Estendemos uma esteira de palha decorada com desenhos de flores, próximo ao enorme lago que ficava perto do estacionamento. Olhei em volta e me deparei com um imenso campo aberto coberto de grama que tinha, pelo menos, três vezes o tamanho de um campo de futebol, com um imenso lago que ocupava um terço do espaço. O sol já estava forte e alto agora, e seu brilho me impedia de ver com perfeição o que havia depois do campo. Pude distinguir várias árvores e o que parecia ser uma pequena cabana. Sabia que o parque continuava depois do arvoredo, mas era impossível ver o que havia além. Talvez mais mato, ou talvez pistas de caminhada. De qualquer maneira, não era como se eu estivesse afim de sair explorando o lugar, por isso, continuaria sem saber como era o restante do parque.
Continuei observando o local. Várias pessoas se divertiam ali, reunindo-se em grupos, com uma distância considerável de um para outro. Alguns comiam, outros jogavam frisbee ou empinavam pipas. Havia pessoas deitadas, sentadas e em pé. Grandes grupos de família, casais ou pessoas sozinhas com seus cães.
Sentei-me em uma ponta da esteira, apoiando meus cotovelos em meus joelhos dobrados. Usei minha mão direita para bloquear o sol, enquanto observava um labrador chocolate correr atrás de uma bola que alguém lançara para ele. O céu estava limpo e azul. Acho que nunca tinha visto um céu assim. O sol, que não tinha nenhuma nuvem para encobri-lo, cozinhava minha pele. Devia ter pegado uma blusa de manga comprida. Não que eu tivesse algum problema com o sol, isso é coisa de vampiro, mas, depois de um tempo andando apenas sob a luz da lua, sua pele corre o risco de ficar um bocado sensível. Meus olhos ardiam, e desejei ter óculos escuros comigo.
Léo se sentou à minha frente e se pôs a esvaziar sua mochila no chão. Bonecos de ação, carrinhos e uma bola saíram em enxurrada. Ao meu lado, Alma começava a organizar a comida em cima da esteira, enquanto Alana se servia de um generoso gole de suco. Fiquei com sede. Acomodei-me melhor para que o sol ficasse nas minhas costas, e perguntei se podia tomar um gole. Ainda tinha que apertar os olhos para enxergar, mas o resto da família parecia bem confortável com o clima. Se eu pudesse escolher, estaríamos debaixo de uma enorme nuvem negra. Adoro a chuva, o cheiro dela, seu barulho, que abafa todo o resto, e o jeito com que cai em você. É como se alguém lá em cima estivesse te perdoando por tudo o que fez. Como se purificasse a alma. E então ela passa, eu abro os olhos, e me encontro só com um demônio preso em mim. Alana torceu o nariz.
– Pegue um copo – ela disse sem vontade de dividir.
Dei uma olhada nos itens espalhados a minha volta e, entre sanduíches, salgadinhos e soldadinhos de plástico, não avistei nenhum copo, prato, ou talher. Virei para perguntar para Alma onde estavam, quando ela se levantou e limpou um pouco sua calça pantalona de algodão florida – estava começando a ver um padrão aqui – e começou a andar em direção ao estacionamento.
– Esqueci os copos no carro – ela disse sobre o ombro. – Já volto!
Olhei enquanto ela se afastava para o estacionamento. Ficava perto, mas nem tanto. Não era uma caminhada que eu gostaria de fazer muitas vezes, principalmente embaixo daquele sol. Mas, de novo, acho que eu era o único incomodado ali.
– Poderia me dar só um gole? – perguntei para Alana quando voltou a beber de sua garrafa. Provável que ela não queria deixar para mim. – Eu não encosto a boca – ela bebeu um pouco mais, antes de me responder.
– Isso é nojento – ela respondeu enquanto fazia cara de nojo. – Espera que daqui a pouco minha mãe volta com os copos – e bebeu outro gole.
– É. Mas daqui a pouco não vai ter mais suco – respondi de mau humor.
– Escuta – ela parecia um pouco ofendida. – O suco é meu e eu acabo com ele quando quiser – e bebeu mais uma vez para reforçar seu ponto. – Tem refrigerante suficiente aí dentro pra você – completou, apontando para a caixa de isopor.
– Mas eu to com sede – retruquei enrugando o nariz. – Refrigerante não mata a sede. Só te deixa com mais.
– É mesmo? – disse sarcástica. – Fala isso pro Léo.
Ela se virou para olhar o irmão e parou. Primeiro com uma expressão confusa e então, conforme ela olhava em volta, desesperada. Achei estranho e olhei para trás. Léo não estava em lugar algum. Aprumei-me e dei uma olhada em volta. Nada. Alana se levantou e começou a berrar pelo irmão. As pessoas olhavam curiosas, algumas até mesmo assustadas. Mas Alana não ligava para nada disso. Olhei para onde Alma havia ido. Acho que ela não podia ouvir os gritos, senão ela já estaria correndo em nossa direção. Minha nova irmã parecia querer correr para todas as direções. Acho que a única coisa que a manteve no lugar, berrando feito uma doida, foi não saber para onde ir. Virei-me para o lugar onde Léo havia estado um momento antes e aspirei fundo. Eu ainda podia sentir o cheiro dele ali. Ele tinha ido para mais perto do lago. Levantei, aproximei-me de Alana e segurei-a firme pelos ombros.
– Se acalme – eu disse. – Se desesperar não vai ajudar em nada. – Ela olhava para mim como uma pessoa se afogando olha para uma boia. – Se continuar assim, é provável que ele passe na sua frente e você nem o veja...
– Você não entende! – ela gritou de volta. – Ele se perdeu! Temos que achá-lo! E se algo terrível acontecer com ele? – lágrimas escorriam pelo seu rosto. – Oh Deus! O que vou fazer? O que vou fazer? O que vou fazer...
A voz dela foi morrendo. Suas mãos tremiam e sua respiração era rápida demais. De repente era eu que não sabia o que fazer. Traguei saliva.
– Escuta... – Eu disse o mais delicadamente possível. – Se acalme. Você esta entrando em pânico. E isso não ajuda. – Eu a empurrei até que ela se sentou na esteira novamente. – Eu vou procurar por ele. Você fica aqui caso ele volte e para cuidar das coisas. Tudo bem? – Ela acenou e eu me coloquei a caminho do lago, olhando sobre o ombro, vez ou outra, para garantir que ela não iria sair correndo por aí. Mas Alana continuava sentada, olhando em todas as direções, chorando e se abraçando.
Respirei fundo e apertei o passo. Sua reação não parecia ser normal. Algo ruim deve ter acontecido, e não tinha certeza de que gostaria de saber o que, ou se ao menos tinha direito disso
∴
Logo cheguei à margem do lago e avistei o rastro de Léo em direção à esquerda. Andei por mais seis ou sete minutos até que o cheiro dele fosse ficando mais forte. Ele havia ido longe. Pelo curto período em que demoramos em notar a sua falta, ele não devia ter tido tempo de se afastar tanto. Provavelmente ele estava correndo, mas por que correria? Não parecia ter nenhum rastro seguindo o dele. Mas, de novo, meus sentidos, apesar de aguçados, não eram assim tão bons, se comparados aos das coisas que estava acostumado a enfrentar. Bem, talvez ele estivesse com algum problema afinal...
Continuei andando por mais um tempo antes de avistar umas formas estranhas saindo da terra, em um pequeno declive, perto das árvores. Aproximei-me um pouco mais para analisar as construções, e percebi que elas não passavam de simples brinquedos. Léo havia se metido em um parquinho. Bom, nenhum problema, então. Olhei na direção de onde eu tinha vindo. Não era tão longe assim, ainda podia avistar o estacionamento, apesar dos carros parecerem formigas. Virei e entrei no círculo de areia, no qual um trepa-trepa de ferro, todo colorido, estava no centro. À sua volta havia escorregadores, balanças e dois túneis de concreto, todos coloridos e bem conservados. Lembrei-me dos parquinhos do parque Ibirapuera. O parque em si era um bom local, mas muitos dos brinquedos precisavam de manutenção, e alguns, como os túneis, cheiravam a dejetos. Senti-me desconcertado, afinal, São Paulo ainda era a minha cidade, e tinha um excelente território ali. Território que logo teria que visitar novamente. Mas cada coisa ao seu tempo.
Encontrei Léo com mais outras cinco crianças, agachados ao lado de uma casa de madeira em miniatura, rosa com a porta e as janelas brancas. Eles não pareciam estar conversando. Todos olhavam, calados, um menino de uns quatro anos de idade. Ele era pequeno e gordinho, com grandes bochechas coradas, e tinha o cabelo loiro encaracolado, como o de um serafim. Seus olhos eram azuis e estava usando uma camiseta branca e uma bermuda marrom, que ia até seus tornozelos. Ele olhava de uma criança para outra. Pensei que estava flagrando uma cena de bullying. Aproximei-me mais e pude ver as expressões nos rostos das outras crianças. Todas sérias, mas não
Pigarreei e todos os rostos se voltaram para mim. Por um instante me senti como um dos adultos em A cidade dos amaldiçoados, só que as crianças não tinham o cabelo branco, nem os olhos brilhantes. Então reparei no moleque bochechudo, ele olhava para mim como se conseguisse ver minha alma. Ou melhor, não era bem a minha alma que ele estava vendo, mas sim o que estava alojado dentro dela. Olhar em seus olhos era como ser tragado por um buraco negro.
– Jesse? – pisquei várias vezes. Foi como um déficit de atenção momentâneo. – Você tá bem? – virei o rosto e encontrei Léo olhando para mim. Além dele, descobri que as outras quatro crianças também me observavam, desconfortáveis. Quatro? Não eram cinco? Examinei o local novamente, e percebi que o bochechudo tinha sumido. O coitado deve ter corrido na primeira chance.
– Quem era aquele moleque? – perguntei para Léo, com meus olhos ainda procurando pelos arredores.
– Que moleque? – Ele parecia confuso.
– Vocês estavam em seis. Pra onde foi o loirinho bochechudo? – Léo me olhava com cara de confuso. – Ele estava sentado bem ali – continuei, apontando o local onde ele estivera antes.
As crianças olharam entre si, receosas. Acho que estava pagando de louco. E então, os olhos de Léo se iluminaram.
– Ah! É seu amigo imaginário?
Fez-se silêncio uns instantes, enquanto eu olhava do rosto em expectativa de Léo, para os de indagação do resto do grupo. Percebi, então, que meu braço ainda estava levantado, e o abaixei, suspirando alto. Acho que não posso adiar por muito mais tempo a conversa com Léo sobre Hound, “o amigo imaginário”. Se não me apressasse, a cidade inteira iria me achar maluco.
– Não, Léo. Não era nenhum amigo imaginário – olhei para o ansioso grupo . – Não tenho nenhum amigo imaginário – voltei-me para Léo, novamente. – Entendeu?
– Mas ontem...
– Eu sei – interrompi, um pouco cansado. – Mas não falava com nenhum amigo imaginário, estava apenas pensando em voz alta. Okay?
– Okay – ele parecia um pouco decepcionado, mas logo iria superar.
Acho que ele estava se apoiando no fato de que, se ambos tivessemos amigos imaginários, seríamos parecidos. Ele queria ser meu amigo e, apesar de querer agradá-lo, não sabia se era uma boa ideia me apegar muito a ele. Eu poderia ter que desaparecer e não queria sentir falta do garoto. Mandei as crianças voltarem para seus pais, algumas eu mesmo tive que acompanhá-las, pois nem todas se lembravam de onde tinham vindo, o que me deixava um pouco preocupado.
Após deixar cada tampinha em seu devido lugar, Léo e eu finalmente voltamos para onde Alma e Alana estavam esperando. Eu já quase havia me esquecido do quão desesperada a garota estava. Olhei o meu relógio e descobri que passara quase uma hora desde que havia saído para procurar o pequeno irmão desaparecido. Ela devia estar com cabeça dando voltas no pescoço naquele momento, mas não podia dizer que sua preocupação era infundada.
Enquanto caminhávamos, fiz Léo prometer que não iria mais falar sobre o meu suposto “amigo imaginário” e, aproveitando, fiz com que ele jurasse que me contaria se algo, como o que havia acontecido no parquinho, voltasse a ocorrer. Algo ia mal ali, ainda não sabia o que era, mas iria resolver.
Comments (0)
See all