– Jesse! – eu pulei para fora da cama, quando o grito perfurou a penumbra do sono, e rolei no chão pronto para brigar.
BAM BAM BAM! Alguém batia na porta do meu quarto. Meu quarto? Na instituição todos dormiam juntos. Por que estou sozinho no quarto? Comecei a lembrar dos acontecimentos do dia anterior e, aos poucos, me acalmei. A nova casa, nova família, nova e chata irmã mais velha... Se bem que, ela era só um ano mais velha. Talvez, até mesmo alguns meses apenas, dependendo de quando era seu aniversário. E duvidava que ela tivesse, pelo menos, um quarto da minha vivência. Ela podia ter nascido antes, mas com certeza eu era mais experiente.
– Jesse! – a voz continuou chamando, fazendo o sorriso bobo em meu rosto sumir – Acorda e vai se arrumar! Estamos saindo em vinte minutos!
Era ela. Tinha certeza. Só uma pessoa podia ser tão chata a essa hora da manhã. Por falar nisso, que horas eram mesmo? Serrei os olhos para focar o relógio de pulso.
– Merda – eu resmunguei. – Ainda são...
– Seis e meia da manhã – um segundo resmungo se juntou ao meu. Olhei para o lado e me deparei com um grande e sonolento cão vermelho. – Você me assustou. Pensei que estávamos sendo atacados.
É. Eu também
– Já não chega os seus malditos pesadelos à noite? – continuou ele. – Não podemos ter nem um tempo descente de sono?
É você quem me causa os pesadelos. Bobão! Decidi que seria melhor guardar o comentário para mim mesmo.
Levantei com certa dificuldade. Sentia-me todo moído. Meu corpo estralava em lugares que nem sabia poder estralar. Sentei-me na cama, ainda ouvindo uma das muitas reclamações de Hound. Droga! Na instituição só teria que acordar daqui à uma hora.
– Era só para eu ter acordado daqui à oito horas! – o maldito cachorro continuava. – Como diabos quer que fique acordado à noite, se não durmo o suficiente de dia? – ele seguiu falando. E minha cabeça seguia latejando. Aturar Hound o dia todo era uma coisa, agora aturar o Hound quando se acaba de acordar era completamente outra.
– E por que você simplesmente não volta a dormir? –perguntei, enquanto esfregava meu rosto para acordar. – Ou é tão divertido assim me encher o saco, enquanto ainda estou com ressaca do sono? – olhei para ele carrancudo. Queria bater em alguma coisa. Mas ele não tinha matéria na qual tocar, então seria inútil tentar. Realmente, ele era somente um pé no saco preso a mim. Deus! Como ficava mal humorado pela manhã!
Fechei meus olhos e esfreguei a ponta do nariz com o dedo mediano e o dedão. Quando voltei a abri-los, estava sozinho. Deixei uma carranca se instalar em meu rosto. Estava com vontade de brigar. Droga! Nem para isso servia o maldito!
– Idiota. – Disse enquanto me levantava. Minhas costas estralaram. Odiava isso. Fazia anos que não dormia relaxado. Sempre estava tenso. E sempre acordava todo dolorido. Não importando se tivesse dormido no chão ou em um colchão de luxo. O resultado era sempre igual.
Olhei meu relógio novamente. Merda! Já havia se passado cinco minutos. Com certeza, se não mostrasse logo um sinal de vida, a maldita garota voltaria. Fui até o armário e tirei algumas roupas a esmo. Não precisava me preocupar se as peças combinavam ou não, todas as blusas eram pretas e todas as calças eram jeans. Reprimindo um bocejo, rumei para fora do quarto escuro e olhei ao redor. Um pequeno vaso de violetas rochas estava sobre um armário baixo à minha frente. Um sol sorridente estava fincado na terra por um palito de churrasco. Parecia zombar de mim. Virei-me e continuei o caminho para o banheiro.
Tranquei a porta e acendi a luz, apesar de não precisar, o cômodo já era iluminado o suficiente. Coloquei minha muda de roupa em cima do vaso sanitário e me olhei no espelho. Apoiei as mãos espalmadas, na pia, inclinei-me para frente e examinei meu rosto. Olheiras profundas se formavam em meus olhos. Respirei fundo e passei a mão pelo cabelo. Isso estava mal. Talvez tivesse que tomar comprimidos para dormir. Não podia seguir do jeito que estava. Desde pequeno que Hound destruía as minhas noites de sono. Nunca soube se os pesadelos eram causados por Hound, por causa de Hound, ou se eram de Hound. Só sabia que o cachorro tinha algo a ver com isso.
– Não – disse para mim mesmo. – Os comprimidos não são boa ideia. – Seria como me entregar de bandeja, caso me ataquem enquanto durmo desmaiado pelos remédios. Só teria que arrumar mais aspirinas para aliviar a dor no corpo.
Tirei a roupa e entrei no box. Abri a torneira e deixei a água fria cair em minha nuca. Nada melhor do que um banho gelado para acordar. Infelizmente, isso também aumentava minhas dores. Quando sai do banho, lembrei que não tinha toalha.
– Maravilha –resmunguei, enquanto alcançava a camiseta que tinha tirado. Me sequei com a precária toalha improvisada e coloquei a roupa que tinha separado. Tinha levado comigo ao banheiro porque era o que estava acostumado a fazer na instituição, mas estava agradecido de não ter que voltar para o quarto sem uma toalha me cobrindo.
Depois de largar as roupas sujas dentro de um cesto ao lado da pia, me preparei para descer. Não era nervosismo por sair com eles. Se fosse isso seria muito melhor. Eu só não queria estar xingando a tudo e a todos quando me encontrasse com eles. Eu sabia o quão desagradável eu podia ser pela manhã quando não dormia direito.
Desci as escadas e parei no hall de entrada. Estava tudo silencioso, como se todos ainda estivessem dormindo. Franzi o cenho. Eles não estariam dormindo ainda. Estariam? Esgueirei-me até a porta da cozinha e olhei dentro. Uma grande cesta de vime e uma caixa de isopor estavam em cima da mesa. Ainda havia alguns utensílios na pia que faltavam ser guardados. Decidi me aventurar até a lavanderia, abri a porta de vidro e estremeci com o ar gelado. Ainda era cedo demais para o sol ter esquentado a temperatura do lado de fora. Olhei em volta. À minha esquerda tinha um secador de roupas pendurado na parede. Na parede oposta, encontravam-se um tanque, uma máquina de lavar e mais um cesto de roupas, um ao lado do outro. À minha frente estava uma porta de grade de ferro que dava para o quintal de trás.
Atravessei o cômodo e sai para o estreito retângulo que era o quintal traseiro. Um pequeno telhado de telha acrílica protegia o canto direito do quintal, para que quem viesse da garagem não se molhasse em dias de chuva. No outro extremo do quintal, quatro linhas brancas que cruzavam de uma parede à outra formavam um varal, no qual algumas roupas estavam penduradas. Por trás delas era possível distinguir outro quarto, porém não sabia o que tinha guardado lá.
Caminhei até a porta da garagem coberta e espiei pelo grande corredor. Não havia carro. Olhando meu relógio, confirmei que naquele exato momento completava vinte minutos desde que haviam me chamado. Eles não poderiam já ter saído. Poderiam? Estremeci de frio e voltei para dentro de casa. Talvez tivessem se esquecido de mim, como naquele filme... Não seria impossível. Provavelmente ainda não se acostumaram em ter mais um a quem esperar entrar no carro.
Fui até a sala e me sentei em um dos sofás. Não sentia meu nariz. Talvez devesse ter pegado um casaco. Suspirei e recostei minha cabeça no estofamento vermelho. Acordei tão cedo por nada. Droga! Mesmo dentro de casa estava frio. Soltei um longo suspiro. Talvez isso não fosse dar tão certo quanto eu imaginei.
∴
– Ele tá dormindo – acordei com murmúrios ao meu redor.
– Por que ele tá dormindo no sofá?
– Eu acho que ele tomou banho. Mas a roupa parece a mesma de ontem.
– Por que ele tá dormindo no sofá? – esse era o Léo.
– Pobrezinho acho que estava muito cansado. Por que acordou tão cedo? – e essa era Alma.
Sentei em um salto. Os três integrantes da minha nova família estavam me olhando parados na minha frente. Quem disse que era preciso tomar remédio para dormir para ter sono pesado? Se os três fossem criaturas noturnas, eu já estaria ferrado. Esfreguei meu rosto com as mãos e lá estava o corpo dolorido de volta.
– Ei! Ei! – Léo me chamou. – Por que você tava dormindo no sofá?
Minha vontade era de esmagar alguma coisa com as mãos. Mesmo assim, respondi amigavelmente.
– Estava esperando vocês. Acho que peguei no sono.
– E por que diabos acordou tão cedo? – olhei pasmo para Alana, que estava posicionada atrás do sofá.
– Por que diab...? – minha voz falhou. Sentei-me reto e me virei para olhá-la. – Você me acordou! Disse que sairíamos em vinte minutos! – olhei meu relógio, eram nove da manhã. Olhei de volta para a garota, e aquela vontade de esmagar algo com as minhas mãos ficou ainda mais forte. Mas agora havia algo específico que eu queria esmagar.
Suspirei alto. Esfreguei meu rosto um pouco mais e levantei. O tempo já havia esquentado eo clima estava muito mais agradável. Era bem provável que até meio dia já estivesse fazendo calor. Olhei para Alana novamente.
– Por que me acordou tão cedo, já que não havia necessidade disso?
– Como eu ia saber? – ela deu de ombros. – Léo tem que ser acordado no mesmo horário para estar pronto só agora. – Levantei minhas sobrancelhas.
– Você levou duas horas e meia para se arrumar? – Eu perguntei ao Léo.
– Ele acorda e volta a dormir – quem respondeu foi Alma, afagando a cabeça do filho. – Mas no final sempre fica pronto na hora não é mesmo?
Léo sorriu para ela e a conversa se encerrou. Alana me deu um sorriso de desculpas. Um bem parecido com o que eu havia lhe dado na noite anterior. Ela é vingativa, pensei, e quando eu vi o sorriso em seu rosto depois de eu explicar que só precisava de poucos minutos para me arrumar, eu me corrigi, Ela é muito vingativa...
Alma me pediu que ajudasse com a caixa de isopor que havia visto antes. Estava cheia de garrafas de refrigerantes e alguns frios, portanto era pesada demais para qualquer um deles carregar sozinho. Sorri triunfante. Alana podia se achar superior a mim em várias coisas, mas força não seria uma delas. Ela olhou para mim, e fez uma careta quando viu minha expressão de satisfação. Acho que é melhor eu comprar um despertador. E logo.
Colocamos as coisas no porta-malas do carro e entramos. Alma e Alana na frente, Léo e eu atrás. Alma acionou o controle que abria o portão e saímos para a rua. Foi só ai que me ocorreu.
– Vocês saíram de manhã? O carro não estava na garagem.
– Tínhamos levado a reciclagem para o centro comunitário na parte comercial da cidade – respondeu Alma virando em uma rua. – Aqui ainda não passa o caminhão da coleta seletiva de lixo.
Ficamos em silêncio o restante do caminho com Léo fazendo alguns comentários ocasionais, e Alana lhe respondendo. Aproveitei para observar a cidade da janela do carro. As casas eram todas bem simples, apesar de grandes. Todas com jardins na frente, fossem elas rodeadas por grades, muros altos ou apenas cercas vivas. Não parecia ser uma cidade com qualquer índice de criminalidade, mas, ainda assim, dava para ver que algumas famílias investiam bastante em segurança. Apesar de tudo, não estávamos tão longe assim da capital, que era violenta o suficiente por três cidades iguais aquela. Passamos por um pequeno pedaço da área comercial, cujas lojas estavam todas fechadas, antes de entrarmos em um bairro no qual a frequência de casas começou a diminuir. Em outro par de minutos, estávamos atravessando as grades pintadas de verde de um estacionamento pertencente a um parque que, me atrevo a dizer, parecia ser quase tão grande quanto o Ibirapuera.
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