Minha primeira noite na casa dos Oliveira não poderia ser descrita com outra palavra, a não ser diferente.
Um pouco depois de ter conseguido arrumar a confusão que havia criado no chão do banheiro, Alana se juntou a nós. Ela entrou ralhando que estávamos demorando até se deparar com o cabelo de Léo.
– Ah, Léo! – Gemeu ela. – A Geleca de novo? – E então se apressou a tirar o restante da gosma da cabeça do irmão.
Quando levantei do chão, meus joelhos estavam molhados, o que fez minha nova irmã mais velha me mandar ir trocar de roupas antes de descer.
– Tanto faz. – Havia respondido. – Daqui a pouco seca.
Ela me olhou com uma cara de poucos amigos e arrastou o irmão de volta para o quarto.
– Eu vou ajudar o Léo a se trocar. – Insistiu ela. – Enquanto você vai trocar suas calças.
– Não preciso da sua ajuda! – Léo reclamou se soltando dos braços da irmã. – Posso me trocar sozinho. Mas não quero! – Continuou ele, correndo. – Daqui a pouco seca!
Encarei surpreso para o local onde Léo estivera um instante antes de descer as escadas. Nem precisei me virar para saber que Alana estava me fulminando com o olhar. Arrisquei uma espiada e confirmei minhas suspeitas. Ela devia me odiar mesmo. Não passamos nem uma hora inteira debaixo do mesmo teto e eu já tinha revogado a autoridade dela sob o irmão. Dirigi-lhe um sorriso de desculpas, dei de ombros e segui atrás do pequeno, deixando-a indignada no meio do corredor.
O jantar correu muito bem. Não falei muito, mas nem precisava. A família ria e se divertia à beça sozinha. A sala de jantar era bem simples, com uma mesa de madeira clara ao centro, fazendo conjunto com um grande espelho pendurado à minha esquerda. Léo estava sentado à minha direita, estávamos de costas para a porta da cozinha, com Alana e Alma à nossa frente. Por cima da cabeça dele, eu podia enxergar a sala. Dois sofás de madeira com estofado e almofadas vermelhas, um de três lugares e outro de dois, rodeavam uma mesa de centro com o tampo de vidro, onde havia sido largados os controles da televisão e do DVD. Do outro lado da mesinha, uma grande televisão de tela plana ficava pendurada na parede, acima de um pequeno rack, onde estavam alinhados o DVD, o aparelho da TV a cabo e o som. Não podia ver de onde estava no momento, mas sabia que, à direita da sala, estava a lareira com confortáveis poltronas à sua volta.
Alma havia posto à mesa pães frescos, queijo, patês, mostarda, ketchup e maionese, molhos prontos para saladas, uma pequena salada de tomates e uma panela com salsichas recém-cozidas. Comi até me estufar. E acho que Léo fez o mesmo, pois começou a gemer e esfregar a barriga.
– Não devia ter comido tanto, Léo. – Reprovou Alana. – Agora você não vai dormir por ter uma baita indigestão.
– Vou pegar o sal de frutas. – Disse Alma se levantando. – Já aproveito e trago a sobremesa.
– Eu ajudo! – Me apressei em acompanhá-la. Ela sorriu para mim e a segui.
– Eu ajudo! Eu ajudo! – Hound me imitou. – Só falta agora você sair por ai ajudando velhinhas a atravessar a rua e distribuir dinheiro.
Não fiz caso do que disse o Cão e entrei na cozinha. Supõe-se que é isso que filhos devem fazer, não? Ou, pelo menos, uma visita. Nunca fui visita na casa de ninguém. Exceto, é claro, na vez em que Laila me convidou para sua casa atrás do bar. Aconteceu pouco antes de forjarmos o nosso trato. Havia terminado uma caçada e resolvi beber algo, ao invés de simplesmente voltar para o buraco no qual eu costumava ficar. Ela já estava quase fechando, quando uma pequena matilha de lobisomens entrou.
Apesar de serem apenas três deles, os lobisomens – uma raça que eu ironicamente costumava chamar de “cabras-machos”, já que não possuíam fêmeas – costumavam ser muito fortes. Eram magros, franzinos e pálidos, mas com um olhar e aura de predadores. Nerds, carentes por atenção e superpoderosos. Tem mistura mais perfeita para um desastre? Por que ir à academia? Era só adquirir licantropia. Deviam fazer um slogan disso.
Sorte de Laila eu estar por perto. E sorte minha não haver nenhum alfa no grupo. Posso ser forte, mas não posso levantar um carro com as mãos. Os cabras ficam mais vulneráveis sem a lua, mas, até ai, já havia visto capotarem um Volkswagen durante uma briga em noite de lua nova. Hound era um alfa por natureza, quase como uma autoridade do inferno, então não foi tão difícil me livrar dos magricelos sem dono. Algumas palavras duras e pronto, lá se foram três lobinhos de volta para o buraco de onde vieram.
Laila acabou me convidando para seu quarto, mas acabei recusando a cama e ficando apenas com a sociedade. Ela era realmente bonita, com um cabelo chanel cacheado e vermelho, corpo curvilíneo, pele clara e olhos azuis, mas não achei uma boa ideia dormir com alguém que podia roubar sua energia vital através do sexo. Além do mais, tinha certeza de que não saberia o que fazer quando chegasse a hora “h”. Já tinha problemas demais comigo mesmo, sem ficar me metendo na cama de profissionais da coisa com centenas de anos de experiência. No fim, acabamos nos tornando... Amigos? Não sei se podia chamá-la assim. Nunca achei nenhum condenado confiável, e uma amizade envolve confiança. Não, definitivamente não era uma amiga. Não tinha amigos. Quando não se pode confiar nem em si mesmo, no que mais se pode crer?
– Pode pegar o pudim na geladeira pra mim? – Alma pediu gentilmente.
Olhei em volta e notei que a decoração da cozinha. À esquerda da porta que se conectava com a sala, havia um enorme armário de parede inteira, com duas portas corridas, amarelo claro fazendo jogo com a faixa que dividia as paredes cobertas de azulejos do cômodo em duas. Uma pequena mesa de madeira branca, com o tampo estampado de margaridas e quatro banquinhos combinando, no centro. Na parede oposta, ao lado de uma porta de vidro que dava para a lavanderia, estavam alinhados o fogão, a pia e a geladeira.
Adiantei-me e abri a porta da última com um puxão. Vários tupperwares se amontoavam nos dois andares superiores. No último andar, ao lado de alguns pés de alface, eu encontrei o que estava procurando. O pudim estava em um prato branco, ainda coberto com a forma de metal para protegê-lo. Peguei-o com a mão direita e fechei a geladeira com a esquerda. Coloquei a sobremesa na mesa central e me virei para Alma.
– Já tiro a forma?
– Sim, por favor. – respondeu. – E coloque dentro da pia.
Descobri o pudim e coloquei a forma de metal ao lado de umas panelas que esperavam para ser lavadas. Alma já havia separado quatro pares de vasilhas e colheres em cima da pia e buscava o remédio para Léo.
– Você pode levar os talheres e potes pra a sala? – Ela pediu enquanto pegava o pudim com uma mão e segurava o sal de frutas e um copo d’água na outra.
– É assim que começa – Hound continuava reclamando ao meu lado. – Primeiro é carregar os talheres e aí, quando se der conta, estará limpando a bunda de algum velhinho em um asilo qualquer.
– Só está com inveja porque não pode comer o pudim – sussurrei sem mexer a boca, enquanto voltava para a sala de jantar.
Acho que devo ter apertado algum calo, ou talvez ele simplesmente tenha desistido de me aborrecer porque, depois disso, o demônio canino resolveu ficar quieto.
A sobremesa acabou rapidamente, não sobrando nem um pedaço para o dia seguinte. Surpreendi-me com a quantidade de doce que Alana e Léo podiam comer. Mesmo um já com a barriga estourando e a outra sendo magrela.
– Não costumo comer tanto assim – disse ela, adivinhando meus pensamentos. – Só em ocasiões especiais.
– E quando quer competir comigo! – acrescentou Léo entusiasmado. O remédio já devia estar fazendo efeito.
Fez-se um pequeno silêncio constrangedor. Daqueles que se formam quando não temos mais o que dizer, e não conhecemos suficientemente bem as outras pessoas para ficarmos relaxados e falar besteiras.
Ouvi um barulho estranho e lancei um olhar à minha volta, procurando a fonte. Hound estava sentado ao lado de Alana que, por sua vez, estava sentada à minha frente, recostada na cadeira de braços cruzados. Ele lambia insistentemente o seu joelho direito. Apesar dela não poder vê-lo ou senti-lo, coçava a perna uma vez ou outra, como se algo a estivesse incomodando.
– Mas que diabos? –quase gritei, ainda com o olhar fixo em Hound. O cão olhou para mim e me lançou um de seus sorrisos diabólicos. Minha vontade era de levantar e chutar-lhe o traseiro para longe dela.
– O quê? – Alana me interrompeu antes que fizesse algo realmente estúpido. Eu a olhei. Ela tinha uma sobrancelha levantada com desconfiança e percebi que estava fazendo uma careta de nojo, mudando rapidamente por uma expressão mais neutra.
– O que, o quê?
– Fazia uma cara estranha enquanto me olhava – ela parecia desconfortável. – O que tem em mim? – completou examinando sua perna direita.
– Nada! – minha voz falhou um pouco e limpei a garganta. – Não tem nada errado.
Ela me olhou irritada, enquanto Hound se punha a rir. Traguei um pouco de saliva e me preparava para inventar alguma besteira, quando Léo interrompeu.
– É seu amigo imaginário? – fiz outra careta.
– Amigo imaginário? – agora era Alana que parecia se divertir. Devia ter pedido que Léo guardasse segredo enquanto tinha tempo.
– É! – ele continuou. – Jesse estava conversando com ele quando fui ajudá-lo a arrumar o quarto. Não é mesmo Jesse?
Alana me olhou com uma cara inquisitiva, e percebi que ainda estava fazendo careta. Respirei fundo e olhei no rosto de cada um, menos no de Hound, é claro.
– Não é que eu tenha um amigo imaginário. Só falo sozinho às vezes. Léo me viu falando e achou…
– Ora, vamos! – interrompeu Alana. – Não precisa ter vergonha! – olhava-me zombadora. – É completamente normal um garoto de dezesseis anos ter um amiguinho que não existe. É só para matar o tempo – e gargalhou.
As risadas de Hound ecoaram as dela. Olhei aturdido para a garota. Eu tentava defendeê-la do demônio depravado, e como me agradecia? Zoando da minha cara! Olhei os outros dois na mesa. Léo parecia perdido, sem entender o que fez, e Alma parecia chocada. Hound ria cada vez mais alto.
– Olha, Eu não...
– Claro, claro. – interroumpeu-me limpando as lágrimas – claro que não.
– Alana! – Alma a repreendeu.
As duas começaram uma discussão, mas já não conseguia entender o que estavam falando. No momento só podia fazer era controlar minha raiva. Fechei os olhos e respirei fundo.
– Eu não disse! – ouvi Hound dizer em meu ouvido. – Isso não vai dar certo. São humanos. Nunca irá se entender com eles.
Olhei para ele, e toda a minha raiva estourou. Ele estava me sabotando, cuidando para que eu não quisesse ficar com eles. Mas, seja qual fosse o plano original do maldito cachorro, ele saiu pela culatra. Tal proeza só despertou minha teimosia. Senti os cantos da minha boca se repuxarem em um início de sorriso.
– Não tinha nada que trazer esse moleque pra casa! – Eu captei o final do discurso de Alana.
Olhei para ela, e nossos olhos se encontraram. Ela me olhava com cara de quem percebeu que falou demais. Olhei-a com o rosto neutro. Escondendo a raiva que estava de Hound. Ela pareceu se aprumar um pouco e franziu o sobrecenho. Olhava diretamente para meus olhos, e compreendi o que estava vendo. Olhei para baixo imediatamente, mas o estrago já estava feito. Tudo o que podia fazer agora era torcer para ela achar que foi um truque da luz.
– Alana, você está sendo infantil! –ouvi Alma dizer, enquanto sentia os olhos da filha me examinando. – Você vai pedir desculpas a Jesse. E vai pedir agora!
– Jessé – Alana corrigiu, suponho, esperando que eu olhasse para cima.
– Jesse –disse sem levantar a vista. – Eu prefiro que me chamem de Jesse –podia sentir uma leve coceira nos olhos, resultante do processo de voltar ao normal. Mas ainda não o suficiente para um humano.
– Seus olhos…
– Com licença –disse me levantando da mesa. Interrompendo sua pergunta. – Acho que eu já vou para a cama – anunciei e me dirigi para a escada.
Ouvi Alma dizer algo para mim sobre acordar cedo, e então retomar a briga com Alana. Hound estava calado. Esperando. Cheguei à minha porta, a segunda depois do banheiro no corredor em “L” – sem nunca levantar os olhos do chão. Entrei e passei o trinco. Sentei na cama, apoiei os cotovelos nos joelhos e a testa em minhas mãos entrelaçadas. Esperei uns instantes, para ver se Hound se pronunciaria e, quando percebi que não iria fazê-lo, comecei eu.
– Por que fez isso?
– Porque quis – respondeu simplesmente.
– Eu quero ficar aqui – continuei. – Pelo menos por um tempo, eu quero tentar ficar aqui. Chega de buracos fedidos pra me esconder! E, se não parar de tentar me tocar, vou começar a racionar sua ração.
Hound me olhou possessoencalou.
– Não pode me racionar – disse cheio de ódio. – Minha fome é sua fome. Está preparado para aguentar isso na própria pele?
Olhei direto em seus olhos. E pensei por apenas um instante antes de responder.
– Sim – ele soltou umas quantas maldições. – Sou eu que mando aqui. Era esse o trato. E eu decidi que quero ficar aqui por um tempo.
– Eu sei. Percebi.
– Então não tente me sabotar de novo.
– Não estava tentando te sabotar – ele sorriu. – Embora tenha gostado do resultado obtido.
Me espantei com a resposta.
– Se não tentava me sabotar, então porque fez aquilo?
– Já disse –respondeu como quem responde à um comentário sobre o tempo. – Porque quis. Ela me pareceu... Apetitosa.
– Merda – Eu disse esfregando o rosto com as mãos. A última vez que ouvi este comentário, Hound me fez arrancar a dentadas o pescoço de uma prostituta em um beco qualquer. – Você conhece o nosso trato. Nada de mortes humanas novamente, e nada de matar com a boca. Você tem noção do gosto que fica depois?
– Claro, claro –concordou fazendo pouco caso. – Mas isso não significa que não possa dar uma provadinha.
– Ela percebeu.
Ele fez uma careta.
– Sim. Eu reparei nisso também.
– Não faça novamente. Fique longe dela.
– Claro.
Suspirei e me deitei de costas sobre a colcha. Estava cansado.
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