errado, pensei, sem saber direito o que sentir, e adormeci.
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